Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Complexocracia

Como se sabe, Kafka foi o escritor que melhor revelou o sentido (ou a sua falta) do pesadelo burocrático do século 20: o sujeito enredado por tramas impalpáveis, processos labirínticos, a um tempo autojustificados e indiferentes à justiça, emanando de um centro inatingível, se é que existente. A burocracia é a tentativa de racionalização da administração pública, em uma época e lugar – o Ocidente moderno – de crescente complexificação das experiências sociais. Em sua pior versão, o indivíduo não apenas é alienado das leis que regulam a administração de sua vida (da parte dela que pertence ao Estado), como essa regulação se aliena ela mesma de sua finalidade (agilizar os processos e simplificar a vida dos cidadãos) e se acredita um poder que submete os indivíduos, em vez de submeter-se a eles. É o pesadelo kafkiano. Entretanto, sem que esse tenha deixado de existir, a aceleração tecnológica e o predomínio da esfera privada fizeram surgir um novo problema, um novo enredamento dos indivíduos, dessa vez em produtos, técnicas, linguagens e serviços que ameaçam roubar todo o seu tempo e transformar a sua vida na administração dessas aquisições.

Trocando em miúdos. Na minha infância, meu pai tinha uma Belina, onde cabíamos eu, minha irmã e meus pais, mais as malas que levávamos em viagens de férias a Minas Gerais e ao Espírito Santo. Recentemente, eu, que quase não usava carro, tive que passar de um pequenininho para um modelo maior quando nasceu minha primeira filha. E agora, com o segundo filho, tive que trocar por um modelo incivil de tão grande, porque atualmente crianças são obrigadas por lei a andar em cadeirinhas, que ocupam quase metade do banco de trás cada uma. Trocar de carro implica, por sua vez, vender o carro anterior, que implica, por sua vez, pagar eventuais multas vencidas, recuperar um manual que eu não fazia ideia onde estava e fazer uma cópia da chave reserva perdida. E implica também recalcular e transferir o seguro do carro. E tudo isso implica, claro, gastar mais dinheiro, o que implica, por sua vez, ter que trabalhar mais, e entretanto – eis o paradoxo – com menos tempo para fazê-lo, já que boa parte dele é dispendida nesses processos.

Rico é quem precisa de pouco

Sempre tive uma relação retardatária e retardada com gadgets tecnológicos. Só passei a usar e-mails quando se tornou inevitável. Celular, resisti o quanto pude, até que ganhei um, e de lá para cá não deixei mais de usar. Smartphones me pareciam desnecessários e iPods, então, puro mandarim tecnológico. Hoje tenho ambos e ambos me fazem falta caso fique sem eles. Todo mundo sabe a relação dialética dos homens com suas invenções técnicas: tão logo nós as possuímos, elas também nos possuem. O problema, novamente, é que cada um desses gadgets implica: aprender ao menos o básico de sua linguagem para utilizar suas funções essenciais (e quanto mais funções, maior o aprendizado); adquirir e organizar seus acessórios (por exemplo, carregadores de celular e iPods, sempre diferentes e incompatíveis entre si, claro); atualizar periodicamente seus sistemas (o que também exige algum domínio de sua linguagem); ver-se às voltas com problemas de uso ou defeitos técnicos, que, por sua vez, a) exigem um conhecimento ainda mais aprofundado para que se os resolva sozinho, ou b) requerem a presença de um técnico especializado.

Ou seja, cada produto ou serviço adquirido atualmente é uma linguagem em si. A especialização do trabalho e o desenvolvimento tecnológico tornaram muito difícil que um indivíduo conheça as linguagens todas em que está envolvido. Há, sei lá, 50 anos, um sujeito qualquer poderia entender o mínimo de mecânica para resolver um probleminha no carro; um mínimo de hidráulica para consertar um vazamento – mas, hoje em dia, os produtos e serviços se multiplicaram, bem como sua tecnologias se sofisticaram, exigindo conhecimento aprofundado. É verdade que o Brasil é um país de tradição senhorial, onde o trabalho manual foi sempre delegado aos empregados (eu sou herdeiro dessa tradição, como a maioria, creio, dos que me leem aqui). Mas quem, mesmo num país de gente faz-tudo como os EUA, é hoje capaz de conhecer bem todas as linguagens em que está envolvido? Eis o impasse: para conhecê-las, seria preciso dedicar um enorme tempo a seu aprendizado, que, uma vez realizado, implicaria economizar tempo; mas não se tem tempo para isso, então se segue alienado, e isso implica em maior gasto de tempo (e dinheiro) a cada problema ou defeito de uso.

Na complexocracia da vida contemporânea sob o império da técnica é oportuno lembrar a antiga máxima (de Seneca, salvo engano): rico é quem precisa de pouco.

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Francisco Bosco é colunista do Globo