Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ocupação da Rocinha

Durante toda a semana, a Rocinha foi notícia. Não havia possibilidade de se falar do Rio sem tocar na ocupação da favela. E como na grande mídia o “meio” justifica o fim, a cobertura desse “evento” prometia. A pacificação da Rocinha ganhou requintes hollywoodianos, o roteiro de cortes secos e sem grandes interpretações, não agradou aos produtores de audiência. Do ponto de vista de um espetáculo, como foi a operação no Alemão, a comunidade da zona sul carioca decepcionou os amantes de factoide.

No sábado (12/11), dia que antecedeu a incursão policial, desci de minha casa, situada na parte intermediária da Rocinha, até a redação da TV Tagarela, na entrada da comunidade. No caminho conversei com dois amigos que saíam para o trabalho, um garçom, o outro pedreiro. Perguntei sobre a operação, de como as coisas ficariam por aqui. De forma afinada, os dois responderam que não sabiam de fato se iria funcionar. O pedreiro, de 27 anos, acrescentou: “E depois disso, vão fazer o que, você sabe? Nem eu, melhor nem eles e nem ninguém”, e finalizou: “Eu trabalho em obra desde os meus 16 anos, já me sinto cansado, carreguei muito cimento nas costas, mas até hoje não construí minha casa própria”. Esse depoimento é de fato uma preocupação dos moradores da Rocinha.

Quando será a vez da habitação, lazer, educação e todos os serviços públicos à disposição das pessoas? A resposta vem de imediato e vem de um comerciante local: “Nunca, meu filho, eles não moram aqui, os filhos têm motorista para levar na escola. Na verdade, eles têm escola de verdade, aqui a gente se contenta com o nada deles.” De início, essas informações soavam contrastadas ao grosso que via e ouvia pela televisão e rádio. Mas quando se pensa no incômodo, a reflexão assume seu papel e decodifica a situação. Bom, a pacificação tira as armas de circulação, mas as feridas continuaram expostas, sem previsão de cicatrização. Despedi-me do comerciante e segui para a TV Tagarela.

A proposta de pacificação humana

Já passava das 14hs e a Via Ápia (umas das principais entradas) estava tomada de fotógrafos e, claro, tudo é novidade. Fiz algumas fotos da ação da polícia revistando alguns carros de passeio e caminhões de entregas, mas preferi mostrar os fotógrafos registrando o episódio. Retornei à TV Tagarela. Acompanhei pela internet algumas notícias e às 19hs passei de fato a cobrir a operação.

Dei uma volta pela Rocinha para continuar ouvindo alguns moradores, sempre informal e atento às conversas que não eram minhas. Se haveria confronto, apreensões, possíveis mortos e, claro, a situação posterior à retomada de território. Das pessoas que ouvi, a maioria demonstrava contentamento com a pacificação. Dos argumentos pró, o maior era a possibilidade de criar seus filhos num ambiente sem armas e violência explícita. Em contrapartida, uns demonstravam medo de um futuro território de milícia, afirmando que muitos que fariam parte da ocupação são pertencentes a grupos paramilitares. A discussão era boa.

Conversei com um morador que descia a estrada da Gávea, que de início não se mostrou amistoso, mas ao saber que eu era morador tornou-se bem receptivo. Perguntei a ele no que a ocupação melhoraria sua vida. Em resposta, um sonho de liberdade de quem acreditou que saindo do nordeste encontraria vida boa no Rio de Janeiro. Questionei se só com a ocupação policial ele conseguiria tudo que sonhou conquistar, ele me fitou e, depois de muito pensar, disse: “Eu já estou velho, não terei tempo para correr atrás de tantas coisas, mas meu neto vai.” E em meio ao clima tenso que pairava no ar e o asfalto escorregadio por conta do óleo derramado na pista, vi que a esperança é algo realmente forte, capaz de tornar o sonho em um plano de realização. Não quis me despedir sem antes também perguntar qual o primeiro passo dele depois da instalação da UPP. E com os mesmo olhos cobertos de sinceridade e inocência ele diz: “Arrumar uma boa escola para ele.” Ouvi ali a proposta de pacificação humana, o processo vivo de cidadania. Agradeci ao senhor com um aperto de mão, que também o ajudou a levantar e seguimos em frente, cada um com seu sonho, cada qual com seu plano, mas ambos entendendo o caminho.

Ocupação era um bom negócio

Mas acima, na localidade conhecida como Fundação, em frente à paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, um grupo de senhoras conversava em voz baixa sobre a ocupação. Uma se dizia feliz, mas com pena dos “meninos”. “Nós vimos um monte crescer, conheço muita mãe.” Uma outra completa; “Pois é, terá muita choradeira.” Nesse momento me aproximei e me identifiquei. As senhoras ficaram nervosas e mesmo eu dizendo que era morador e que não iria expor ninguém, elas apenas me desejaram sorte e deram um fraterno sorriso. Como não prosseguir, depois de receber uma benção coletiva dessas. Subi até o conjunto habitacional construído pelo PAC, a antiga garagem de ônibus. Já estava noite e entrei sabendo que seria mais difícil conseguir as entrevistas. Bati em algumas portas, as pessoas olhavam, ouviam minha apresentação, mas me davam o não como resposta. Foi quando desci do prédio e um rapaz me parou. Estava aparentemente embriagado e disse que me reconheceu como jornalista, que tinha me visto na televisão. Fora a citação de “tinha me visto na televisão”, aceitei o crédito de minha profissão. Perguntei a ele se estava indo para casa, que não havia muitas pessoas na rua. Em resposta o homem me abraçou e disse que estava muito feliz, que estava sem trabalho há mais de um ano. Perguntei por que não conseguia emprego e o que a ocupação tinha haver com essa mudança de quadro. O homem ficou sério e respondeu num tom quase sóbrio: “Você não mora aqui, não, as pessoas lá fora pensam que nós somos amigos dos caras. Um policial já me parou e disse que eu tinha cara de bandido. Quero ver ele falar agora.” Perguntei sobre o problema do desemprego e antes que eu pudesse completar meu raciocínio ele disparou: “Se aqui não tem bandido, já pode empregar tudo mundo direitinho.” Embora não tenha concordado muito com essa última fala, entendi qual o tamanho da luta. Depois de um pequeno trabalho para me despedir do homem, que insistia em me abraçar, retornei à parte baixa da comunidade.

Em frente ao carro da polícia estava um vendedor da Sky e lembrei que durante todo o processo de ocupação essas pessoas estavam ali vendendo assinatura. Me aproximei de um que dava entrevista para uma amiga jornalista e me integrei para também perguntar. Segundo Alexandre Ângelo, somente naquele dia ele tinha vendido mais de 20 assinaturas e sua comissão já estava em mais de R$ 3 mil reais. Falei para ele que a ocupação era um bom negócio e Alexandre disse: “Para a Sky, é uma ótima, todo mundo que tinha sinal ilegal vai assinar Sky, só tem ela aqui por enquanto.” Agradeci ao Ângelo e retornei a redação para pegar minha câmera e aguardar a entrada da polícia.

Cobertura “Sessão da tarde”

Na redação, soube que a primeira prisão havia ocorrido. Um homem com sintomas de overdose foi encaminhado por alguns moradores e bombeiros para o atendimento no hospital de campanha montando em frente a entrada da Rocinha. Ele era fugitivo do presídio Bangu 8, onde cumpria pena por assalto à mão armada. O clima de ocupação começava a fazer efeito em mim. As casas estavam todas com as janelas fechadas e cortinas cerradas, algumas vezes era possível ver as pessoas nas frestas, mas rapidamente saíam da janela. Dentro das residências, as pessoas acompanhavam pela televisão tudo o que acontecia em seus próprios quintais.

Às 4h10 começou a operação, os blindados da marinha chegaram com os carros dos policiais do Bope, Core, Federal, numa entrada rápida seguida por um grupo de fotógrafos e jornalistas. Segui o grupo até próximo à estrada da Gávea, mas ao contar o número de imprensa e o número de policiais vi que a cobertura era o plano maior por aqui e a ocupação já estava assegurada. Conversei com alguns fotógrafos, que concordaram, e descemos na madrugada tranquila da Rocinha.

Do Twitter e do Facebook, eu postava as notícias dos acontecimentos. Acionava meus contatos, amigos moradores da comunidade, e assim conseguia ter um apanhado geral da situação. Às 6h45, depois de uma ocupação silenciosa, retornamos para dentro da Rocinha para registrar apreensões, prisões e o tão esperado hasteamento da bandeira.

A ocupação foi rápida, tranquila e sem as fortes emoções que a mídia prometeu. Toda a fala que antecedeu a incursão foi sinopse de DVD. Se avaliado pelas promessas de espetáculo, a cobertura não passou de um filme de sessão da tarde.

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[Robson Melo é jornalista, Rio de Janeiro, RJ]