Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O ano em que o selfie ‘ficou mal na foto’

Na última segunda-feira [15/12], enquanto um homem mantinha 17 reféns no interior de uma cafeteria em Sydney (Austrália), num episódio que terminou com três mortos, quase uma dúzia de pessoas do lado de fora aproveitava a ocasião para registrar selfies com o estabelecimento ao fundo. Criticada nas redes sociais, a atitude do grupo é só mais um episódio emblemático de uma moda que desafia o bom senso. Para não poucas pessoas, o impulso de fazer autorretratos – um dos hábitos mais representativos do nosso tempo – tem sido irrefreável até mesmo em momentos claramente inoportunos, como velórios e acidentes.

Se 2013 foi o ano em que a selfie estourou (e virou verbete no dicionário de inglês Oxford), 2014 foi a consagração. Em março, o autorretrato registrado na cerimônia do Oscar pela apresentadora Ellen DeGeneres virou a imagem mais compartilhada no Twitter, com 2,5 milhões de retuítes, e teve mais de 2 milhões de curtidas no Facebook.

Levantamento do microblog mostra que o termo foi mencionado 92 milhões de vezes este ano – aumento de 500% em relação a 2013.

Psicoterapeuta e membro do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ), Alexandre Trzan afirma que o fenômeno em torno da selfie sem dúvida diz respeito à importância que as mídias sociais ocupam hoje.

– Tem a ver com a necessidade de aceitação. As pessoas querem mostrar que são alegres, bem-sucedidas, querem passar a imagem daquilo que têm de melhor. A selfie leva isso a outro patamar, já que possibilita curtidas e comentários em tempo real, o que as mantém estimuladas – explica Trzan.

Com tanto “estímulo”, é fácil derrapar. Em julho, durante a Copa, o primeiro atendimento ao craque Neymar, ferido por um jogador colombiano durante uma partida, foi filmado por uma enfermeira, que registrou a própria imagem. Foi demitida. Em agosto, o registro feito pelo fotorrepórter Pedro Kirilos, do GLOBO, que mostra uma mulher fazendo selfie diante do caixão do candidato à presidência pelo PSB, Eduardo Campos, morto num acidente aéreo, virou meme – e alvo de milhares de críticas.

Também em agosto, a jovem Xenia Ignatyeva, de 17 anos, morreu ao cair de uma ponte em São Petersburgo, na Rússia, enquanto tirava uma foto sua com o celular. A lição não foi bem compreendida. Menos de três meses depois, a estudante de enfermagem Sylwia Rajchel, de 23 anos, despencou de uma ponte sobre o rio Guadalquivir, em Sevilha, na Espanha, na mesma situação.

Para Trzan, é o estímulo ininterrupto e em tempo real que tem feito as pessoas perderem a percepção sobre o que é aceito socialmente ou mesmo perigoso.

– Por sua agilidade, as redes sociais fazem com que as pessoas não meçam as suas atitudes e palavras – afirma.

“Registrar a própria existência”

Para a pesquisadora de redes sociais Rosana Hermann, selfies são a nova face de uma compulsão inerente à natureza humana: registrar a própria existência, deixar um legado. De acordo com ela, se, antes, fazíamos marcas em cavernas, hoje queremos ser parte de “acontecimentos”.

– Tanto faz se as pessoas estão em um desastre ou em um velório, elas querem estar sob os holofotes – afirma Hermann. – O curioso é que a selfie matou o espelho. Esse objeto era usado para que nos víssemos e aprovássemos. Agora, usamos o autorretrato para que nos aprovem. Publicamos o espelho para os outros, de tanto medo que temos de refletir.

Criador do serviço Printgram, que imprime selfies publicadas no Instagram, Bruno Bezerra diz observar em seu dia a dia os excessos da febre do autorretrato digital.

– Com frequência, observamos as pessoas tirando selfies durante a cerimônia de casamento dos outros, com a noiva passando ao fundo, atrapalhando a organização – descreve.

Para Pedro Burgos, autor do livro “Conecte-se ao que importa – Um manual para a vida digital saudável”, falta uma reflexão da sociedade sobre os comportamentos digitais:

– A mãe pode repreender o filho quando ele cutuca o nariz com o dedo, mas não há uma noção mais pacificada sobre quando se pode ou não tirar selfie – afirma ele, culpando em parte as empresas de tecnologia, envolvidas em disputas pelas câmeras mais potentes nos celulares.

Para Rosana Hermanna, 2015 vai ser mais um ano de muitas selfies:

– Primeiro foram aquelas no espelho. Depois, com famosos. E em lugares turísticos, as radicais… Agora são as selfies “jornalísticas”. Selfie no velório, no sequestro, na urna eletrônica, no enterro do político… Isso ainda vai longe!

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Thiago Jansen, do Globo