Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ilusão do acesso ao Santo Ócio

O fenômeno já vem sendo apontado e repetido faz alguns anos, mas sua intensidade está se ampliando gradativamente: é a formação da geração Google. Se for preciso explicar o que é Google a alguém, que é uma página multifuncional da rede mundial de computadores, é porque a pessoa é excluída desse movimento englobante, ou, no mínimo, não faz parte da geração internética, em crescimento vertiginoso desde a década de 1990.


Se a globalização, com a TV, trouxe debates sobre a preservação das identidades locais e o direito às manifestações das minorias, o novo momento traz uma via de dupla mão, onde há forte trânsito de informações de múltiplas origens, mas tendencialmente integradas à lógica do capitalismo. Mesmo que num tráfego de duas direções, não se trata de um equilíbrio de influências. A internet e os softwares que lhe dão base permitiram a sedimentação de novas estruturas e relações sociais, só que preferencialmente no âmbito do sistema.


Todavia, os reflexos desse contexto são ainda incertos. Se e geração Coca Cola marcou um forte estágio do capitalismo junto à massa, os novos adventos explicitam o espaço dinâmico de uma comunicação em rede – mas não necessariamente mais evoluído. Não obstante as possibilidades de abertura sejam maiores, pela questão dos custos reduzidos de provimento de conteúdo, via de regra a rede é o lugar de reafirmação do hegemônico.


A ilusão da autonomia de escolha


É importante refletir que muito do apoio às novas lógicas da atualidade, sem questionamento de seus caminhos e desvios, vêm embasadas no princípio simples de progresso. Ele projeta que o homem está em uma constante evolução, em permanente melhora. Não se está fugindo, de certa forma, do velho tema do homem como cyborg, mas isso não se faz como sinônimo de melhoria: o que há, é inovação, produção com interesse segmentado e com foco em atender a certas demandas – não necessariamente em benefício da coletividade.


Fundamenta-se a aceitação do novo como superior ao antigo, em contraponto a períodos em que a tradição era vista como célula magna da sociedade e o mudar era sinônimo de degeneração, como em lógicas atribuídas à Idade Média. A sociedade contemporânea tem necessidade de pensar que está mais dentro do futuro do que no próprio presente. Na busca por sua otimização, dá novo impulso ao consumo, motor da obsolescência forçada.


Um foco dessa geração Google é a valorização do espaço digital. Os novos processos de sociabilidade e passagem de informação quebram padrões tradicionais de consumo de mídia. A grande diferença, em comparação com o recente período em que a televisão imperava sozinha como grande meio de visão telescópica da sociedade, é que, com a internet, gerou-se a ilusão da autonomia de escolha do usuário, que estaria dotado de independência da vontade da mídia e não teria o engessamento de grades de programação ou poucas opções de conteúdo.


O acesso à concretização dos desejos


Não por acaso, a TV on demand traz como grande fetiche o amplo direito à escolha, uma das buscas das emissoras televisivas para adaptarem-se ao novo mercado midiático, decorrente da Fase da Multiplicidade da Oferta, atual momento histórico de produção, distribuição e consumo cultural, marcado pelo aumento da possibilidade de opções ao usuário, sem implicar, necessariamente, em diversidade de concepções de mundo. Nos dois casos ainda há uma realidade mediada, mesmo que calcada em novas bases e em múltiplos emissores dialogando por um sistema que, deve-se admitir, tem suas regras e organizadores.


O Google encabeça iconicamente esse efeito de internetização, que se espalha com velocidade vertiginosa entre as classes e seus segmentos. A forte convergência proposta pelos computadores faz esse conglomerado de comunicação, que é o Google, simbolizar virtualmente a idéia da pseudo-unificação de formas de diálogo e acesso a dados e serviços. Chega a transpassar lógicas sacras de uma divinização do ser científico, que toma o lugar de Deus, já que seu processo de evolução, irrestrito e sem volta, é questão de tempo.


A lógica do progresso, neste sentido, é mais um impulso otimista do que uma realidade concreta. Não parece casualidade que este pensamento ganhe tanta força quando o ser humano passa a dispor de uma tecnologia onde o virtual confunde-se tão mais facilmente com o que a mente desejaria que fosse real, como uma realidade paralela do extenuante contexto físico. O poder do simples acesso à concretização dos desejos, nem que seja no mundo dos bytes, é um dos sonhos que ganha versão 2.0 na contemporaneidade.


Um lugar de legitimidade social


Viver pelo acesso mais fácil, pelo uso constante de tecnologias avançadas, mascara o excesso de trabalho do presente, que se disfarça na promessa da conquista do Santo Ócio, tão desejado no passado. A cafeteira faz café mais rápido e o computador permite ler a notícia de modo quase instantâneo, por exemplo, e todo o tempo restante disponível, que foi poupado pela máquina, ao invés de servir para a fruição do indivíduo, acaba dinamizado como reorganização do período de laboro, agudizando o processo de extração da mais-valia.


Ter maior tempo de vida e amplificado conhecimento científico não garante à sociedade contemporânea estar fora de uma crise. Nem estar na geração Google dá certeza de que se vive em um mundo melhor do que quem estava na geração Coca Cola. Provocando e adaptando-se às novas tendências, o capitalismo renova-se. O Santo Ócio apresenta-se mais como pecado do que como virtude a ser realmente almejada. De outro modo, a aceitação do descanso como benéfico no capitalismo vem mais como elemento de auxílio à produtividade do trabalhador do que como um objetivo a ser valorizado.


A velocidade da transmissão da informação é benéfica, mas são omitidos os efeitos colaterais dessa injeção de otimismo virtual. Numa trajetória onde a ciência garantirá uma saúde mais plena (dialogando com o mito da imortalidade), gerando técnicas sempre mais eficazes para facilitar a vida (dando base à crença na diminuição do trabalho, mas se esquecendo que o esforço mental também o é), trazendo informação irrestrita (construindo em máquina o deus que tudo sabe e tudo vê) e o desejo pela busca de novos mundos, tudo faz parecer que o amanhã realmente será melhor que o hoje.


A esperança de aproveitar mais a vida e poder estar com um ócio produtivo vem como objetivo que nunca se realiza, pois se evidencia mais como isca do que como meta. Não se trata de abandonar as habilidades do homem, mas de sempre estar consciente que ele continua a ser somente ser humano. Além disso, cabe questionar não só que se trata de um discurso pouco implementado: ocorre que, sendo produtivo, o ócio não se constitui plenamente enquanto ócio, na medida em que encontra seu novo lugar de legitimidade social.

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Respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e mestrando no mesmo programa da mesma instituição