Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘A tecnologia não é inimiga’

O ciberjornalismo exige novas formas de escrita. Da mesma forma que em certo momento se desenvolveram normas de redação independentes para a rádio e a TV, agora, passada uma década de jornalismo na internet, chega o momento de consolidar novas práticas de escrita para os cibermeios.

Isso não quer dizer que devemos renegar por completo certas técnicas e formatos que por anos a fio os jornalistas vêm empregando em suas rotinas. Significa, entretanto, que podemos ir além e explorar certas possibilidades expressivas que só o ciberespaço descortina para o jornalismo.

Essa é a idéia central da recém-lançada obra Redacción periodística en internet (Eunsa, 2005), de Ramón Salaverría, professor e diretor do Laboratório de Comunicação Multimídia (MMLab) da Universidade de Navarra, em Pamplona, Espanha [ver remissão abaixo].

O manual chega ao mercado europeu trazendo conceitos e orientações bem fundamentadas e consistentes para orientar jornalistas, alunos e professores de jornalismo que trabalham no campo dos meios digitais.

Em entrevista concedida durante as Jornadas dos Dez Anos de Jornalismo Digital em Portugal, realizada pela Universidade do Minho, em Braga, nos dias 2 e 3 de junho, Ramón Salaverría explica por que seu manual de redação ciberjornalística não é mais do mesmo.

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Ao longo destes últimos 10 anos, presenciamos o lançamento de dezenas de manuais e guias de escrita para o jornalismo na internet. O que o Redacción periodística en internet traz de novo a este cenário?

Ramón Salaverría – É verdade que há muitos manuais práticos, sobretudo em língua inglesa. O que ocorre é que os guias para web confundem ‘estilo’ com ‘redação’. O estilo conciso, claro e preciso exigido para o jornalismo é aplicável também ao ciberjornalismo. Isso não muda. O problema é que, até o momento, esses manuais param nas normas estilísticas. Essas regras de estilo jornalístico vêm se repetindo em livros de redação pelo menos há 70 anos. Já em 1935, o Elements of Style, de Willian Strunk e White, um livro de cabeceira de várias gerações de jornalistas norte-americanos, insistia nas questões de claridade, concisão e precisão. O The web content style guide, de McGovern, de 2001, traz exatamente as mesmas normas, também compostas pelas mesmas frases curtas e impactantes de sempre: seja claro, diga apenas o necessário, escreva parágrafos curtos. Isso tem a ver com a boa redação, e não se altera agora. O que muda no ciberjornalismo não é o estilo. A verdadeira mudança tem a ver com a estrutura do texto, do discurso, alterada por conta do hipertexto. Talvez esteja aí a diferença deste novo livro.

Para escrever essa obra, levei em conta três tipos de bibliografias: a primeira sobre a evolução do jornalismo na internet; a segunda trata da redação em internet, vinculada ou não ao jornalismo; e a terceira está centrada na evolução dos textos literários no ciberespaço. Assim pude desenhar concretamente o campo da redação ciberjornalística.

O que está me dizendo é que os conselhos de Aristóteles ainda valem e muito?

R. S. – Na minha tese de doutorado analisei três mil obras sobre redação. Entre elas, 1.500 manuais propriamente ditos. Peguei desde as obras do século 18 até o fim do século 20. A conclusão que cheguei é que aquilo que se sugere como uma boa redação em termos de estilo é o mesmo há três séculos. E Aristóteles é uma referência brilhante. Ele já dizia há 25 séculos que os elementos desnecessários deveriam ser eliminados da redação, já que o que é supérfluo é negativo. Uma referência clara de que a concisão exige a máxima densidade informativa. Disso já sabemos. Para o caso particular da web, precisamos então ir além.

E o que os jornalistas devem ter em conta quando escrevem para a web?

R. S. – Em poucas palavras, a essência é ter em mente que o estilo jornalístico permanece, como dissemos. E procurar configurar seus conteúdos segundo as novas possibilidades hipertextuais, interativas e multimídia que o meio oferece. Não se trata de renunciar completamente ao passado, mas abrir os olhos às novas possibilidades.

É curioso que em fins de 2003, você, ao lado de Javier Díaz Noci, organizou o Manual de Redacción Ciberperiodística (Ariel, 2003), uma obra de quase 600 páginas que desenha em profundidade essas diversas possibilidades de redação ciberjornalística. Apesar de levar o nome de ‘manual’, parece mais um tratado que vem pontuar teoricamente o campo da redação ciberjornalística como disciplina autônoma. Agora, em 2005, o professor lança o Redacción periodística en internet, este sim visivelmente um manual didático para alunos e professores de Jornalismo. Qual a relação de uma obra com a outra?

R. S. – Tem razão. Estamos conscientes de que aquele título não corresponde totalmente ao conteúdo da obra. Mas a parte dele. O que ocorre é que cada livro reflete um momento. Em finais de 2001, eu e Díaz Noci notamos que faltava no cenário acadêmico espanhol uma obra sobre redação ciberjornalística que servisse de referência para o futuro. Uma obra de reflexão, com as vozes de distintos autores. Propusemos o projeto então à Editorial Ariel, a mais importante da Espanha, que comprou a idéia e sugeriu o nome ‘manual’, obviamente por questões comerciais. Não foi uma imposição, mas uma sugestão que acatamos por entender que refletia parte do conteúdo e objetivo do livro. Procuramos equilibrar a referência conceitual com a aplicabilidade didática. E foi importante descarregar a teoria num primeiro momento, naquelas 600 páginas, pois fiquei agora muito mais livre para escrever o Redacción periodística en internet, este sim de caráter bem mais pedagógico, mais leve.

Há um capítulo interessante neste livro sobre os gêneros ciberjornalísticos, onde você fala das crônicas ao vivo, dos blogs, das infografias. Existem pesquisadores, entretanto, que afirmam que não existem novos gêneros no ciberjornalismo. Estamos falando aí dos seculares formatos de texto transladados para o ciberespaço ou de algo realmente novo?

R. S. – O conceito de gênero, seja jornalístico ou literário, nos revela que os gêneros são mutáveis. Não surgem do nada. Transformam-se com o tempo. São históricos. Então, quando as pessoas dizem que não eles existem, estão se esquecendo de que os novos gêneros não surgirão de uma hora para a outra, desvinculados do que já existe. Dez anos é pouco tempo para um gênero novo se formar totalmente, é verdade. Mas após esses 10 anos já conseguimos identificar claramente novos formatos. É o caso das crônicas ao vivo, como as esportivas, que cobrem o jogo minuto a minuto. É um gênero que não existia em nenhum outro meio, um formato novo que veio de espécies radiofônicas e só foi possível no ciberespaço.

Quais os maiores desafios enfrenta o ensino do ciberjornalismo nas faculdades de Comunicação? E na prática ciberjornalística cotidiana?

R. S. – Minha experiência me mostra que os alunos estão muito preocupados com as ferramentas. E bastante despreocupados em conhecer as linguagens e em refletir sobre as questões éticas deste novo ambiente de trabalho. Por isso, procuro, dentro das minhas aulas, não apenas trabalhar a parte instrumental, mas ir além. O desafio para o jornalista é dominar ferramentas, sim, mas isso é secundário para mim. Ele deve se preocupar com a linguagem, as técnicas, a ética dos procedimentos na hora de obter a informação na web, o tratamento informativo num ambiente que exige uma rapidez absoluta. Os jornalistas não devem ficar presos aos formatos narrativos tradicionais, podem experimentar. Os leitores estão experimentando livremente, criando seus blogs, adotando com naturalidade a interatividade, a multimidialidade. Os jornalistas também podem arriscar. A tecnologia não é inimiga.

A obra é dedicada somente ao público espanhol? Será traduzia para o português?

R. S. – Não há previsão ainda. Oxalá que sim!

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Jornalista e pesquisadora de mídias digitais na Universidade do Minho, Portugal; blog: Intermezzo