Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Valor e Gazeta Mercantil, uma comparação

Mercado não se entusiasma com apelo ao FMI

Dólar e juro futuro sobem e C-bond tem nova queda

Chrystiane Silva e José Paulo Kupfer

De São Paulo

Nem a notícia de que uma missão oficial do governo viajou, ontem, a Washington, para novas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) deteve a escalada do dólar e esfriou o nervosismo do mercado financeiro.

O dólar subiu 3,61% e encerrou o dia em R$ 3,30, na venda, a sétima alta consecutiva. Em apenas uma semana, a cotação da moeda subiu 12%. No ano, a alta é de 42,49%. O nervosismo contaminou as taxas de juros futuros, que dispararam na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F). A taxa para janeiro de 2003 pulou de 25,43% para 26,11% ao ano. O Tesouro Nacional também foi prejudicado e pagou caro para vender títulos públicos aos investidores. Foram R$ 500 milhões em Letras do Tesouro Nacional (prefixadas) com vencimento em dois meses e juros de 21,49% ao ano.

O texto acima é a reprodução do lide e do sublide da matéria principal da edição da Gazeta Mercantil do dia 31 de julho de 2002. Como outras notícias dessa área, tenta explicar para os leitores os fatos econômicos e seus impactos. No mundo das relações econômicas, a notícia tem um papel muito importante. É nela que se baseiam os preços das mercadorias, inclusive do dinheiro e dos valores, tal como se registra no mercado mundial e em todos os mercados locais que dele dependem.

A notícia de economia, como a utilizada acima como exemplo, nos instiga a uma reflexão sobre o papel do jornalista que, em geral, sem ter uma formação específica nessa área, escreve sobre os fatos econômicos na tentativa de explicá-los para os leitores. Nos estimula também a discutir sobre a atuação dos jornais brasileiros especializados nessa cobertura.

Autoridade do jornalista

Este artigo pretende discutir, portanto, as práticas do jornalismo econômico no Brasil, partindo da análise dos dois jornais brasileiros especializados na cobertura de economia e de negócios e que têm circulação nacional: a tradicional Gazeta Mercantil – criada em 1920 – e o novato Valor Econômico – lançado no ano 2000. Estes dois diários disputam o mesmo nicho de mercado: o público que busca informações sobre economia.

A questão central que se propõe explorar neste texto é se esses dois diários funcionariam como porta-vozes autorizados da cobertura dos principais fatos econômicos no Brasil e da movimentação dos negócios no mercado nacional. E por meio de que estratégia legitimariam esse papel perante os leitores?

Partimos da hipótese de que esses diários se ancoram na autoridade jornalística para a legitimar, junto aos seus leitores, a narrativa dos fatos econômicos. O conceito de autoridade jornalística será abordado dentro do âmbito dos Estudos Culturais – corrente definida como o estudo da cultura contemporânea (During, 1993).

Barbie Zelizer (1993) e Richard Campbell (1992), por exemplo, são autores que analisaram a questão da autoridade jornalística. Zelizer abordou a história do assassinato de John F. Kennedy tal como os jornalistas norte-americanos têm repetido ao público. Por meio de um exame das narrativas dos jornalistas sobre esse emblemático episódio da história dos Estados Unidos, ela explorou os modos como eles se firmaram como os porta-vozes autorizados do assunto.

Já Campbell fez uma interpretação das matérias do 60 Minutes, um programa de revista noticiosa da CBS que começou em 1968 e se tornou um dos mais assistidos e mais bem sucedidos economicamente da história da televisão norte-americana.

Partindo de uma reflexão sobre as discussões teóricas levantadas por esses autores e da análise dos jornais Gazeta Mercantil e o Valor Econômico, discutiremos a questão da autoridade do jornalista como um profissional que escreve sobre economia, assumindo um papel de ‘especialista’.

Jornalismo econômico no Brasil

A introdução do jornalismo especializado em assuntos de economia na grande imprensa no Brasil está intimamente ligada à reorganização do capitalismo em escala mundial e ao seu desdobramento na economia brasileira a partir da década de 1950. Essa prática jornalística se fortalece sobretudo a partir do final dos anos 60, se identificando com o modelo de desenvolvimento econômico do País (Quintão, 1987, p. 168).

O jornalismo econômico é caracterizado pela difusão sistemática de fatos e temas relacionados com os problemas macroeconômicos ou da economia de mercado, cujas fontes são economistas, banqueiros, projetos, balanços e relatórios originários de segmentos privados ou de instituições estatais. A cobertura sistemática dos fatos econômicos introduz no discurso noticioso uma linguagem acadêmica e tecnicista e um vocabulário recheado de estrangeirismos, neologismos, siglas e gráficos. É justamente na época do ‘milagre econômico brasileiro’ que o jornal Gazeta Mercantil começa a crescer, adotando uma linha editorial de estímulo do desenvolvimento de uma economia capitalista de livre mercado.

A Gazeta Mercantil nasceu como um pequeno diário econômico e financeiro, no formato de um boletim, no dia 3 de abril de 1920. Na época se destinava ao perfil do mercado paulista, já então na ponta da economia nacional. Na época, São Paulo tinha 580 mil habitantes, 1.207 fábricas e seis mil ‘negócios’. Havia passado o Rio de Janeiro e era responsável por 31,5% da produção industrial brasileira. O Rio respondia por 21% (Lachini, 2000, p. 62-63). O proprietário era o italiano José Francesconi, que tinha sido funcionário do Banco Francês e Italiano, onde trabalhava fazendo levantamento de cadastros e de informações comerciais. Em função dessa experiência, decidiu criar a Agência Comercial e Financeira para vender notícias sobre movimentação de mercadorias em São Paulo. Em 1934, o chamado Boletim Diário de Informações da Gazeta Mercantil e Industrial – que, nessa época, já era de propriedade do sucessor de Francesconi, outro italiano, chamado Pietro Pardini –, foi adquirido pela família Levy, à qual pertence até hoje. A compra foi feita por Herbet Victor Levy, pai do atual diretor-presidente da Gazeta Mercantil S.A., Luiz Fernando Ferreira Levy.

A família Levy já tinha experiência em publicações na área: o Boletim Comercial Levy, criado em 1929, e a Revista Financeira Levy, criada em 1931. Por 60 contos de réis, o jornal se juntou a essas duas publicações, originando a Gazeta Mercantil Industrial e Financeira (Lachini, 2000, p. 66). Nascia, assim, o embrião da atual Gazeta Mercantil, que viria a se firmar como a mais importante publicação do País no setor de economia e negócios.

Na época do ‘milagre econômico brasileiro’ a Gazeta passa por um processo de modernização. A decisão de modernizar o jornal começou a ser amadurecida no início da década de 1970, quando o jornal tinha menos de 4 mil assinantes (Lachini, ibid., p. 19).

O aquecimento da economia brasileira era visível. O governo militar do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) estava gerindo um boom econômico no País. A produção e as exportações cresciam continuamente. Os capitais de fora chegavam em abundância; despejava-se dinheiro na floresta amazônica (Rodovia Transamazônica) e os índices de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) estavam na faixa dos 10% ao ano (Lachini, ibid., p. 20). Havia um grande volume de negócios e moedas estrangeiras em circulação, e tudo indicava existir no mercado editorial brasileiro espaço para um jornal efetivamente de negócios, a exemplo do que já ocorria nos países industrializados.

Experiências semelhantes mostravam que, em Nova Iorque, o Wall Street Journal, voltado exclusivamente para os homens que fazem investimentos, havia se transformado em um grande jornal. Em Londres, o Financial Times, também nessa linha, se tornou em pouco tempo um dos mais importantes jornais da Europa. Na Alemanha, o Handelsblatt avançava com êxito nessa área. No Japão, a cadeia Nihon Keizai Shimbun caminhava também na mesma direção, com publicações especializadas. E a Austrália com o Australian Financial Review (Quintão, 1987, p. 80).

Informações precisas e assinadas

Foi em 1973 que a direção da Gazeta tomou a decisão de transformá-la no principal jornal da América Latina dedicado à cobertura do mundo dos negócios e dos assuntos políticos e econômicos. A proposta era cobrir todo o território nacional, estando presente aos fatos e na frente da notícia. Dentro da meta de colocar as informações nas mãos dos homens de negócios já nas primeiras horas do dia, disponibilizando colunas de serviço de interesse dos empresários, a linha editorial do jornal deixa de ser um privilégio da família Levy e passa a receber também a influência de um ‘Fórum’, formado por um grupo dos empresários de destaque da economia nacional, que se tornam seus acionistas, e que se reúnem mensalmente para produzirem idéias, sugestões e críticas sobre temas relevantes (Quintão, ibid., p. 81). No final de 1974, o primeiro ciclo do projeto de modernização estava praticamente esboçado. Era o desenvolvimento da lógica editorial. Luiz Fernando Levy queria fazer um jornal independente, influente e, em conseqüência, rentável. Seu objetivo maior era fazer um diário de circulação nacional.

Com a modernização, em 1975, a estrutura do jornal havia sido dividida em 12 editoriais ou seções: Primeira página; Internacional; Nacional; Opinião (editorial); Legislação; Indústria; Matérias-primas; Agropecuária; Finanças; Mercados; Administração & Serviços; e Insolvências (Lachini, 2000, p. 57 e 58). A empresa também implantou um sistema chamado ‘Laserit’, que permitia a transmissão simultânea, por meio de microondas, de uma página do jornal em 90 segundos. O investimento na área de impressão do veículo inicial foi de US$ 1 milhão.

Em 1977, o ex-boletim comercial Levy se torna não apenas um jornal de economia, espaço ocupado pelos velhos jornais do Comércio e da Indústria e pelas editoriais de economia dos grandes jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, mas um jornal de negócios (Quintão, ibid., p. 80). Sob o comando da família Levy, a direção da Gazeta desde o início manifestou uma grande preocupação com a qualidade e o rigor do conteúdo editorial, bem como a adoção de normas rígidas de comportamento para os jornalistas (Lachini, 2000, p. 34).

O objetivo da empresa é ser a principal na área de informação de economia e de negócios do Brasil e de toda a América Latina. Para isso, aposta no volume e qualidade dessas informações e também na isenção, credibilidade e confiabilidade do jornal, que é o carro-chefe e a principal publicação da empresa. Perseguindo esse ideal, uma das primeiras práticas adotadas na rotina da Redação foi a de só publicar informações precisas, checadas e confirmadas e procurar nunca publicar boatos. Para os jornalistas, é recomendado ouvir sempre todas as partes envolvidas e não deixar transparecer suas opiniões ou convicções pessoais na cobertura jornalística. As matérias, sempre que possível, devem ser analíticas, mostrando os fatos, suas causas e possíveis conseqüências, mas não podem ser opinativas.

Outra prática é assinar todas as matérias. O objetivo é tornar o jornalista conhecido e co-responsável pelo que é publicado. O Conselho Editorial também determina princípios comportamentais para os jornalistas, como não terem um segundo emprego ou aceitar viagens ou presentes com valores superiores a US$ 25,00.

No que diz respeito às normas gráficas, o jornal adotou como princípio oferecer ao leitor um mínimo de 60% de informações e 40%, no máximo, de anúncios por edição. A norma foi inspirada no The Wall Street Journal (que oferece meio a meio), na época em que a Gazeta Mercantil estava passando pelo processo de modernização, de onde foi tirada também a inspiração de utilizar o bico-de-pena.

A Gazeta é impressa principalmente em preto e em branco e usa bicos-de-pena como ilustração privilegiada no lugar das fotografias. É formada por três cadernos: o A, que reúne as editoriais de Opinião, Nacional, Política, Energia, Legislação e Internacional; o B, que chama-se Finanças & Mercados e traz as matérias das editorias de Finanças, Seguros & Previdência, Capital aberto, Bolsas Nacionais e Internacionais, Fundos Mútuos e também a Rede Gazeta do Brasil (com os temas regionais); e o caderno C, que é o Indústria & Serviços e reúne as editoriais de Recursos Humanos, Comércio & Serviços, Transporte & Logística, Saneamento & Saúde; Telecomunicações & Informática e Mídia & Marketing.

Valor, um novo jornal em 2000

Nas décadas seguintes à modernização da Gazeta Mercantil, foi registrado um salto na circulação de seus exemplares no País. O avanço só pôde ser acompanhado com segurança a partir de 1985, quando o jornal ingressou no Instituto Verificador de Circulação (IVC). Nesse ano, eram 67.712 assinantes, uma circulação paga de 71.624 exemplares e tiragem de 90.261.

Na década de 1990, o jornal continuou em crescimento. O ano de 1996 foi marcado pela reestruturação interna, forte crescimento das vendas e consolidação da publicidade comercial como a principal fonte de receitas. O melhor desempenho das vendas refletiu-se em um aumento de 17% na receita bruta, que chegou a R$ 119,3 milhões.

No ano 2000, obteve o melhor resultado financeiro de sua história. A receita bruta (receita total sem dedução de impostos incidentes sobre vendas) da controladora passou de R$ 177,472 milhões em 1999 para R$ 246,416 milhões. A circulação paga do jornal, de acordo com dados do IVC, chegou a 124.351 exemplares em 2000. O número de assinantes subiu para 121.515 e a tiragem para 147.172.

É também no ano 2000 que chega ao mercado um concorrente direto para a Gazeta Mercantil, que era, até então, o único diário de circulação nacional voltado para a cobertura de economia e movimentação de negócios no Brasil.

Anunciada no início de outubro de 1999, o acordo entre a empresa Folha da Manhã – que edita, entre outros títulos, a Folha de S. Paulo –, e a Infoglobo Comunicações, que publica o diário O Globo, permitiu que um novo jornal especializado em economia chegasse ao mercado no dia 2 de maio de 2000, com o nome de Valor Econômico (Carvalho, 2001, p. 186).

Os dois grupos investiram R$ 50 milhões para o lançamento do Valor sob os argumentos de que havia espaço no mercado para um novo diário dirigido à área econômica. Na época, a revista Propaganda noticiou que a decisão de lançar um jornal de economia se fundamentou no fato de a Gazeta Mercantil não apresentar boa situação financeira.

A Folha de S. Paulo e O Globo estão entre os cinco maiores jornais diários brasileiros em relação a circulação média por edição. De acordo com dados do IVC de 2002, a Folha tem uma tiragem de 339,6 mil exemplares e o Globo tem uma circulação média de 266,2 mil.

A chegada do concorrente Valor, no entanto, não afetou de imediato a circulação do diário da família Levy. A circulação paga da Gazeta, segundo dados do IVC, chegou a 124.351 exemplares em dezembro de 2000, com aumento de 5,4% em comparação a 1999. Mas nos anos seguintes apresentou queda. A média por edição foi de 127,7 mil em 2001 e, em 2002, caiu para 118,5 mil.

O Valor ainda não é filiado ao IVC e, por isso, não há dados sobre a circulação do jornal registrados por esse instituto (a pesquisa é de 2002 nota da redação do OI). Assim como a Gazeta, o Valor tem como princípio editorial que cada matéria seja assinada pelo jornalista que a redigiu como uma forma de reforçar a responsabilidade do profissional pela veracidade das informações. É impresso em cores e utiliza fotografias coloridas na capa e no interior do jornal. A própria logomarca do jornal é impressa em verde e em preto. Ambos têm tamanho standard (54 centímetros por 33 centímetros de área de impressão).

É dividido em quatro cadernos. O primeiro, o A, reúne as editorias de Brasil, Política, Internacional, Opinião e Especial. O segundo caderno é o B. Chama-se Valor Empresas & Tecnologia e é formado pelas editorias de Serviços, Telecomunicações, Infra-estrutura, Indústria, Insumos, Commodities Agrícolas e Agronegócios.

O caderno C é o Valor Finanças, que reúne a editoria de Finanças, onde são publicadas também informações sobre Fundos de Investimento e Bolsas Nacionais. O último caderno do Valor Econômico, o D, chama-se Eu & e é formado pelas editorias Eu & Meu dinheiro; Eu & Ranking de Fundos Valor – Agrif; Eu & Carreira; Eu & Consumo; e o Eu & Cultura.

Artigo assinado e manchete

Com o objetivo de refletir sobre o papel da autoridade jornalística e sua influência na prática do jornalismo econômico, analisamos matérias que geraram manchetes na Gazeta Mercantil e no Valor. A título de ilustração, citaremos alguns exemplos de notícias (as edições foram escolhidas aleatoriamente).

Tomemos como exemplo a matéria de capa da edição da Gazeta do dia 31 de julho de 2002, cujos lide e sublide estão na introdução deste artigo. A manchete foi Mercado não se entusiasma com apelo ao FMI, com o olho ou linha-fina Dólar e juro futuro sobem e C-bond tem nova queda. A chamada de capa da matéria reúne as reportagens relacionadas com o mesmo assunto que estão no interior do jornal (no caderno B, o de Finanças & Mercados) e são assinadas por dois jornalistas.

Na matéria principal e nas demais reunidas sob essa manchete, observamos que os jornalistas interpretam as informações sobre a alta do dólar e descreve o ‘clima’ que provavelmente estaria agitando o mercado. A narrativa começa com um lide construído a partir de dados apurados sobre a alta da moeda norte-americana.

No sublide, os jornalistas afirmam que ‘os investidores consideram que a venda de até US$ 1,835 bilhão em agosto, que será feita pelo Banco Central, não terá reflexos na cotação do dólar comercial’ e cita opiniões de membros da Comissão Técnica da Ancor (Associação Nacional dos Corretores de Valores) e outros investidores mantidos em off.

A narrativa jornalística é desenvolvida sem explicações detalhadas de termos técnicos de economia citados, como câmbio, taxas de juros futuros e liquidez. Nota-se que o repórter de economia parte do pressuposto de que o público leitor do jornal tem informações suficientes para entender os termos técnicos da matéria. Isso ocorre porque os dois jornais analisados são voltados para um público formado principalmente por empresários, executivos, economistas, administradores e demais profissionais da área de finanças.

É o contrário do que ocorre no jornalismo popular, onde a narrativa se dá de outra maneira. O historiador e ex-repórter Robert Darton (1995, p. 94) lembra que quando os jornalistas começaram a dirigir suas matérias a um público ‘popular’ escreviam como se estivessem falando com crianças. A linguagem utilizada, portanto, é a mais simples possível. No jornalismo especializado, o repórter leva em conta o público segmentado para o qual teoricamente escreve e, por isso, não se detém a explicações detalhadas sobre os termos utilizados na área de economia e finanças.

No Valor também encontramos exemplos interessantes para análise. A matéria principal da edição do dia 19 de agosto de 2002 é uma delas. A manchete foi Congresso erra e aumenta Imposto de Renda de 2003. A matéria se caracteriza, na verdade, como um artigo, pois traz a interpretação dos fatos com o título Mais um capítulo da novela do IR, assinada por Ribamar Oliveira, de Brasília, repórter especial do Valor em Brasília, acompanhada de sua fotografia. No final da coluna, na primeira página interna do jornal, há a informação que o jornalista escreve naquele espaço todas às segundas-feiras. Ele atua como repórter e também como articulista do veículo.

Em seu artigo, Ribamar Oliveira explica o erro do Congresso Nacional na redação da lei 10.451, de maio de 2002, e que aumentou o limite de isenção do Imposto de Renda. Ele não cita fontes para explicar, com aparente propriedade e conhecimento sobre o assunto, os fatos (com detalhes sobre alíquotas) e suas implicações para o bolso do contribuinte.

O interessante é que o artigo, escrito por um jornalista, foi manchete do jornal, e apresentado como se fosse uma notícia, ou seja, elaborada dentro das exigências do jornalismo pautado pela objetividade.

Porta-vozes legitimados

Para Quintão (1987, p.101), a legitimação do discurso ritualizado nas teorias e práticas da análise da economia se deu, de um lado, pela adesão ao seu conteúdo de banqueiros, economistas, administradores, engenheiros e outras categorias profissionais e, por outro lado, pela disseminação desse conteúdo na imprensa.

O discurso que envolve o universo da área de economia e finanças é expresso em uma linguagem baseada de categorias ou conceitos econômicos, palavras estrangeiras, neologismos, jargões, siglas e índices.

Ao analisar as relações de produção da notícia de economia, Quintão (1987) observou que os jornalistas permitem-se introduzir no texto do noticiário do cotidiano conceitos, palavras e outros símbolos da linguagem que só têm sentido enquanto abstrações na área da ciência ou enquanto práticas de operação no mundo dos negócios.

Essa linguagem acabou fluindo para os jornais e foi, aos poucos, adquirindo uma forma própria, caracterizada pelo uso de dezenas de palavras que pouco ou nada significam para o público leitor leigo na área e que, por isso, tornam também a leitura do texto de economia excessivamente hermética e elitista (Quintão, ibid., p. 102).

‘Comunidade interpretativa’

O jornalista é um profissional que trabalha captando informações, apurando, confrontando dados e redigindo. Atua como uma espécie de intérprete, que deve ter capacidade de registrar e analisar fatos e detalhes a que o leitor não tem acesso. Para desempenhar esse papel, ele se ancora em uma dada autoridade concedida pela sociedade para relatar fatos.

Tomando o conceito na acepção de Sennett (2001, p. 33), a autoridade, no sentido mais geral, é uma tentativa de interpretar as condições de poder, de dar sentido às condições de controle e influência, definindo uma imagem de força.

A autoridade age como uma fonte de conhecimento codificado que orienta as pessoas acerca de padrões adequados de ação. Zelizer (1993, p. 1-2) defende que a autoridade cultural ajuda os jornalistas a utilizarem suas interpretações dos eventos públicos de modo a se constituírem em comunidades autorizadas. Isto é especialmente relevante na medida em que muitos grupos – os jornalistas, os políticos, os historiadores – se valem de construções da realidade para moldar os eventos externos nos seus próprios termos.

A autoridade jornalística se situa no contexto das práticas jornalísticas, nas quais os repórteres têm se valido de recursos tecnológicos, narrativos e institucionais que servem de fundamento para a pronta circulação das suas versões particulares acerca das atividades da ‘vida real’.

Conceituada como ‘a capacidade dos jornalistas de se afirmarem como porta-vozes legitimados e confiáveis dos eventos da vida real’, é entendida como um caso específico de autoridade cultural por meio da qual os jornalistas determinam seu direito de apresentar interpretações legítimas acerca do mundo.

De maneira geral, a seleção, a formação e a apresentação dos eventos depende fundamentalmente do modo como os jornalistas decidem construir a notícia de uma forma ou de outra. Agir adequadamente, ‘como jornalista’, depende da capacidade dos repórteres de fazer uso dos códigos de conhecimento coletivo.

Imprensados entre o público e o evento a ser descrito, os repórteres são capazes de construir aquilo que lhes parece ser preferível e estrategicamente importante graças à pressuposição de que eles dispõem de alguma autoridade acerca das matérias que narram.

Os jornalistas funcionam, portanto, como uma comunidade interpretativa, como um grupo que se autocredencia por meio de suas narrativas e suas memórias coletivas.

Generalista bem-informado

Por meio da narrativa, o papel do indivíduo, a organização/instituição e a estrutura da profissão tornam-se fatores-chave no delineamento dos porquês da prática jornalística. Zelizer (1993, p. 10) afirma que os repórteres, por meio dos fatos e tradições narrativas compartilhados, são capazes de ter valores e idéias coletivas que os ajudam a manter-se como uma comunidade interpretativa autorizada.

A importância dada a um fato para que ele seja classificado como noticioso depende do jornalista que vai escrever sobre o assunto, que, munido de um senso comum acerca do que é notícia, observa o que pode chamar a atenção do leitor. Para Campbell (1992, p. 7), senso comum representa o tipo de conhecimento compartilhado, e que é encontrado diariamente nos nossos jornais e televisões e em nossas conversas. Para o antropólogo cultural Clifford Geertz (1998), seria uma ‘sabedoria corriqueira’, ‘prática’, ‘coloquial’.

Observa-se que os jornalistas recorrem ao senso comum na tentativa de desenvolver um jornalismo ‘centrado em fatos’ (Chalaby, 1996). Prática que estaria dentro dos parâmetros de objetividade característicos do jornalismo norte-americano. Albuquerque (2000, p. 33) defende que o desenvolvimento de um jornalismo ‘centrado nos fatos’ só é viável na medida em que um amplo acordo em torno de verdades fundamentais permita pôr os valores entre parênteses, possibilitando, assim, distinguir os domínios do fato e da opinião. Delimitar essa fronteira é um problema complicado. Os jornalistas lidariam com esse problema apelando para parâmetros de julgamento do senso comum, justamente por causa do caráter de ‘naturalidade’ inerente ao discurso do senso comum.

Essa ‘naturalidade’ permitiria aos jornalistas apresentarem seu relato ‘como uma descrição objetiva’ da situação, uma história na qual os fatos parecem falar por si mesmos (Glasser e Ettema, 1991).

Para o sociólogo e ex-repórter Robert Park (1940), o senso comum é formado pelos caracteres que os indivíduos adquirem de maneiras informais e inconscientes. Quando adquiridos, tendem a tornar-se propriedades privadas e pessoais. Faria parte do que Park chama de ‘conhecimento de’: o que adquirimos mais através do uso e do hábito do que de qualquer espécie de investigação formal ou sistemática.

O senso comum seria diferente do conhecimento analítico – ‘conhecimento acerca de’ – que seria ‘formal, racional e sistemático’. Do ponto de vista do jornalista, o ‘conhecimento acerca de’ radica-se, na cultura contemporânea, na esfera dos especialistas ou ‘principais definidores’ – que seriam os líderes institucionais que predominam nas matérias noticiosas como fontes privilegiadas e estabelecem as definições iniciais ‘ou interpretações primárias’ dos tópicos noticiosos.

Freqüentemente beirando a sabedoria convencional, o conhecimento especializado ‘acerca de’ é tipicamente detido por profissionais altamente treinados de uma variedade de profissões (medicina, direito, política, educação) e está inscrito em sua linguagem especializada.

A divisão de trabalho nas sociedades modernas, tecnológicas, levou a um ‘hiato crescente’ entre aqueles que têm especialização e aqueles que não a têm e a uma dependência crescente dos leigos para com as fontes especializadas. Dependendo da área de especialização, uns poucos privilegiados podem funcionar, de tempos em tempos, como fontes e especialistas nas notícias (Campbell, 1992, p. 11).

A dilatação do hiato entre o conhecimento do tipo de senso comum e do conhecimento especializado criou a necessidade, na sociedade contemporânea, de um árbitro proficiente. Este árbitro é designado bem informado. O jornalista se encaixa teoricamente neste perfil. Esse profissional funcionaria como uma espécie de mediador entre o especialista e o público. É um generalista bem informado que, ao contrário do especialista, carece de aptidão em qualquer área especializada.

Entre o fato e o público

Graças ao acesso privilegiado a especialistas e seus domínios especiais de conhecimento, entretanto, os bem informados dominam uma situação simbólica crítica, mediadora, nas culturas modernas – uma situação localizada em horizontes entre ‘a especialização e a falta dela’, entre as definições primárias e a sabedoria convencional (Campbell, ibid., p. 11).

Observa-se que o jornalista ao trabalhar sistematicamente na cobertura de economia acaba adquirindo experiência em lidar com os termos específicos e passa a escrever com ‘aparente’ naturalidade sobre os fatos econômicos. Eles se revestem de uma autoridade para tratarem dos assuntos dessa área específica em suas narrativas. Isso se dá porque a eles é concedido o poder de nomeação, de tradução dos fatos econômicos.

Ao jornalista é permitido exercer o papel de intermediário entre o fato e o público. O repórter de economia acaba traduzindo duplamente os fatos econômicos. Primeiro porque interpreta o ‘economês’, partindo do princípio de que conhece os termos dessa área específica e, segundo, porque tenta esclarecer no momento de redigir o que significa aquela linguagem técnica para o público do jornal para o qual trabalha.

O que ocorre, no entanto, é que diferentemente do que acontece entre cientistas, médicos e advogados, os jornalistas não dispõem de linguagem, método ou treinamento que lhes permitam reivindicar o status de especialistas acerca dos assuntos sobre os quais falam ou escrevem. Eles assumem a narrativa, a forma, para se tornarem especialistas em narrar algo realista (Schudson, 1978).

São generalistas que escrevem a partir das informações dos especialistas e, muitas vezes, agem como se realmente fossem especialistas na produção da notícia. E a notícia se apóia na sua autoridade como verdade, assemelhando-se, neste aspecto, com o mito (Bird & Dardenne, p. 275). E os jornais de economia acabam difundido o mito de que são porta-vozes autorizados da cobertura dos fatos econômicos e que têm profissionais especializados para desenvolver essa prática jornalística.

E como se daria, na prática, essa legitimação? O que parece ocorrer é que a autoridade jornalística opera na legitimação do jornalismo econômico em dois níveis no caso dos dois jornais analisados neste estudo. Primeiro, pela narrativa dos jornalistas contratados para funcionarem como intérpretes dos fatos econômicos e da movimentação dos negócios no mercado.

E, em um nível mais amplo, tanto a Gazeta Mercantil – que tem 83 anos de existência – quanto o do Valor – lançado no ano 2000são jornais que ancoram seu discurso no status de serem os jornais especializados nessas áreas específicas e se estabelecem como porta-vozes autorizados dessa cobertura dentro do cenário da imprensa brasileira.

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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense