Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um e-mail da Nigéria

Todo mundo já recebeu o e-mail. A filha do ditador nigeriano tenta alcançar uma conta em banco suíço onde se encontram milhões, quiçá bilhões, de dólares. Às vezes, o país africano é outro. Noutras, não é filha, mas ex-ministro, antigo governador. Alguém com autoridade e ligações. A pessoa precisa de ajuda. Um adiantamento módico, coisa de alguns mil dólares, pode ser menos, para se desvencilhar discretamente de um empecilho burocrático. O feliz eleito, que recebeu a mensagem, tirou a sorte grande. Gasta um pouco para adiantar o serviço, divide o botim no final. E, cá entre nós, pensamos todos o mesmo: como é que alguém pode cair nessa? Trata-se do mais conhecido golpe do vigário da era da internet. O golpe, porém, não pertence à era digital. E os vigaristas, quem diria, sabem que a picaretagem está óbvia no seu método. Isso faz parte de toda sua estratégia.

A origem histórica do golpe foi levantada por Robert Whitaker, historiador e jornalista, que publicou artigo na revista The Appendix. É coisa velha, vem do tempo em que Napoleão Bonaparte invadia a Península Ibérica e d. João VI reunia sua corte rumo ao Rio. Ela se popularizou um pouco depois, na Londres da Era Vitoriana. A polícia britânica o conhecia por Golpe do Prisioneiro Espanhol.

Os casos registrados entre inícios do século 19 e meados do 20 são inúmeros. Neste período, a Espanha envolveu-se em inúmeros conflitos, o último deles sendo a Guerra Civil. Num tempo sem e-mail, as mensagens seguiam pelo correio normal. A história, sempre a mesma. O autor era um espanhol feito prisioneiro político por seus inimigos. Às vezes, tinha uma filha no início da adolescência e pedia ao gentleman vitoriano que buscasse seu dinheiro guardado num banco específico para criá-la. Noutras, era mais direto. Precisava do dinheiro para pagar o resgate que lhe garantiria a liberdade.

É dura a vida do vigarista

O que o esquema tinha sempre em comum é que um pequeno adiantamento se fazia necessário para alcançar a fortuna. Os vigaristas não eram da Espanha, diz Whitaker. Eram ingleses, mesmo. Só se faziam passar por espanhóis num tempo em que o país estava desestruturado. Exatamente como ocorre, hoje, em boa parte da África. Apelavam quase sempre para a honra do destinatário, coisa que no tempo comovia. E tinham uma pitada dos romances da época, com órfãs indefesas, intriga internacional e muita injustiça. Soaria bem naquele universo descrito por Charles Dickens ou Alexandre Dumas.

Devemos ser mais cínicos. Os nigerianos que reeditam o golpe do prisioneiro espanhol, afinal, apelam para nossa ambição. Ninguém ficará sabendo, dizem. Por mil dólares resolvemos isso rápido. Cristopher Chabris e Daniel Simons, do Wall Street Journal, descobriram dentro da Microsoft o matemático Cormac Herley que se fez uma única pergunta: por que tanta gente cai num golpe tão óbvio? De acordo com um único estudo, vítimas gastaram US$ 9,3 bilhões só em 2009. Segundo Harley, não é por amadorismo. O truque da eficiência é justamente a obviedade.

Existe, na Nigéria, uma indústria bilionária que vive do golpe e distribui, diariamente, milhões de mensagens. A vantagem é que, num universo tão grande, alguns otários certamente aparecerão. A desvantagem é que, para dar certo, o autor do golpe precisa dedicar tempo. Não é raro que, entre o contato inicial e a primeira transferência bancária, sejam gastos vários meses. Dá trabalho ser vigarista. E é justamente porque dá trabalho que os vigaristas precisam de um bom filtro. Por exemplo: um e-mail que conte uma história tão obviamente falsa que motive apenas os muito ingênuos a responder. Atinge milhões, mas é uma parcela muito pequena que inicia contato. Os vigaristas passarão horas de seus dias respondendo. Serão ainda mais óbvios nas primeiras trocas. Querem filtrar os que são apenas um pouco ingênuos. Ao final do processo sobram aqueles tornados cegos pela riqueza fácil e sem muito traquejo do mundo digital ou do real.

É dura a vida do vigarista. E a internet, que muitas vezes parece trazer inovações para o mundo real, apenas recria, em maior escala, o que já havia.

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Pedro Doria, do Globo