Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Black Bloc virtual

O número de blogs em todos os idiomas é hoje 60 vezes maior do que era há três anos. Somam-se mais de 40 milhões de páginas. O site Technorati, indexador mundial de blogs, estabelece queu são criados 75 mil deles por dia — um novo blog a cada segundo. Há um blog para cada 25 pessoas on-line.

Agora dados do Pew Internet & American Life Project: 57 milhões de internautas dos Estados Unidos lêem blogs diariamente. É gerado 1,2 milhão de novos conteúdos por dia,ou 50 mil por hora. O número de pessoas com acesso à internet no Brasil ultrapassou pela primeira vez a casa dos 100 milhões, segundo estudo divulgado pelo Ibope Media no ano passado. Os dados referentes ao primeiro trimestre de 2013 indicam que o país tem 102,3 milhões de internautas.

O quadro animador, para democracia midiática pelo menos, traz surpresas. Maior consultor de mídia do mundo, o professor brasileiro Rosental Calmon Alves, da Universidade de Austin, há 10 anos criou o termo “eucentrismo”. Quando se deram conta de que suas vendas colossais murchavam, às vezes, à irrelevância, os grandes grupos midiáticos tecnicamente passaram a adotar um “vem pra Caixa você também”.

Termos associados ao “eu” coalharam a midocracia digital: Youtube, My Myspace, o panteão Apple anexou o vocábulo “eu” todo o seu universo de produtos, os “I” da vida.

Jornalista sempre repeliu leitor. Afinal ele, com suas fontes, sua “puissance”, seu ego, não poderia se comprazer em ter seu destino nivelado com os mortais públicos. “Leitor que escreve para jornal é louco”, notava Paulo Francis.

Fim de era

Postos os pratos, e galinhas de ouro midiáticas se desmilinguindo a olhos vistos, a mídia tradicional teve de degenerar naquilo que os jornalistas sempre repeliram: abanar o rabo ao leitor. Escorregadios, sorbonistas e carbonários tiveram de se sobrepor ao ruído das massas.

E assim, não mais que de repente, os sites das grandes mídias passaram a oferecer, como liquidações do mês, a possibilidade da participação do público em seus construtos. A mídia passava a ser “eucêntica”, como notou Rosental há tantos anos.

Há dez anos, a primeira fase era oferecer Syndication, os RSSs, pelos quais o público poderia editar ele mesmo as páginas. Seguiram-se outros atrativos de ocasião: “curta”, “compartilhe”. Estamos na fase do “faça”: produções, textos, filmagens e fotos do povão são bem vindos como nunca. A era do crowdsourcing fez o jornalista descer do seu pódio, ainda que irresoluta e lamentosamente. Ok, público, você venceu.

Abanar o rabo ao público não é apenas um atributo da democracia século 21: é um modelo de negócio sem o qual as pernas midiáticas não andarão mais.

Dados do Escritório Internacional de Auditoria de Circulação (IFABC) mostram que essa tendência acabou em 2011. Agora, a circulação de jornais impressos está em queda em quase todas as grandes economias. Os membros do IFABC em 23 países venderam 123,5 milhões de jornais por mês em 2011, quase 2 milhões a menos do que em 2010, uma queda de 1,6%. Quase todos os países incluídos nas estatísticas reportaram queda, com exceção da Bélgica, do Brasil, dos EUA e da Malásia, sendo que o aumento desta não passou de 0,08%, cerca de 3 mil jornais. 

Entre 2010 e 2011, 44 desses jornais reportaram variadas taxas de aumento de circulação, e o resto registrou variadas taxas de declínio.

O último relatório da ANJ, Associação Nacional dos Jornais, diz o seguinte: o investimento publicitário total brasileiro registrou, em 2012, um aumento superior ao apresentado pelo Produto Interno Bruto. De acordo com o Projeto Inter-Meios, o investimento publicitário total alcançou R$ 30.156.164.436,46, enquanto o investimento nas edições impressas dos jornais foi de R$ 3.388.385.288,78. Em 2011, esses dados foram, respectivamente, de R$ 28.454.349.403,81 e R$ 3.365.800.705,90. “O ligeiro crescimento do investimento publicitário do meio jornal não foi suficiente, porém para compensar o efeito inflacionário, o que tem sido uma constante desde 2008, quando o investimento publicitário em jornal, corrigido pelo INPC alcançou R$ 4.241.199.055,96”.

A galinha dos ovos de ouro, em sua rotunda obesidade, está minguando. O valor da letra impressa vinda do jornalista, aos olhos do povão, não vale mais nada. Mas o povão não-jornalista está cometendo erros piores do que toda a história da imprensa.

Quando Gutenberg inventou a imprensa por volta de 1450, um monge levava um ano para copiar um único exemplar da Bíblia. Em seu primeiro ano de trabalho, com sua máquina de impressão, Gutemberg produziu 180 Bíblias. Antes disso, a Universidade de Oxford, por exemplo, possuía apenas 122 livros, e o preço de cada um equivalia a uma fazenda de 200 alqueires. Por volta de 1501, cinqüenta anos após a invenção de Gutemberg, aproximadamente um milhão de cópias de 27 mil livros editados já circulavam pela Europa, e segundo o Oxford English Dictionary, o vocábulo “fato” aparece na língua inglesa apenas no século XVI, cem anos após a invenção de Gutemberg e com a seguinte definição: “algo que realmente ocorreu, com testemunho particular, mediante observação ou testemunhos autênticos, sumamente opostos às meras inferências”.

Ódio ao jornalista

O consumidor de notícia ainda não aprendeu a dar nexo, dimensão e hierarquia aos fatos. Poderá, até, registrar cm excelência em seu I-phone um acidente na estação de trem. Mas isso não o satisfaz. A bola da vez é justamente ter orgasmos com o comentário falso.

Novidade na Justiça brasileira é o número de ações que pleiteiam aos provedores os números de IP dos comentaristas. Há uma enxurrada de canalhas, muitos a soldo, que compõem uma indústria de comentários mentirosos e sem identificação: o black bloc virtual é o pior dos canalhas. Trata-se daquilo que Noam Chomsky adotou do pai do jornalismo americano, Walter Lippmann: “fabrication of the consent”. A fabricação de falso consenso entre comentaristas que não de identificam é a bola da vez nas eleições 2014. Falsos comentaristas são pagos por governos para confundirem razões de estado ( e de partido) com demandas populares.

Odiar jornalista é um código de comportamento já vasto e sabido entre gente famosa.

Aos 71 anos de idade, perguntado por um repórter da Reader’s Digest sobre qual seria a fórmula para o sucesso, Einstein respondeu: “Suponhamos que X representa trabalho, Y representa divertimento e A representa sucesso. Nesse caso, A é igual a X mais Y mais Z”. O repórter volta à carga. “Mas o que é Z, dr. Einstein?”. Ao que ele devolve: “Z significa manter a boca fechada”. (in Brennan, Richard Heisenberg probably slept here, John Wiley & Sons Editors, New York, 1997, p. 55).

Já a análise das Obras Completas de Jorge Luis Borges revela um desapreço universal ao jornalismo. “A imprensa, agora abolida, foi um dos piores males dos homens, já que tendia a multiplicar até a vertigem textos desnecessários” (in “Utopia de um homem que está cansado”, O livro de Areia, 1975). Ou, por outra: “Não me envergonho de ter querido ser jornalista, rotina que agora me parece trivial. Lembro ter ouvido Fernández Irala, meu colega, dizer que o jornalista escreve para o esquecimento e que seu desejo seria escrever para a memória e para o tempo”( in “O Congresso”, O Livro de Areia, 1975). Ainda, na mesma obra, Borges orna o conto “Avelino Arredondo” com o extrato “ávido leitor de jornais, custou-lhe renunciar a esses museus de minúcias efêmeras”.

O consumidor de notícias, seja famoso ou não, jamais perdoou os erros e desmandos da mídia. Só que, ironia da história, este consumidor está tendo, por razões de sobrevivência mercantil das mídias, um papel tão importante quanto o do jornalista profissional.

E não está sabendo se comportar: pelo menos até que tire a máscara e passe a fazer comentários dando a cara a tapa: como se sabe, algo para poucos, habitantes que são desse terreno, por ora, lúbrico, pantanoso.

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Claudio Tognolli é jornalista