Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Quem tem medo de saber se é digital?

As aparências enganam. Foi o que descobriu a Guascor, uma geradora de energia térmica, ao medir a familiaridade de seus funcionários com a tecnologia na pequena Afuá, de quase 35 mil habitantes. Localizada a noroeste da Ilha do Marajó, no Pará, a cidade foi construída sobre plataformas de madeira e a maioria dos seus habitantes mora em palafitas – precauções para evitar que os rios próximos inundem ruas e casas na época da cheia. Como carros e motos são proibidos por lei, o único meio de locomoção é a bicicleta. “Até o transporte escolar é feito dessa maneira”, conta Marcela Bragatto, diretora de comunicações da Guascor.

O cenário, convenhamos, fazia prever um grau baixo de conhecimento tecnológico entre os funcionários de campo que atuam em Afuá e outras localidades distantes atendidas pela empresa, como o interior do Acre e de Rondônia. A Guascor atende a 53 usinas e tem 600 funcionários: 70% deles estão no campo operacional.

A surpresa, feito o diagnóstico, é que 100% deles tinham celular, acessavam e-mail e navegavam pelas redes sociais. Em Afuá, em particular, lanchonetes colocam seus cardápios no Facebook e os “bicitaxis” – bicicletas que funcionam como taxis – atendem pelo WhatsApp. É desse jeito que os executivos da Guascor vão para a usina quando chegam à cidade, famosa por um camarão “melhor que lagosta”, afirma a executiva. Em julho, durante o festival do camarão, nem as bicicletas circulam, de tantos turistas nas ruas.

“Percebemos que o acesso à informação não representa mais um obstáculo. O real desafio é como fazer o melhor uso dos dados”, diz Marcela. “Isolado não significa desinformado.”

Como a Guascor, outras empresas estão se animando a medir seu grau de maturidade digital. A ideia é de Francisco Gioielli, um ex-executivo do Google que se uniu a dois sócios para criar o +Digital Institute (lê-se “plus” digital). A empresa novata desenvolve os questionários e os aplica por meio online. O produto levou um ano para ficar pronto. Até chegar à versão final, lançada em setembro, a metodologia passou por uma dezena de versões prévias. As empresas podem estabelecer filtros para ver os resultados por departamento, nível hierárquico, região geográfica e outras variáveis.

A Geofusion, uma empresa de geomarketing, ainda está colhendo os resultados da pesquisa, mas já detectou diferenças significativas entre os departamentos. A companhia usa mapas e informações geográficas para ajudar os clientes a decidirem o melhor lugar para estabelecer pontos de venda e tomar decisões estratégicas a partir de critérios como renda da população local, competição na vizinhança etc. São 350 fontes de dados diferentes.

Tráfego digitalizado

A pesquisa da +Digital mostrou que a área comercial faz bom uso das redes sociais – para entender melhor o perfil dos clientes, buscar executivos etc. –, mas essa ainda não é uma prática disseminada em toda a companhia. As ferramentas de compartilhamento, que ajudam no trabalho em grupo, também não são usadas de maneira homogênea. “Algumas equipes estão melhores que outras”, diz Pedro Figoli, diretor-presidente da companhia.

“Às vezes, o fato de uma área da empresa não saber usar uma tecnologia acaba prejudicando o uso do sistema como um todo”, afirma Gioielli. É por isso que o teste precisa ser aplicado a toda a companhia. Pelo menos 30% das respostas de cada área é suficiente para obter um índice relativamente apurado.

Na Guascor, controlada pelo grupo americano Dresser-Rand, outra lição assimilada é que a maturidade tecnológica ajuda a encontrar formas inusitadas, e simples, de resolver problemas do dia a dia. A companhia mantém há algum tempo um concurso de fotografia entre seus profissionais. As melhores imagens são selecionadas para integrar o calendário anual da empresa. A despeito do caráter lúdico, o concurso estimula uma prática que se mostrou muito útil depois da popularização dos celulares com câmera. Em vez de enviar relatórios de várias páginas para explicar o problema de um gerador, por exemplo, os funcionários passaram a mandar fotos das peças avariadas para o setor técnico. O resultado foi ganho de tempo e custo mais baixo. Para viajar de Belém a Afuá, um técnico precisa percorrer uma trajetória de quatro dias de barco. Com a foto em mãos, o técnico não precisa sair de onde está, se o caso se mostrar simples de resolver. Em vez disso, ele explica ao funcionário de campo como resolver o problema com o material que está mais a mão. “Isso dura meia hora e não há interrupção no fornecimento de energia”, diz Marcela.

A +Digital não pretende concorrer com consultorias como Accenture e Capgemini, ou empresas de tecnologia como a Microsoft, que fazem grandes projetos de adaptação digital para companhias. A ideia é estar um passo antes, diz Gioielli: traçar um “hemograma digital” que os “médicos”, como as companhias citadas e suas revendas, possam usar para elaborar diagnósticos e recomendar tratamentos. É para essas empresas de serviços que o foco de vendas está dirigido, embora a +Digital já tenha concluído cinco projetos piloto e obtido dois clientes que aplicaram a metodologia a seus próprios negócios.

A Geofusion, que tem 350 clientes e oferece software como serviço – o usuário paga uma mensalidade para usar o sistema – pretende aplicar os resultados do levantamento na definição de seu orçamento para 2015. Entre as prioridades na área de tecnologia estão ferramentas que ajudam a extrair automaticamente dados das redes sociais e a melhoria dos recursos de mobilidade.

Na Guascor, a percepção é de que um retrato mais fiel da exposição tecnológica torna menos arriscada a tarefa de decidir onde investir na área de tecnologia. Segundo Marcela, a companhia ganha mais confiança para levar adiante projetos de educação a distância e adotar ferramentas de medição digital porque sabe que o funcionário já está acostumado a lidar com o teclado do celular e com o envio de informações por meio eletrônico. É outro aprendizado com repercussões práticas. Com sede em São Paulo, a companhia chegava a esperar dois meses para receber os documentos que saíam de Afuá. Hoje, parte desse tráfego foi digitalizado e a papelada que ainda depende de assinaturas e carimbos leva 30 dias, em média, para chegar – ainda é bastante tempo, mas a metade do prazo anterior.

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João Luiz Rosa, do Valor Econômico