Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A sociedade e a tecnologia

As discussões entre público e privado foram um dos grandes temas em pauta no presente mês e intensificaram os debates sobre ‘a que ponto as novas mídias estão transformando a privacidade num espetáculo público?’

Há dois acontecimentos recentes que nos ajudam na elucidação da questão. O primeiro deles envolvendo a modelo Daniela Cicarelli, que teve sua relação com o namorado filmada por uma câmera ‘escondida’ e posterior divulgação do conteúdo desta filmagem pela internet, utilizando, dentre outras formas, o site de vídeos YouTube. O outro episódio envolve também a divulgação de imagens cinematográficas, estas porém referentes ao enforcamento do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein.

No caso de Daniela, não há, apesar do que diz o desembargador Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues em artigo na Folha de S.Paulo de sábado (13/1), invasão da intimidade e da esfera privada. Daniela e seu namorado trocaram carícias em uma praia destinada ao público, portanto, não estavam na ‘intimidade’, mas, sim, aos olhos de todos presentes no local. O que constitui crime de atentado ao pudor, caso alguém, ao ver a cena, se sentisse lesado pelo ato que estava sendo praticado, mesmo que não tendo a intenção de ser observado, mas disponível aos olhos de todos os banhistas e transeuntes.

Um ato incompatível com o século 21

Ainda no caso de Daniela, a filmagem pode caracterizar até mesmo espionagem, mas não violação de privacidade em momento algum, já que o local utilizado pela modelo se caracteriza como local público. A modelo poderia processar a autor das imagens por danos morais, devido à divulgação do vídeo, mas nunca por violação de privacidade. Neste caso, não foi a privacidade que se transformou em espetáculo público, o que ocorreu com a divulgação. Aí, sim, cabe o aspecto legal entre permitir ou não a divulgação de imagens sem a devida autorização das pessoas envolvidas, de uma obra audiovisual na qual figuram aspectos de um determinado acontecimento concernentes à esfera pública.

Proibir o site de vídeos YouTube baseado na invasão de privacidade é, no mínimo, incoerente e inconstitucional. O vídeo deve, sim, ser proibido e ter sua divulgação vetada por ser, repito, uma obra audiovisual difundida sem a autorização das pessoas presentes na mesma. Diferente do que discutem os pensadores e juristas, não há invasão de privacidade; há violação dos direitos de imagem.

O caso de Saddam Hussein é mais complicado. A começar pelo próprio ato de o enforcamento ter sido proibido de ser transmitido pelas redes de televisão do mundo e mesmo acompanhado por repórteres, dada a importância do ocorrido, assim como a própria difusão do julgamento do ex-líder iraquiano. Tomadas as devidas precauções quanto à filmagem do evento, ainda assim um vídeo clandestino foi feito e veiculado na internet. Antes de condenar o vídeo, devemos analisar o seu conteúdo, que mostra como a execução atingiu o maior nível da barbárie, pois o ex-ditador foi insultado e humilhado antes de lhe ser aplicada a sentença.

O vídeo acabou elucidando o final de um julgamento que foi, desde o início, conduzido com obscuridade e desrespeitando os direitos internacionais do ser humano. Claramente sem a intenção de o ser, o vídeo acabou tornando-se um documentário de um ato incompatível com o século no qual vivemos. Aqui novamente temos uma violação de divulgação dos direitos de imagem, pois as mesmas não foram permitidas pelos presentes no vídeo, embora se trate de um caso diferente do de Cicarelli – aqui não temos uma modelo, mas um ‘assassinato’ e, dependendo do viés adotado, o vídeo pode caracterizar-se como denúncia.

Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que a divulgação de imagens referentes aos campos de concentração da Alemanha nazista, ou mesmo dos porões de tortura do DOPS, que até hoje têm seu lado obscuro – que pertence ao interesse público, protegido pela não divulgação dos documentos concernentes ao órgão e pela não investigação de suas atividades amparadas pelo Estado.

Restrições à busca por conhecimento

Deve-se notar, portanto, que cada caso em particular tem sua peculiaridade e contexto e portanto deve ser analisado isoladamente, e não em conjunto. Tomemos, por exemplo, uma questão. Digamos que o vídeo pornográfico contendo a apresentadora ‘Xuxa’ seja divulgado pela internet sem autorização da produtora do mesmo. Isto consiste crime, pois não estão sendo respeitados os direitos autorais, mas a ação tem de ser movida pela produtora, e não pela apresentadora, a qual, quando realizou o vídeo, cedeu a divulgação e exibição de suas imagens. Se a produtora encarar o fato como ação mercadológica visando à divulgação do mesmo e forem respeitadas as leis quanto à classificação do vídeo, nada pode caracterizar o vídeo como criminoso.

Crime, pode ser considerado o que acontece na China, que restringe a busca por conhecimento ao proibir a visualização de páginas que contenham argumentos contra o atual regime político, da mesma forma que é crime, já apontado pela caracterização de George Orwell em 1984, o emparelhamento dos instrumentos de comunicação como artífices destinados a restringir a liberdade de pensamento e de ação de um indivíduo na sociedade.

Uma legislação isenta de pragmatismo

O que se vislumbra nestas questões referentes aos meios de comunicação e sua ‘invasão’ de privacidade é o velho debate maniqueísta entre apocalípticos e integrados. Não sabendo acompanhar a evolução do meio, ficam se digladiando sobre mesquinharias em vez de promoverem uma discussão séria sobre o assunto visando ao aperfeiçoamento dos instrumentos do Estado para coibir abusos e crimes cometidos neste novo ‘universo’ que é o virtual.

A internet, como todos os veículos de comunicação e objetos produzidos pelo conhecimento humano não é, em si, nem boa nem má. O que a transforma são os indivíduos que com ela interagem e o que dela é feito. O avião não foi criado como arma de guerra, mas para ela foi utilizado, bem como o garfo não foi inventado para com ele se agredir um indivíduo. Assim, também a internet e as novas mídias são instrumentos tanto de democratização da informação como instrumentos de controle social e para coibir seus abusos é que a esfera jurídica deve trabalhar e evoluir em seu pensamento. Não é com classificações maniqueístas e reacionárias que o debate sobre o tema irá evoluir afim de termos uma legislação isenta de pragmatismo e que vise à justiça, e não ao sensacionalismo.

A sociedade tem de evoluir junto à tecnologia para que o limite entre o público e privado sejam estabelecidos sem abusos e visando ao bem-estar social dos indivíduos que a compõem. Assim, poderemos rever filmes como Um homem com uma câmera, de Dziga-Vertov, sem o medo do olhar do Grande Irmão e sabendo que ao público cabe o que é feito em sua esfera e o que é de seu interesse.

O sensacionalismo não pode estar acima da sociedade.

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Coordenador de Comunicação, Jundiaí, SP