Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A voz da Geração Y

Yoani Sánchez planta manjericão, coentro e alecrim em pequenos vasos, no terracinho de seu apartamento no 14º andar de um prédio modesto na rua Factor, em Havana, onde vive com o marido Reinaldo e o filho Teo. É seu único capricho de dona-de-casa. Para chegar ao apartamento de 60 metros quadrados, que fica no último andar do prédio, aperta-se o botão número 12 de um velho, cansado e apertado elevador soviético. Marca-se o 12, o elevador inexplicavelmente pára no 13, sobe-se um lance de escada, e chega-se ao apartamento de Yoani.


Ali, frágil e miúda, a filóloga cubana de 32 anos, com o cabelo preso displicentemente em rabo-de-cavalo, mostra com uma ponta de auto-ironia o ‘cantinho do ego’, onde estão documentados, discretamente, os motivos de sua inesperada fama mundial: o xerox da página da revista Time que a mostra como uma das 100 personalidades mais influentes do mundo, e a reprodução do prêmio Ortega y Gasset de jornalismo digital que lhe foi concedido pela Prisa, casa editorial espanhola que é dona, entre outros empreendimentos, do jornal El País.


Em pouco mais de um ano, seu blog, Generación Y, virou um fenômeno. Com 170 posts, ele granjeou 170 mil comentários de leitores espalhados pelo mundo. Há casos de um único post ter recebido mais de 6 mil comentários. Foi barulho o bastante para irritar o semi-aposentado Fidel Castro, que chamou o Ortega y Gasset de ‘um dos tantos prêmios que o imperialismo concede para os que levam água para seu moinho’ e acusou a editora espanhola de ‘neocolonial’.


‘Fervor patriótico’


No prédio da rua Factor, que precisaria de uma demão de tinta e vidraças novas no saguão de entrada, do tempo de Brejnev sobraram dois elevadores, mas um precisou ser canibalizado para que o outro continuasse funcionando.


(Notícia nova no Generación Y: chegaram dois elevadores novos. Eles terminariam os vinte anos de remendos e a prática forçada do esporte de subir e descer 232 degraus todo dia, às vezes com uma bicicleta nas costas. Os novos elevadores não levam a carga depreciativa da pesada e obsoleta tecnologia soviética. São simplesmente russos.)


O seu marido Reinaldo, de 61 anos, que é jornalista, mas foi expurgado da profissão em 1988 quando trabalhava no Juventud Rebelde (seus artigos ‘não se ajustavam à linha editorial do jornal’), virou mecânico de elevadores, e assim ganhou a vida durante muitos anos.


Reinaldo também dá aulas de espanhol e ganha algum dinheiro como guia cultural em Havana. Sua especialidade é o Museu da Revolução, do qual conhece todas as minúcias e onde consegue mostrar, com opulência de datas e detalhes, todas as retificações, modificações e expurgos que foram feitos ao longo do tempo. Ele é capaz de mostrar de onde, exatamente, foram retiradas as fotos que mostravam visitas de Fidel Castro à União Soviética. Depois de Gorbachev, a União Soviética perdeu seu nome, abandonou o comunismo e perdeu o seu destaque no Museu da Revolução. Outra foto desaparecida do museu é uma na qual Fidel Castro aparecia mostrando o passaporte falso com o qual Che Guevara pôde entrar na Bolívia para a aventura guerrilheira que acabou em sua morte. Não ficava bem a pose de um chefe de Estado exibindo e vangloriando-se de um passaporte falso.


Reinaldo festejou a vitória dos revolucionários contra os invasores da praia Girón, na baía dos Porcos, quando cubanos exilados tentaram retomar o poder, com o apoio do governo americano, em 1961, e foram derrotados em dois dias. Nessa época, Reinaldo estava nas montanhas, ajudando a alfabetizar camponeses. ‘Tenho lembranças muito intensas dessa epopéia da praia Girón, apesar de estar longe do cenário, porque a mobilização era nacional, com todas as pessoas vestidas de milicianos na rua’, disse-me ele. ‘Havia um fervor patriótico: estávamos sendo agredidos pelo inimigo. Minha família era absolutamente revolucionária.’ Em 1962, Reinaldo só ficou sabendo da crise dos mísseis depois que ela terminou. Estava nas montanhas de Sierra Maestra, como voluntário na colheita de café.


Maquinista de trem


Em Cuba, circulam hoje, paralelamente, duas moedas: o peso cubano, com o qual são pagos os salários, e que serve para as despesas básicas do dia-a-dia, e o Cuc (abreviação de Cuban coin, moeda cubana), que vale mais que o dólar – um Cuc compra 80 centavos de dólar. Com o peso conversível, é possível comprar roupa, celulares, eletrodomésticos, comida não racionada, material de construção, móveis, e até se hospedar em hotéis ou apenas navegar pela internet nas lan houses. Só têm acesso aos pesos conversíveis quem recebe remessas de parentes que moram no exterior (segundo avaliações de diplomatas estrangeiros, entra em Cuba cerca de 1 milhão de dólares por dia dessa forma), médicos que participam das missões humanitárias fora do país, funcionários de empresas do governo que desviam produtos para vender no mercado negro, ou empregados na indústria do turismo, que recebem gorjeta e também vendem em Cuc mercadorias desviadas.


Para Yoani e Reinaldo, ter a própria casa é uma carta de alforria. Não ter que depender do Estado para morar, não ter que dividir a casa com outras pessoas é uma bênção. Em Havana, como o déficit habitacional é de cerca de 1 milhão de residências, a convivência obrigatória entre gerações diferentes é um dos maiores motivos de desavenças domésticas. Morar obrigatoriamente com os pais, ou com os sogros, ou dividir espaço com pessoas de outras famílias é um foco perene de conflitos.


Yoani é neta de imigrantes espanhóis que chegaram a Cuba na década de 20. Sua avó materna veio das Astúrias e o avô materno, das Ilhas Canárias. Eles não mantêm nenhum contato com o que restou da família na Espanha. Chegaram com o sonho e a ilusão da maioria dos imigrantes: melhorar de vida, juntar um pouco de dinheiro e retornar para a terra de origem. Mas quem volta? Em Cuba, dizem que quem conhece a ilha fica ‘encantado’ e não sai mais.


A blogueira diz que herdou dos avós a ‘pele branca e certa teimosia peninsular’. E conta que seus pais se conheceram ainda bem jovens. ‘Casaram, e mamãe teve seu primeiro filho – minha irmã mais velha – com 16 anos’, Yoani disse. ‘Minha irmã nasceu quando mamãe tinha 16 e papai, 19. Minha relação com os meus pais sempre foi um pouco como a de irmãos. Eles eram crianças quando a revolução triunfou, e depois da adolescência se envolveram na construção de uma nova sociedade.’


Seu pai e sua mãe foram militantes da Juventude Comunista e depois do PC. Pediram afastamento do partido, ela conta, ‘por frustração, desencanto, apatia’. Yoani não acredita que seus pais fossem pessoas de convicções políticas. Estavam centrados em sua própria sobrevivência e vinham de uma tradição muito humilde. O pai começou construindo linhas férreas e terminou como maquinista de trem.


A mãe dedicou toda a vida a trabalhar num escritório de empresa de táxi. Eles acompanham à distância as atividades da filha, sabem que ela ganhou um prêmio, não sabem direito o que é um blog, e ela procura mantê-los afastados do olho do furacão.


‘Fazíamos o que queríamos’


Yoani nasceu em 1975, em Centro Havana, que ela descreve como ‘uma zona um tanto marginal, muito popular e com bastante violência’. É um bairro de vielas escuras e prédios degradados, transformados em habitações coletivas, que por falta de pedigree histórico ninguém pensa em restaurar. Ela viveu ali com os pais, com a avó, que morreu poucos anos depois de seu nascimento, e com a irmã. ‘Fiz a escola primária e secundária nessa mesma zona’, contou. ‘Meu pai, apesar do baixo nível de estudo que tinha, sempre leu muito. Minha irmã e eu também tomamos gosto pela leitura. Líamos coisas que nem eram adequadas à nossa idade. Com 10, 11 anos, li Victor Hugo, Dostoievski, Balzac, Emile Zola.’


Ela concluiu a educação básica e entrou em um curso pré-universitário, no qual os jovens deviam ficar no campo. Era um conceito excelente, segundo Yoani, ‘mas, na prática, esses lugares se transformam em zonas de confinamento de adolescentes com muitos hormônios em ebulição e com pouco controle dos professores’.


O exílio no campo foi um período de crise e de dor. Ele coincidiu com o momento mais crítico de Cuba – o da desintegração da União Soviética, entre 1990 e 1992. Com o fim dos subsídios, Cuba caiu em uma crise econômica abissal. Os cortes de energia eram freqüentes (tanto que os períodos em que havia luz eram chamados de ‘clarões’), havia colapso nos transportes, as pessoas andavam de bicicleta e a falta de alimentos provocava uma doença de subnutrição chamada polineurite. Isso a encontrou em plena adolescência, nesse momento em que o jovem está começando a passear e querer andar na moda, exibir o que tem; esse período a encontrou sem nada, sua família tinha caído numa penúria total, o pai tinha perdido o emprego porque as locomotivas soviéticas paravam por falta de peças de reposição.


Doente, abatida e com a família em crise, Yoani abandonou o pré-universitário do campo e conseguiu autorização para freqüentar o último ano do curso em Havana. Teimosa como uma peninsular, decidiu que seria a universitária da família. Queria ser jornalista, e se preparou para os exames de admissão na Universidade de Cuba. Tinha aulas particulares de reforço e uma professora de espanhol vaticinou: ‘Você não será jornalista, será filóloga.’


Para Yoani, a profecia ‘pesou como uma maldição, e me aborrecia muito: eu queria ser jornalista’. Na prova de admissão, foi mal em matemática e não conseguiu a vaga. Foi parar no Instituto Pedagógico de Espanhol e Literatura, uma espécie de braço menor da universidade, onde iam parar todos os alunos que não conseguiam vaga em cursos mais disputados.


Embora frustrada, cursou os dois primeiros anos de pedagogia, para ser professora de espanhol e literatura, sabendo que poderia adquirir qualificações para transferir-se para um curso melhor. Foi o que aconteceu. Mas aí não queria mais ser jornalista. ‘Havia compreendido o que era ser jornalista em Cuba, um lugar onde não há liberdade de imprensa e onde um jornalista se dedica a repetir como um papagaio o que dizem as autoridades’, contou. ‘Dei-me conta que queria ser filóloga, que havia nascido para ser filóloga, embora nem soubesse como se chamava a minha profissão.’


Ela entrou na Faculdade de Filologia e conheceu Reinaldo (ele tinha 46 anos e ela, 17). Resolveu sair de casa para aprender como era a vida longe do afeto autoritário dos pais. ‘Reinaldo me abriu todo um mundo de amigos, de intelectuais, de literatura’, disse. Em 1988, ele foi obrigado a abandonar o jornalismo, trabalhou dois anos como mecânico de elevadores, depois numa biblioteca, até que, com a crise econômica, ficou desempregado. Sobreviviam vendendo café, açúcar e arroz no mercado paralelo.


‘Não tínhamos roupas, não comíamos praticamente nada, mas fazíamos o que queríamos’, ela contou. ‘Temos orgulho de que nesta casa, nesses anos de 1993 e 1994, nasceu uma nova geração de trovadores. Reuníamo-nos aqui para cantar, compor canções, formamos uma roda de amigos de onde saíram vozes que hoje são a novíssima trova cubana.’


Uma garrafa de azeite


Teo, o filho deles, nasceu em 1995 ‘sem pedir permissão’, como diz Yoani, e encontrou uma mãe que, em vinte dias, teria que começar a sua especialização em filologia e dividir-se entre ele, o latim, a fonética, a fonologia, a semântica, a lingüística e a literatura.


A rotina da vida de Yoani e Reinaldo é, segundo ela, ‘uma anti-rotina’; nunca um dia é igual ao outro. Levantam às seis da manhã, porque Teo tem que estar na escola às sete e meia. Tomam um café da manhã frugal, com a cota de pão racionado, bolacha (quando há), suco e um pouco de leite. A blogueira raramente almoça, mas leva comida para Teo na escola porque os alunos do curso secundário não ganham merenda, só um pão, o que é pouco para uma criança em fase de crescimento. De tarde, organizam as aulas de espanhol para turistas alemães. No verão, os alemães não vão a Cuba porque faz muito calor.


Quando não há alunos, Reinaldo e Yoani ficam em casa. É o que eles chamam de ‘estratégia do baixo consumo’. Ficar muito tempo na rua significa ter que tomar uma água, um refresco, usar o transporte coletivo. Nos meses de verão, eles hibernam em casa. Se há estudantes, vão para a rua, andam pela cidade, fazem programas culturais e as seis ou às sete horas estão em casa. Encontram Teo, que estuda ou brinca com as crianças do prédio, e preparam o jantar.


Os estudantes e turistas que procuram Yoani e Reinaldo têm as demandas mais variadas. A única semelhança entre eles é o desinteresse pelo circuito convencional de turismo. Pode ser um alemão que está terminando uma tese sobre a economia cubana, ou uma suíça querendo aprender salsa. Não que eles ensinem (‘somos péssimos dançarinos’, ela diz), mas sabem a que baile levá-los, a que dançarinos encaminhá-los. O preço de cada atividade é estabelecido de acordo com o freguês. Se for um estudante de mochila, uma tarde de atividade pode custar dois pesos conversíveis. Se for um turista-padrão, são cinco pesos por uma tarde.


‘Não dá para ficar rico porque com cinco pesos compramos uma garrafa de azeite e meio quilo de frango’, ela contou. ‘Mas não é possível pedir mais, porque não somos profissionais, não temos uma infra-estrutura e, se cobrarmos mais alto, muitos não podem pagar. Tem gente que, além do dinheiro, nos dá um presente, uma calça, um par de sapatos. Muitas vezes, ganho roupas que não me servem, mas eu não me importo, não sou muito exigente em termos de moda.’


Festas magras


Nos últimos dois anos, esse tipo de turismo decaiu bastante. Depois que o governo decidiu valorizar o peso conversível (da paridade com o dólar, um peso passou a valer 80 centavos de dólar), Cuba se tornou um destino caro. Os europeus preferem passar as férias na República Dominicana, que é mais barata e tem o mesmo appeal caribenho.


Nas épocas em que não aparece nenhum estudante, eles hibernam, ficam em casa, ou então vão ao cinema ou ao teatro, que têm preços subsidiados. Automóvel, nem pensar. Em Cuba não se vendem automóveis a particulares, só a estrangeiros residentes ou a uma pessoa que tem carta de autorização do governo. Quem consegue essa carta? Esportistas que ganharam medalhas olímpicas, músicos que fazem concertos pelo mundo e precisam de moeda conversível, cientistas de dimensão internacional, gente muito selecionada.


Ao cidadão médio, mesmo que tenha dinheiro mandado por parentes que vivem no exterior, resta a liberdade de comprar um carro cinqüentenário. A propriedade de carros fabricados até 1959 pode ser transferida. A Yoani não interessa ter um carro. Comprar uma sucata de 1959 significa passar os fins de semana consertando a velharia, atividade que transformou os cubanos nos ‘melhores mecânicos do mundo’, como eles dizem. Os automóveis pré-anos 60 que ainda se vêem na rua, funcionando normalmente, são verdadeiros milagres da alquimia mecânica. Muitos mantêm o desenho original por fora, e são inteiramente reconstruídos por dentro. Sites de aficionados por modelos antigos avaliam em 50 mil o número de automóveis americanos fabricados antes de 1959 circulando em Cuba. Grande parte deles é usada como táxis não-autorizados.


Guillermo Olmos, taxista clandestino, guia um incrível Ford inglês azul de 1952, com o qual transporta passageiros de boa vontade que ele consegue recrutar na porta da nova Galeria de los Paseos, centro comercial de umas quinze lojas, que para os cubanos passa por um templo de consumo.


Olmos era professor de educação física de uma universidade, mas, depois que tentou deixar o país numa balsa e não conseguiu, teve que cavar sua sobrevivência dirigindo o velho e milagroso Ford. Diz que odeia essa nova profissão, mas filosofa, resignado: ‘Si no se mueve el culo, no se come pescado’ (quem não mexer a bunda não come peixe).


Escaldada na penúria generalizada, Yoani encara a crise financeira mundial com um misto de tranqüilidade e ceticismo. ‘Para uma pessoa especializada em crises como eu, não há nenhuma novidade’, ela disse, no fim de novembro. ‘Em Cuba, estamos em crise há vinte anos.’


Ela diz que o sentido do Natal se perdeu em Cuba há muito tempo, quando o governo trabalhou para esfriar as datas religiosas e as reuniões em família para ceias e comemorações foram transferidas para a noite de 31 de dezembro, que é a véspera do aniversário da revolução. Yoani prevê festas familiares especialmente magras, mas acha que o governo vai fazer um grande esforço para levar as pessoas para as ruas a fim de comemorar o cinqüentenário da revolução.

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Jornalista