Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Irã quer banir a web

O governo iraniano anunciou que a partir de setembro de 2012 todos os ministérios e órgão do governo não vão estar mais na internet, informou a edição inglesa da revista Wired (7/8). O ministro iraniano de Tecnologia da Informação, Reza Taquipour, anunciou a medida em uma conferência na Universidade Amir Kabir, em Teerã. Taquipour informou que seu governo considera a web “não-confiável” e controlada “por dois países” (leia-se Estados Unidos e Israel) e que a decisão visa a proteger a inteligência do país da ameaça de “potências internacionais”.

Depois de ter seu programa nuclear invadido pelo verme (worm) Stuxnet em 2009 e 2010 e pelo vírus (malware) Flame, encontrado pelos russos em maio de 2012 em um terminal de exportação de petróleo, a monitorar sistemas no Irã e “outros países do Oriente Médio e norte da África”, as autoridades locais teriam decidido “criar uma situação onde a preciosa inteligência do país não estará acessível” às potências internacionais, informou a Wired inglesa. A solução encontrada foi estreita e limitada, como as mentes das lideranças iranianas: o país vai criar uma intranet – uma rede interna de comunicações virtuais controlada pelo Estado – e abandonar a web mundial.

A palavra intranet refere-se a uma estrutura de rede semelhante à web, mas menor, menos ampla e centralizada. É baseada nos mesmos conceitos que a web, mas é uma versão privada e restrita da mesma. O termo intranet foi utilizado por Stephen Lawton em 1995 pela primeira vez (o sujeito fez questão de proteger sua “criação” com as restrições atuais dos direitos autorais à reprodução). Tais redes são muito comuns no Ocidente nas universidades e firmas privadas que precisam de controle sobre o uso de suas redes. Ao contrário da web, as intranets são centralizadas e podem ser facilmente monitoradas. Usuários das intranets precisam de cadastros individuais.

Câmeras nos cafés

O site CNET News, da CBS (09/08), tentou fazer brincadeira de assunto sério e acabou apresentando uma abordagem pífia da decisão do governo iraniano de colocar o país atrás de uma muralha digital. Chris Matyszczyk, que assinou o post numa seção chamada “Tecnicamente incorreto”, é consultor de marketing e criação de conteúdo, de acordo com o site. Sua abordagem “criativa” representa tudo de ruim que existe nas reportagens da web: muito curta, sem nenhuma base em política internacional ou tecnologias de informação e ainda tentado fazer humor num momento delicado para o mundo inteiro.

O único valor dopost (não merece ser chamado de “artigo”) está em sua última frase: “Estou confiante que quando a web estreita iraniana for lançada, o preço das ações do Google vai ser duramente atingido”, comentou com ironia o autor, assinalando a insignificância econômica do evento para a economia.

O assunto não é novidade e deve ser visto com muito cuidado. Desde o início deste ano as autoridades do Irã já demonstravam sinais de desconfiança e descontentamento com a web. Mais de uma vez as autoridades iranianas ameaçam fechar o país para a web internacional. Ninguém garante que o país vai mudar a atual situação de controle e repressão. Mais uma vez, a ameaça pode não se confirmar ou ser outro erro de verificação. O Wall Street Journal (06/01), em uma matéria sobre a repressão do Estado contra os cibercafés no Irã, apresentou a primeira menção à criação de uma rede local controlada pelo Estado e separada do resto do mundo não muçulmano que iria substituir a internet. Mas foi colocada como especulação. Ninguém nunca pôde comprovar nada.

O jornal comentou a possibilidade da criação de uma rede Halal (permitida pelo Islã), em uma reportagem que desenhou bem o estado da repressão contra os usuários da web nesse país, que passaram a usar os cibercafés porque acreditavam que seus computadores pessoais já estavam “grampeados”. A reportagem do periódico foi uma das poucas a mostrar a tensão entre a população mais educada do país e sua liderança tirânica, que passou a exigir a identificação dos usuários desses ambientes públicos, de seus provedores de internet e a instalação de câmeras dentro dos cafés cibernéticos.

Jornalismo declaratório

Aqui no Brasil, destaquei o Techtudo, da Globo, que primeiro anunciou a intenção da criação da “web censurada” (16/1), e agora em agosto (7/8) confirmou as intenções anteriormente anunciadas da criação de uma rede local para substituir a web. A minimatéria (três parágrafos) citou a Wired inglesa e não acrescentou nada ao que já havia sido publicado no site inglês. Foi mais um decepcionante post na web. Não pode ser confundido com artigo ou reportagem. O Tecmundo (11/4) também já havia publicado a medida radical do governo iraniano: três parágrafos que resumiam a boa matéria do IBTimes (9/4), de Nova York.

O International Business Times é um site de notícias online que vem crescendo muito nos últimos dois anos. Seu editor teve a prudência de acrescentar uma nota, com link para matéria do dia seguinte, na qual o ministro Taquipour negou a saída do país da internet e disse que tudo não passou de “propaganda do Ocidente”. O informativo online de Nova York escapou em abril de um erro que poderia prejudicar sua credibilidade. O mesmo pode estar a acontecer agora com as novas publicações sobre a proscrição da web no Irã. Quem pode garantir que tudo não passa de outro erro de interpretação ou apuração de fatos, como aconteceu da primeira vez que o ministro desmentiu a ideia de cortar o acesso da população a web?

No momento, tudo não passa de especulação. Nada ainda é certo e a mídia não deveria precipitar-se a anunciar o que ainda não aconteceu. Isso é mais uma demonstração do aumento da prática lamentável do jornalismo declaratório, baseado em afirmações publicadas sem confirmação. O jornalismo baseado em declarações sem comprovações ou verificações é uma das muitas pragas que se vêm consolidando no periodismo contemporâneo. Se o fato não se confirmar, os editores das publicações que afirmaram taxativamente o fim da web no Irã vão ficar em situação perigosa.

O erro da intervenção americana

Por enquanto, a rede iraniana de notícias PressTV ainda está presente na web, patrocinada pelo governo autoritário do país. Faz a propaganda do governo na região e no mundo e oposição a muitos regimes de países árabes. A rede cobre o mundo todo e também está a acompanhar o julgamento do mensalão (4/8). Nada indica que o Irã deixará de manter qualquer tipo de representação oficial na web. Ninguém tampouco pode provar que os iranianos não vão tirar apenas os sites estratégicos da web e manter a censura aos acessos na internet da população. O site Opera Mundi, do UOL (05/03) comentou essa última opção como sendo a preferida do ministro Taquipour. A informação veio da IRNA, a agência de notícias oficial do governo iraniano.

Além da questão da comprovação do abandono da web pelo Irã – coisa que não acredito – faltou nas coberturas informação histórica. Fatos fundamentais da realidade da História recente do Irã não foram abordados em nenhuma reportagem. Em 1953, o serviço secreto inglês e os americanos da CIA orquestraram um golpe que derrubou o governo democraticamente eleito de Mohamed “Sadegh” Mossadegh. O então primeiro-ministro do xá Reza Pahlevi tentou nacionalizar os investimentos estrangeiros em petróleo no país e o Ocidente não gostou nada disso. Os americanos foram convencidos pelos ingleses da necessidade da saída do primeiro-ministro do governo. O golpe acabou com o único governo democrático que o país já teve.

Em 2000, o New York Times publicou um resumo em ordem cronológica do colossal erro estratégico de Washington no Irã nos anos de 1950. No mesmo ano (17/03), a Federação de Cientistas Americanos (FAS) publicou um discurso da secretária de Estado do governo Clinton, Madeleine Allbright, em que ela abertamente admite o erro da intervenção americana que acabou com as esperanças de um Irã democrático e facilitou o acesso ao poder dos fundamentalistas islâmicos:

Fundamentalismo e abertura

“Em 1953 os Estados Unidos tiveram um papel significante na orquestração da derrubada do governo popular do primeiro-ministro Mohamed Mossadegh. A administração Eisenhower acreditava que suas ações eram justificáveis por razões estratégicas; mas o golpe foi claramente um retrocesso para o desenvolvimento político do Irã. E é fácil ver porque muitos iranianos continuam a detestar essa intervenção da América em seus assuntos internos.”

O Irã poderia ser um valioso aliado da América, Europa e outros países do Ocidente se não fosse a desastrada intervenção que derrubou o governo democrático de Mossadegh em 1953. A interferência desastrosa dos britânicos e americanos impediu a afirmação dos valores democráticos no Irã. A ganância pelos lucros do petróleo falou mais alto que a voz da liberdade dos iranianos e os fundamentalistas foram oportunistas e se aproveitaram da desordem interna para convencer a classe média a aceitar qualquer um que derrubasse o infame regime de Reza Pahlevi.

Hoje é fácil para a mídia internacional, imersa em enorme ignorância histórica e submissão a interesses corporativos, assumir uma postura uniforme quando o assunto é o Irã. É um Estado vilão (rogue), como a Coreia do Norte, e fim de história. Mas é outra a realidade. A população do Irã continua mais receptiva ao Ocidente do que seus vizinhos árabes. Os cibercafés, que proliferaram heroicamente até o momento em Teerã, e os hábitos mais liberais da população iraniana, chocam-se com costumes mais conservadores da maioria árabe do Oriente Médio. O país vive uma tensão interna imperceptível ao observador ocidental entre o fundamentalismo islâmico e a tendência histórica de abertura relativa aos costumes ocidentais.

Agitação social

Afirmar o abandono da web pelo Irã pode ser mais um erro da mídia ocidental. A mídia internacional demonstrou baixa capacidade na apuração dos fatos sobre as verdadeiras intenções das autoridades iranianas de isolar o país da web e mostrou que não sabe História para contar uma boa história. Tudo poderia ter sido diferente com o Irã. Se hoje o país é considerado inimigo, devemos agradecer em primeiro lugar aos americanos e ingleses, que impediram o desenvolvimento político do país e o lançaram de volta ao passado com sua participação no golpe de 1953.

O Irã é uma ditadura que não respeita os diretos civis nem a liberdade de expressão. Ninguém pode negar isso. Mas um dia houve uma oportunidade da afirmação do Irã democrático e houve a chance da construção de um regime democrático parlamentarista no país, que foi brutalmente destruída pelo golpe de 1953. Isso também deveria ser lembrado pela imprensa de todo o mundo. É uma dívida que a mídia internacional tem com o povo iraniano oprimido, que um dia sonhou com um regime diferente do que hoje vemos e condenamos.

Não creio que o Irã vá sair da web. O preço seria muito alto. O tenso equilíbrio entre os fundamentalistas e os opositores silenciados pelo regime poderia romper-se e a violência poderia espalhar-se do mundo árabe para o Irã. Por isso não creio que o país vá ficar offline em setembro. Isso poderia trazer um impacto imprevisível para o regime de Teerã. E tudo o que o regime local quer evitar é qualquer tipo de agitação social dentro do país. Os atuais governantes do Irã sabem disso muito bem. Afinal, foi aproveitando-se da agitação popular que eles tomaram o poder.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]