Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sobre a irresponsabilidade em tempos voláteis

É como gritar “fogo!” num auditório superlotado, só para ver a reação das pessoas e se comprazer com o previsível tumulto, de consequências às vezes trágicas: na véspera do início do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, que reúne milhões de jovens em busca de uma vaga na universidade, alguém detonou via Twitter o alerta de que a prova havia sido cancelada e o boato se espalhou como de hábito nesses tempos de alta volatilidade. Era mentira, e o governo agiu com a rapidez possível, não apenas confirmando a realização do exame como informando sobre o rastreamento do tráfego das redes sociais por onde o boato circulou, de modo a punir os (ir)responsáveis.

Dificilmente alguém há de ter deixado de comparecer ao Enem por causa disso, mas não é difícil supor o tumulto causado num contexto de elevada tensão. A prudência elementar manda que não se acredite em informações oriundas de fontes duvidosas, mas adolescentes – especialmente eles, exatamente por essa condição – não costumam se guiar pelo bom senso, menos ainda nesse ambiente virtual que é um convite às reações irrefletidas.

O episódio é apenas mais um entre tantos e mereceria ser considerado como um aspecto relevante do risco permanente que as redes sociais oferecem, com essa tendência à reprodução automática de mensagens, sem qualquer preocupação com sua origem e credibilidade. Não se trata de um problema da tecnologia, evidentemente, mas do uso que se faz dela; porém, num meio em que qualquer um pode publicar qualquer coisa, não se poderia supor comportamento diferente.

Sanções legais são indispensáveis – e recolocam a questão da regulamentação desse território fluido que é a internet –, mas, como é óbvio, só têm efeitos a posteriori: se ninguém pode prevenir o grito de “fogo!” no auditório lotado, resta investir no cultivo incansável do bom senso, por mais que os apelos ao imediatismo apontem no sentido oposto.

O convite ambíguo de Veja

Por isso mesmo, foi surpreendente a iniciativa da Veja de lançar, também via Twitter, um apelo a que os estudantes compartilhassem fotos do Enem no aplicativo Instagram, prometendo a publicação das melhores no site da revista. O enunciado era suficientemente ambíguo para ser entendido da maneira mais díspare, inclusive no sentido prejudicial aos próprios candidatos: afinal, o que seriam “fotos do Enem”? Da movimentação na entrada ou na saída do exame? Daqueles que foram barrados por chegarem atrasados? Do interior das salas? Da própria prova?

Como se sabe, o uso de celulares e aparelhos eletrônicos de modo geral é proibido nos locais em que se realiza o exame. Ainda assim, por pura índole rebelde, por inconsciência ou qualquer outro motivo, sempre haverá quem desafie a ordem e corra o risco de ser flagrado na irregularidade. Desta vez, segundo os jornais, foram 65 desclassificados por postarem imagens nas redes sociais durante a realização da prova.

O convite de Veja foi alvo de muitas críticas nas próprias redes sociais e provocou comentários irônicos: “tentam acabar com o Enem e agora querem faturar”; “[compartilhe fotos] e seja desclassificado depois”.

Mesmo que não tenha havido segundas intenções nesse estímulo aparentemente inocente, mesmo que a intenção tenha sido apenas “faturar” com a hipótese de ampliar a audiência, não é possível ignorar que um apelo assim, ambíguo, ainda mais dirigido a uma multidão de adolescentes, teria tudo para ser compreendido da pior maneira.

Por isso, a publicação das imagens e, ao mesmo tempo, a informação sobre a eliminação de quem cometeu essas irregularidades têm um indisfarçável sabor de profecia autocumprida.

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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]