Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A novilíngua na cobertura das UPPs

O jornalismo pode operar milagres. Fazer desaparecer fatos que ele mesmo noticia para poder sustentar a versão mais adequada aos interesses de quem o sustenta.

É assim na cobertura da mais recente investida policial na Rocinha e no Vidigal, no Rio, agora em nome da “pacificação” dessas áreas.

A Coopa Roca, cooperativa de costureiras e artesãs da Rocinha, já mereceu inúmeras matérias em jornais, enaltecendo a qualidade do trabalho daquelas mulheres e seu “espírito empreendedor”. Um dos mais recentes títulos de reportagem era: “Moda do morro para o mundo“, bem agora, em agosto de 2011.

A Rocinha é tradicional destino turístico de estrangeiros que vão de jipe numa breve incursão por esse maravilhoso mundo exótico ao sul do Equador e se deslumbram com a vista e os contrastes sociais, levando para casa muitos vídeos e fotos.

No Vidigal, o grupo de teatro Nós do Morro existe desde 1986 e passou a ser patrocinado pela Petrobras em 2001. Foi objeto de inúmeras reportagens, ganhou vários prêmios, revelou muitos talentos que hoje atuam em cinema, teatro e TV, inclusive na Rede Globo.

Chave do entendimento

De repente, tudo isso foi esquecido às vésperas da ocupação desses dois morros pelas forças de “pacificação”.

As duas comunidades foram apresentadas como reféns do tráfico de drogas e a ação policial, como uma (ou melhor, a única) medida para a libertação dessas comunidades do “jugo dos fuzis”.

Se é assim, como se justificam as referências elogiosas a projetos sociais como esses? No Globo, que investiu pesado na caracterização da Rocinha como um inferno dominado pelo crime, a única menção a essas iniciativas durante a onda pró-invasão policial saiu apenas na versão on line do jornal, no dia 12 de novembro (ver aqui). Com o detalhe de que a frase de abertura reforça o estereótipo: “A Rocinha e o Vidigal produzem muito mais do que violência”. Ou seja: produzem principalmente violência…

Entender a cobertura sobre as UPPs significa assumir os pressupostos do duplipensar da novilíngua de George Orwell: a capacidade de assumir mentalmente duas crenças distintas. Com o cuidado de exibi-las alternadamente, de modo que uma não contradiga a outra.

Então, agora é hora de demonizar o morro, mostrá-lo como o lugar do mal, no qual as forças do bem estão entrando para um saneamento que será benéfico a todos. Isso implica esquecer a vida real que existe naquelas circunstâncias, e que tampouco as reportagens sobre a Coopa Roca ou sobre o Nós do Morro foram capazes de revelar, porque aí se tratava de enaltecer o lado “bom” da comunidade pobre.

Agora, na hora da ocupação dos morros pelas forças “da paz”, esquece-se de tudo o que foi noticiado sobre essas comunidades, fora dos conflitos armados que duram décadas e já vitimaram inúmeros “chefes” do tráfico.

É o que permite a euforia do congraçamento entre imprensa, polícia e governo em nome da suposta pacificação de áreas que ameaçam, real ou imaginariamente, os moradores de classe média e alta da base desses morros, em São Conrado e na entrada da Barra da Tijuca.

O duplipensar pode ser a chave da compreensão do tipo de cobertura de eventos como esse.

 

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O jornalismo veste a camisa – S.M.

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[Sylvia Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]