Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A objetividade e a autoria compartilhada

O tema principal do congresso era a credibilidade na informação online, o assunto que dominou as discussões acabou sendo a relação entre blogs e jornalismo, mas o que preocupou mesmo os participantes foram as mudanças que a tecnologia está provocando em valores da imprensa com objetividade, isenção e direito autoral.

Esta foi a síntese geral do congresso sobre blogs, jornalismo e credibilidade (‘Blogging, journalism & credibility: battleground and common ground’, na Universidade de Harvard, EUA) que colocou frente a frente, pela primeira vez, a nata dos editores de blogs jornalísticos, executivos da grande imprensa norte-americana e acadêmicos considerados referência na área das novas mídias. O professor Jay Rosen, diretor da Faculdade de Jornalismo da Universidade de Nova York, produziu uma síntese interpretada do congresso que está publicada no blog Pressthink, em (http://journalism.nyu.edu/pubzone/
weblogs/pressthink/2005/01/26/brkm_own.html
).

O encontro promovido pela Universidade de Harvard foi considerado o mais importante evento sobre o futuro do jornalismo e da imprensa já realizado até agora, embora a sua proposta original tenha sido bem mais modesta. Ocorre que as discussões simplesmente atropelaram a pauta formulada pelos organizadores, que foram obrigados a estender o encontro por mais meio dia e, ainda assim, não foi possível esgotar toda a agenda.

O acompanhamento de um evento como esse foi, em si mesmo, uma experiência inovadora. Além da transmissão ao vivo em áudio pela internet, era possível seguir os debates pela transcrição feita por voluntários e também pelos postings em blogs dos participantes presenciais e assistentes situados a milhares de quilômetros de distância.

Era informação demais em tão pouco tempo, porque uma hora de debates ao vivo, na verdade, rendia outras três a quatro horas de leitura de mensagens postadas nos blogs dos assistentes. A síntese dos debates mostrou que os participantes relegaram a questão da credibilidade a um plano secundário porque perceberam que ela não poderia ser redefinida antes de ficar clara qual será a evolução futura do jornalismo na era digital.

Autoria coletiva

Houve consenso de que o modelo atual de certificação de veracidade já não funciona mais. Os executivos da mídia acham que o problema é causado pela falta de controles mais rígidos na produção das notícias, enquanto os blogueiros e pesquisadores de novas mídias acreditam que a questão é mais complexa, pois, segundo eles, estaria havendo uma substituição de padrões de credibilidade fixados por grupos restritos de pessoas, em beneficio de percepções coletivas.

‘Ponto de vista neutro’ – PVN (neutral point of view) – foi a expressão mais ouvida na troca de idéias sobre credibilidade jornalística. Ela foi criada pelos defensores do sistema de autoria compartilhada ‘wiki’ para explicar como é possível produzir informações confiáveis em sites onde qualquer um pode colocar uma informação ou notícia. [O exemplo mais notável desse sistema é a enciclopédia virtual Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/)].

O princípio do PVN está baseado na tese apoiada em probabilidade estatística segundo a qual as opiniões extremas são matizadas pelas menos antagônicas até a formação de um ponto de equilíbrio, ou ponto de neutralidade, que seria o resultado da interação do conjunto de opiniões emitidas por um grande número de pessoas.

Os pressupostos teóricos da tese do ‘ponto de vista neutro’ são bastante complicados e de difícil verificação imediata. Mas há uma grande expectativa sobre o resultado dos testes que estão sendo feitos em jornais de autoria coletiva como, o sul-coreano OhmyNews (www.ohmynews.com), ou na Wikipédia, enciclopédia cujos verbetes são produzidos por colaboradores voluntários, sem pagamento. Até agora nenhum dos dois projetos tropeçou num grande erro e ambos conquistam novos adeptos, apesar das dúvidas sobre a confiabilidade das informações que publicam.

Quatro noções

A complexidade da discussão sobre credibilidade acabou transferindo o esperado confronto entre jornalistas convencionais e blogueiros para outros temas na agenda da conferência realizada na Escola Kennedy de Governo da Universidade de Harvard, entre os dias 21 e 23 de janeiro.

Os dois lados surpreendentemente evitaram ataques e trataram se conhecer melhor. Jill Abramson, editora-executiva do New York Times, provocou alguns momentos de tensão ao desafiar seus colegas de conferência a calcular quanto o seu jornal gasta na manutenção de correspondentes em Bagdá para mostrar que o jornalismo amador não é uma alternativa para as grandes coberturas, mas depois admitiu que o conflito entre imprensa e blogs não tem sentido. ‘Acho que temos muito a aprender uns com os outros’, confessou.

A cordialidade prevaleceu até mesmo durante o debate sobre a consulta livre aos arquivos de jornais, um tema que foi colocado pelos editores de blogs, mesmo sem estar na agenda. Os representantes de jornais e televisões rejeitaram a idéia, alegando que a sua sobrevivência econômica depende da cobrança das consultas, mas a maioria dos participantes alinhou-se a blogueiros como Dan Gillmor, autor do best seller We the Media, Bill Mitchell, diretor do Instituto Poynter (de estudos jornalísticos) e Alex Jones, do Shorenstein Center on the Press, Policy and Public Affairs, da Universidade de Harvard.

‘Arquivos abertos são uma grande idéia. Faz sentido moral e profissionalmente. Mas ela tem também um grande potencial para ampliar audiências, especialmente entre os jornais’, afirmou Alex Jones, um ex-repórter do New York Times. Os defensores da abertura de arquivos argumentam que esta medida traria enormes benefícios para a sociedade, e que o faturamento dos jornais com o pagamento das consultas a edições antigas é mínimo se comparado com o que cobram pela elaboração de relatórios de inteligência para fins corporativos.

As diferenças entre imprensa e blogs apareceram também quando Dan Gillmor, um defensor do chamado jornalismo-cidadão, provocou calafrios em seus colegas dos jornais ao afirmar que o conceito de objetividade jornalística está morto. ‘A objetividade é um valor importante, mas os jornalistas são seres humanos, têm passado, trazem para seu trabalho as influências de conflitos do dia a dia’, afirma no seu blog Grassroots Journalism (http://dangillmor.typepad.com/dan_gillmor_on_grassroots/
2005/01/the_end_of_obje.html
). Gillmor propõe a substituição da objetividade como meta por quatro noções que ele considera mais importantes para um bom jornalismo: profundidade, acuidade, equilíbrio e transparência.

Processos coletivos

Foi interessante observar que, apesar da natureza polêmica das idéias levantadas na conferência, não houve radicalização das posições – fato que foi considerado um indicador da enorme perplexidade tanto de blogueiros como de jornalistas convencionais diante das dimensões da crise que afeta a comunicação jornalística.

‘A crise é muito pior do que eu pensava e estamos muito distantes de uma resposta global. Os jornalistas profissionais e os blogueiros deveriam continuar esta discussão numa sala fechada a chave e com uma geladeira cheia de cerveja. Precisamos achar uma solução para o fato de as redes de colaboração (onde ninguém é dono) estarem substituindo os mercados centralizados, um mundo onde a Wikipédia está destruindo o negócio das enciclopédias convencionais avaliado em 350 milhões de dólares e onde um site como o Craigslist (http://www.craigslist.org/) sugou 65 milhões de dólares de receitas em anúncios classificados, só numa cidade norte-americana’ , declarou Jeff Jarvis, do blog Buzzmachine (http://www.buzzmachine.com/) e dono da empresa AdvanceNet.

Na verdade, as mudanças acontecem em quase todas as áreas, como salientou Lee Rainie, diretor do Pew Internet & American Life Project (http://www.pewinternet.org/) e ex-editor executivo da revista US News & World Report. Para ele, os jornalistas devem se acostumar com a idéia de que não é mais possível uma edição centralizada de notícias. ‘Nos blogs, as noticias são editadas depois de publicadas, quando os leitores e o próprio repórter corrigem erros ou acrescentam novos dados. Na imprensa convencional, a edição é feita antes de publicação’. Na visão de Lee não se trata de uma questão de gosto, mas sim de uma necessidade provocada pela avalancha informativa que não dá mais tempo aos jornalistas para contextualizar as informações.

As várias opiniões emitidas durante o evento permitiram identificar uma tendência dos estudiosos de jornalismo nos Estados Unidos para enfatizar os valores baseados em processos coletivos na produção de noticias. Um exemplo disso é a questão do ‘ponto de vista neutro’, no qual a responsabilidade principal sobre a objetividade não estaria mais apenas no repórter, mas compartilhada. A posição do jornalista seria apenas a de percepção mais qualificada.

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Jornalista e pesquisador de mídia eletrônica; e-mail (ccastilho@gmail.com)