Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma discussão que não há

Um belo dia, um diretor de marketing acorda depois de um coma de uma década. Ainda sentindo a estranheza da consciência recém-desperta, a primeira pergunta que faz é sobre o desempenho da empresa. Descobre que tudo vai bem porque a companhia já acumulou 1 milhão de likes. “E quanto vale isso?”, pergunta o estranho na maca.

Mesmo quem ficou de olhos bem abertos nos últimos anos e não acha graça na piada acima, sabe pouco como medir esse patrimônio virtual. E o que chama a atenção a esta altura é que, nesse processo de busca frenética por audiência, a ética esteja tão ausente do debate. Por mais que as empresas repitam os mantras que descobriram com seus caçadores de tendências sobre as exigências do consumidor por transparência, credibilidade e engajamento, continuam maculando a reputação por resultados imediatos.

Para restringir a discussão aos blogs de moda, desde que o Conar advertiu em setembro deste ano as blogueiras – Lala Rudge, Thássia Naves e Mariah Bernardes – e a Sephora para que os posts publicitários fossem identificados como tais, que não fossem disfarçados como conteúdo editorial, quase nada mudou. A prática continua a pleno vapor. Por que há tanta resistência em deixar claro o que é informe publicitário? Não só moças sem noção usam desculpas esfarrapadas para se justificar, como os anunciantes insistem nesse modelo mal vestido.

Uma audiência redundante

Liliane Ferrari, especialista em mídias sociais corporativas, editora do site Petiscos e professora na ESPM de um curso sobre a conexão dessas ferramentas com a moda, destaca que muitas empresas sequer fazem a lição de casa. Nem mesmo dar um search no blog para saber o que defendem estas moças antes de colar seu “anúncio com delineador” em textos borrados de erros de português. São pilhas de posts de salsichas em blogs vegetarianos ou de sandálias de plástico para quem só usa Louboutin.

“As marcas que apostam em blogs em busca de audiência estão equivocadas. Quem quer audiência deve investir no intervalo do Jornal Nacional. O blog é uma mídia para conquistar credibilidade e estabelecer uma conversa com seu público. É preferível prestar atenção em quem tem os mesmos 100 seguidores ativos e qualificados todos os dias, do que a quem tem 1 mil acessos aleatórios.”

A questão é que muitas empresas querem vida fácil. Tratam um blog como uma mídia tradicional, em que basta ligar para a agência e publicar anúncios. Investem em posts patrocinados em vários blogs de moda ao mesmo tempo, achando que atingem consumidoras distintas, mas estão só cultivando uma audiência redundante, ou seja, bombardeando as mesmas pessoas que fazem o circuito fashion virtual.

Aumentar as vendas do e-commerce

Para encarar um blog como mídia é preciso um trabalho artesanal, de entendimento do espaço como expressão de uma personalidade, de alinhamento aos critérios de escolha de seu criador. Isso exige neurônio, compromisso e encarece o processo. Mas à medida que as blogueiras it-girls têm como única identidade o consumo e as empresas querem mesmo é vender, para que estabelecer critérios éticos? Com o agravante de que muitas transações são consolidadas num ambiente de informalidade fiscal.

Evidente que os blogs vendem, e ninguém defende que devam ser estritamente espaços de benevolência. O que não dá é para agir sem transparência. Fica difícil acreditar na espontaneidade, um dos principais atributos que os blogs ofereciam em sua essência. Que blogueiro vai poder elogiar qualquer marca ou serviço sem despertar suspeitas sobre a empresa alvo da boa vontade?

Liliane cita a Tracta, marca de maquiagem da Farmaervas, como uma das que fizeram um trabalho direito junto às blogueiras. A fabricante queria aumentar as vendas do e-commerce, que vendia de um ou dois produtos por dia.

Carroças atrapalhavam o trânsito

A primeira etapa foi fazer uma varredura na rede e identificar moças que realmente tivessem um envolvimento com maquiagem, necessariamente não as mais badaladas. Depois, levaram as moças à fábrica, mostraram como faziam seus produtos e propuseram que cada uma criasse uma cor de batom que ganharia o nome do blog. “Mas elas puderam mesmo escolher. Não foi aquele empurra de “fica você com vermelho, você com o rosa’.” Cada uma dessas moças ganhou cachê e uma cota de batons para sortear em seus espaços virtuais, desde que deixassem claro como todo o processo foi conduzido. “As vendas subiram para 200 itens por dia sem que fosse preciso usar modelo do post pago camuflado”, conta Liliane.

Ela usa esse exemplo para mostrar que não basta associar-se a uma blogueira it-girl para alcançar o sucesso. E que esses alinhamentos têm um ônus. Um caso recente ainda localizável, apesar de cirurgicamente removido da rede, é o que envolve o analgésico Neosaldina e a blogueira Mariah Bernardes.

Em um vídeo-depoimento patrocinado pelo medicamento, a moça tinha de contar o que lhe causava dor de cabeça. Destacou que o calor de Araçatuba, cidade em que vive, é um impeditivo para estar com maquiagem e figurinos impecáveis. Ela não pode suar. A cidade, por ser do interior de São Paulo, também teria muitas carroças que atrapalhavam o trânsito e a obrigavam a esperar para seguir em frente. Foi amplamente criticada pela futilidade de seu testemunho não só na rede, como pelos moradores da cidade.

Moda, beleza e mulherada

Mas veja, Mariah foi uma das moças cujo blog foi advertido anteriormente pelo Conar no episódio Sephora. Nem por isso outras empresas deixaram de procurá-la para aproveitar sua “influência” e associar suas marcas ao que ela representa. Será que os anunciantes descobriram que os consumidores não estariam tão interessados assim em transparência e valores? Uma marca pode sobreviver se alimentando do imediatismo?

Priscilla Rezende, do blog “Shame on you, blogueira”, é uma das raras vozes a fiscalizar a falta de limites nessa relação das blogueiras com anunciantes. Em um debate recente sobre ética na blogosfera, ela contou como incentiva seus leitores a delatar a evidência de posts patrocinados e não identificados. E que foi assim que o Conar, órgão que age a partir da denúncia dos consumidores, resolveu se pronunciar no caso Sephora. “Quem se influencia pelos blogs é adolescente que tem crise de identidade. São meninas que acreditam que as blogueiras têm todo dia produtos que não podem viver sem”, avalia ela.

“Por enquanto, o tema ainda é tratado como uma combinação explosiva de moda, beleza e mulherada”, diz Liliane. Talvez quando blogs focados em outros setores menos glamurosos da economia ganharem a mesma repercussão e empresas passarem a se incomodar com os ganhos da concorrência com anúncios camuflados, aí sim a bandeira da ética vai ser desfraldada. Há gente séria e comprometida na rede, basta que os anunciantes assumam de que lado vão ficar.

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[Angela Klinke, para o Valor Econômico]