Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A margem esquerda

‘O bom-bocado não é para quem o faz, e sim para quem o come.’ (Provérbio popular)

DIA 13


A coincidência de se apresentarem juntos dois pretextos de azar
para o comício das reformas – uma sexta-feira que caiu num dia
13 – não impressionou as esquerdas brasileiras. Nossos esquerdistas
sentiam-se fortes, suficientemente fortes para desafiar a superstição
popular e as demais forças vivas do País. Estavam bem certos
de uma proteção superior a suas forças humanas e
fraquezas teóricas – a própria História.

Amparados pela certeza da contingência sobre-humana, como garantia para
a grande aventura, os esquerdistas brasileiros viviam a véspera de acontecimentos
definitivos. Queriam alcançar o poder pelo caminho mais curto, partindo
da Praça da Estação D. Pedro II, ao lado da Praça
da República, e seguindo pelas ruas, à frente de multidões
de operários, soldados, marinheiros, camponeses e estudantes, que só
existem nos livros e no cinema.

A margem de erros possíveis foi desprezada pelos calculistas radicais. Quase três anos de convivência íntima com a vitória perseguida na ação de massas e de constatações sucessivas de ausência de reações válidas levaram os grupos radicais de esquerda – nas vésperas da sexta-feira, 13 de março – a certeza da predestinação. Sentiam-se na liderança de um povo imaginado em formas abstratas e dividido em classes sociais, com sentimentos e reações que só existem realmente em livros de teoria cada vez mais próxima da ficção.

Na manhã luminosa daquela sexta-feira, 13 de março de 1964, escolhida ao acaso para o comício que começaria a deslocar o peso das decisões políticas para a praça pública, os jornais circulavam com as páginas pesadas de acontecimentos onde se refletia uma véspera de tensão. O desenho duro, num anúncio de 4 colunas, oferecia uma enxada na mão de um camponês sem rosto. A mão segurava com determinação o cabo da enxada: ‘Você deve estar presente ao Comício das Reformas’.

A ruas do centro estavam aliviadas do número de humanos e veículos que fazem as estatísticas do Rio. Baixava na cidade o espírito dos feriados. A partir do meio-dia, as ruas se despovoaram rapidamente e passavam as primeiras delegações sindicais em direção à Praça Cristiano Otoni. As parcelas mais ativas das classes profissionais esbanjavam confiança em dísticos e proclamações fortes, embalados em ritmos de carnaval adaptados em paródias políticas. A tarde avançava, as delegações exibiam disposições cuidadosamente reservadas para o grande momento. Era, afinal, a base popular para a definição esquerdista do Presidente da República, depois de esgotadas as possibilidades de rendimento para as hesitações do comportamento presidencial e a paciência das esquerdas.

Os grupos sindicais levavam enormes faixas abertas em intenções claras e disposições finais. Niterói mandou uma representação com espírito festivo, animada também por uma banda militar e pela mesma certeza de que o povo iria virar naquela noite mais uma página da História do Brasil. Nas calçadas vazias da Avenida Rio Branco os raros espectadores da demonstração sentiam-se marginais da História. Enquanto os retardatários do expediente burocrático e comercial voltaram para casa, os reformistas passavam em direção ao comício nas ruas desertas do coração da cidade. Era visível o desencontro entre o planejamento político e a realidade social: a classe média poupava-se à demonstração política e, de cabeça baixa e coração assustado, recolhia-se à sua modéstia histórica. O comício não tinha apelo capaz de dar-lhe um mínimo de segurança. Para a praça das reformas seguiam, em volumes crescentes, os convertidos às Reformas, uma religião que Goulart era supremo sacerdote.

Ação Católica e Congregados Marianos de Belo Horizonte, na véspera, enfrentaram-se nas ruas, conforme documentavam em fotografias e noticiário os jornais daquela manhã. Durante quatro horas, no centro da capital mineira, católicos envolveram-se em cenas de violência pelas Reformas de Goulart. As notícias esclareciam: engraxates e vendedores ambulantes ajudaram a celebrar o ato de violência, ao lado da Ação Católica, contra os congregados marianos, que recolhiam assinaturas populares num protesto contra os que passaram da contemplação dos problemas sociais para a ação esquerdista. Intolerância com intolerância se paga.

Era esta a pauta de circunstâncias no dia do comício: os olhos viam em fotografias a intolerância nas ruas de Belo Horizonte, onde duzentos soldados gastaram quatro horas para restabelecer a ordem, mas o entendimento humano era insuficiente para apreciar tudo que se passava no Brasil. Ali ao lado das notícias de Minas estava o comunicado do Comando Geral dos Trabalhadores, definindo a demonstração de violência, católica e mineira, como sintoma de ‘intolerância nitidamente fascista’. A generalização era imprópria: o CGT queria condenar apenas os que pediam assinaturas para o protesto contra a Ação Católica. Não incluía os católicos de esquerda e seus aliados, engraxates e vendedores ambulantes. Ao CGT não bastava a constatação: o comunicado oficial determinava ‘o estado de alerta para os trabalhadores em todo o Brasil’.

Traziam outros sintomas os jornais da manhã de 13 de março: as palavras do Sr. João Pinheiro Neto numa rede de emissoras de rádio e televisão, mobilizadas na véspera pelo Governo federal. O superintendente da Reforma Agrária, com superioridade sorridente, repisava a necessidade de desapropriar terras para distribuí-las a camponeses, porque o Governo não as tem mais para dividir com ninguém. As que pertenciam aos estados e municípios – afirmava Pinheiro Neto – ‘já foram cedidas a privilegiados, graças à sua influência políticas e outros expedientes’. Também na véspera do comício o Ministro da Justiça havia levado ao Presidente da República a redação final do decreto para aluguéis de imóveis vazios e dos que viessem a vagar. Fixava os preços entre um terço do salário mínimo e um e meio de seu valor, que começava a se tornar a unidade métrica do Governo. Os pequenos proprietários eram as figuras mais assustadas do momento: os rurais estavam amedrontados pelo Sr. Pinheiro Neto, e os urbanos aterrorizados pelo sr. Abelardo Jurema.

Discretamente os jornais davam conta, ainda, do encontro entre o Presidente da Petrobrás e o Presidente da República. Não havia segredo: o assunto fora a encampação das refinarias particulares de petróleo no dia 19 de abril, aniversário de nascimento de Vargas e data a ser utilizada no programa político do Governo. Celebrações getulistas estavam em estudos para enfeitar as reformas. Em agosto completa-se o primeiro decênio da morte de Vargas. De abril a agosto, um programa de ressurreição de seu mito, reinterpretado do ângulo esquerdista.

Esquerdas e contingentes sindicais marcharam para o comício com uma determinação: chega de conciliação. Dois decretos assinados com antecedência superaram, duas horas antes, a expectativa da massa humana concentrada na praça: estavam preparadas apenas para a desapropriação das terras à margem das estradas federais. A encampação das refinarias era bonificação especial. Surpreendeu até as áreas íntimas do lado esquerdo do Governo. Goulart se destacou sobre as reformas em geral para reclamar, em tom forte, a reforma da Constituição em particular, ‘porque é indispensável’. Com o seu discurso, Goulart desapropriou os efeitos conseguidos por Leonel Brizola, como patrono da convocação de uma Constituinte para reformar o Brasil por atacado.

A noite já havia chagado quando o comício começou. Na Zona Sul, ninguém soube como, velas acesas nas janelas se consumiam no silêncio que descera sobre as ruas vazias. Por trás das cortinas baixadas, os menores gestos do Sr. João Goulart eram observados atentamente na televisão. As pessoas se concentravam no fundo de um temor tocado de religião. Em São Paulo, no momento em que Goulart falava, as igrejas estavam cheias de fiéis em orações.



DIA 14

O sábado foi um dia de articulações intensas para os dirigentes da esquerda. A semana inglesa levou-lhes, de manhã cedo na cama, os jornais que testemunhavam a presença popular no comício. A alegria despertou as esquerdas para as celebrações e o planejamento político do futuro que parecia tão próximo. Havia unanimidade na constatação de que o comício sepultara definitivamente a política de conciliação. Todos se sentiam aptos para as responsabilidades altas que não mais lhes podiam ser recusadas.

Depois do almoço, deputados começaram a articular com os líderes sindicais a Frente Popular que daria a João Goulart um instrumento político adequado. As tentativas de união com as forças políticas convencionais mostraram-se impraticáveis. Iam agora tomar das mãos do Sr. San Thiago Dantas o projeto da Frente Ampla, concebida no espírito de conciliação política para dar ao Presidente da República lastro democrático para as reformas. No sábado, os dirigentes esquerdistas – estudantes, deputados, líderes sindicais – desprezavam a conciliação com outras forças políticas e trocavam, na organização da Frente, a idéia de amplitude pelo critério popular. Não havia mais necessidade de negociar com os vencidos. Chegara o momento de passar a burguesia para trás, a começar pelo Sr. San Thiago Dantas.

Reapareceram também, na maneira de aproveitar os efeitos do comício, as divergências entre os Srs. Miguel Arraes e Leonel Brizola. Na opinião de Brizola o momento exigia concentração de todos os esforços na Frente Popular, dando-lhe dimensão política super-partidária. Considerava desprezíveis os instrumentos de ação convencional no quadro democrático brasileiro. Brizola intuía a hora de ações de massas, lançadas em volumes crescentes nas ruas, para as pressões definitivas. Imobilizado na defensiva, caracterizada como resistência às reformas, o Congresso favorecia junto à opinião pública a campanha de convocação da Constituinte

Arraes não pretendia tanto: contentava-se com a pressão de massas sobre o Congresso, que Brizola queria fechar.