Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Alberto Dines

‘O que preocupa não é o anti-semitismo de Mel Gibson, a questão é a resignação, sobretudo da hierarquia católica, à sua cruzada revisionista. Discutir A Paixão de Cristo apenas sob o ângulo estético ou histórico minimiza a importância do velho-novo estandarte teológico-político desfraldado com tanto sucesso pelo ator-cineasta. O cinema, arte das massas e ferramenta das revoluções no século XX, exige uma leitura essencialmente política. O lançamento do filme para coincidir com a Quaresma, não esconde a intenção de subverter a idéia da penitência para transformá-la em militância.

Algumas comunidades judaicas da Diáspora sobressaltaram-se com a recuperação da idéia do deicídio proposta por Gibson. Durante quase vinte séculos, os ‘pérfidos judeus’ foram segregados, perseguidos e massacrados na condição de assassinos de Ioshua, o Nazareno, da Casa de David. Guetos, pogroms, fogueiras e, sobretudo, a Inquisição são as herdeiras diretas desta obsessão vingativa.

Apesar da humanização do Renascimento, a religião do rancor imperou até o Iluminismo, fins do século XVIII. Quase 100 anos depois, em 1870, quando a sociedade liberal era uma realidade e os judeus já eram considerados cidadãos iguais, o jornalista alemão Wilhelm Marr reinventou o ódio coletivo, agora como justificativa para enfrentar a ‘conspiração para dominar o mundo’. Estava criado o anti-semitismo dito moderno, secular e ‘científico’, que espraiou-se pela Alemanha, Áustria, França e Rússia e do qual Adolf Hitler foi a expressão máxima.

Mel Gibson nada tem a ver com as idéias de Marr, exatamente por isso afirma com tanta convicção que não é anti-semita. Seus ardentes seguidores, mesmo nas altas esferas intelectuais, recusam com toda a razão qualquer vinculação com o nazi-fascismo. São apenas reacionários. E, como tal, pretendem recolocar a religião no arsenal político e reabilitar a figura dos domini canis, os cães do Senhor, que os dominicanos auto-atribuíam-se e graças à qual tomaram conta da máquina do Santo Ofício para exterminar as heresias.

A linha Gibson é a versão marqueteira do fundamentalismo católico, integrismo made in Hollywood. Seus líderes não tiveram a coragem de resistir abertamente à pregação do papa João XXIII e à tolerância produzida pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) mas agora, quase quatro décadas depois, sentem-se suficientemente fortes para sepultá-las. Não insurgem-se contra a Fidei Depositum, Depósito da Fé, a constituição apostólica proclamada em 1992 cujo artigo 597 proíbe expressamente que os judeus sejam coletivamente responsabilizados pela morte de Jesus. Simplesmente o ignoram.

O furor islâmico, a degradação da sociedade moderna e o crescimento exponencial das seitas evangélicas são, para os integristas católicos, o verdadeiro perigo. Os judeus e ódio aos judeus mais uma vez, são simples pretexto para acionar um fervor sem o qual seria impossível arregimentar multidões. Também na Europa medieval as pragas e pestes eram enfrentadas pela pregação exaltada contra os assassinos do Senhor. Bodes-expiatórios ideais, culpados preferenciais para todos os males, Hitler retomou o antigo delírio ao satanizar os judeus como fomentadores do bolchevismo e, ao mesmo tempo, sustentáculo do capitalismo.

Da mesma forma com que os integristas submeteram-se à disciplina e aceitaram as mudanças conciliares, agora o mesmo monolitismo funciona na direção contrária ao impor uma obediência quase cega ao evangelho de Mel Gibson. Do Vaticano à CNBB, todos curvaram-se diante da veracidade duvidosa de uma obra ficcional, escravizados pela magia das imagens, submissos aos ancestrais preconceitos e novíssimos efeitos especiais. O Cardeal D. Cláudio Hummes, arcebispo metropolitano de São Paulo, teve a sensibilidade e a grandeza para advertir que o filme de Gibson precisa ser visto à luz da conjuntura mundial e através dos filtros da fé produzidos a partir do Concílio Vaticano II.

Foi exceção. A maioria prostrou-se diante do canto-chão engendrado na velha T.F.P. e agora modernizado pelos entusiasmados militantes da Opus Dei e, fora do Brasil, da Legião de Cristo. As duas poderosas organizações internacionais, verdadeiras ordens leigas, estão sendo velozmente transformadas em vanguardas para a reabilitação do catolicismo que o concilio de 1962 tornou caduco.

Enquanto não se tornam majoritárias, aí estão os judeus para serem apedrejados e os judas para serem malhados. Como ainda esperam o Messias devem pagar pela teimosia. Mel Gibson tem muitos amigos judeus, usou judeus no filme e promete outro sobre a revolta dos Macabeus contra a opressão romana. Purgado dos ódios, segundo confessa, apenas pretendeu produzir um eletrizante ato de fé. Não reparou que contribuiu decisivamente para lembrar os Autos da Fé.’

O Globo

‘Filme de Gibson continua a arrastar fiéis’, copyright O Globo, 9/04/04

‘Mel Gibson continua a liderar na frente na bilheteria nacional com o seu ‘A Paixão de Cristo’. O filme, que reproduz de forma violenta as últimas 12 horas de Jesus, já levou 3.296.655 fiéis aos cinemas brasileiros. Segundo o site Filme B, em cidades como São Luiz, Fortaleza e Recife, ‘A Paixão de Cristo’ teve mais de oito mil espectadores por sala no último fim de semana – o terceiro em cartaz. O público final estimado para o filme é de cinco milhões de espectadores, o que lhe garantiria a primeira colocação no ranking de 2004. Atualmente ele está em segundo – o primeiro ainda é ‘O senhor dos anéis – O retorno do rei’, com 4.256.196 espectadores.

‘Benjamim’ tem 14.021 espectadores na estréia

Com 654.831 espectadores, ‘A Paixão de Cristo’ teve uma queda de apenas 10% em relação à semana anterior. Deixou para trás a grande estréia da sexta-feira passada, ‘Scooby Doo 2’, que teve 394.292. Nos Estados Unidos, o filme de Gibson já faturou mais de US$ 330 milhões.

Entre os nacionais, ‘Benjamim’, filme de Monique Gardenberg baseado no romance homônimo de Chico Buarque, estreou em décimo lugar no ranking do fim de semana. Com um público de 14.021 espectadores e em 25 salas, ele fez a boa média de 561 espectadores por cópia – ficando, no quesito, na frente de ‘Bem-vindo à selva’, com o novo astro de Hollywood The Rock, que teve média de 265. ‘Fala tu’, de Guilherme Coelho e Nathaniel Leclery, teve um público de 1.812 em seis salas, média de 302, um bom número para um documentário.’



DIPLOMA EM XEQUE
Mário Prata

‘O repórter e o linotipo’, copyright O Estado de S. Paulo, 7/04/04

‘Quando faço palestras em faculdades de jornalismo, os estudantes me fazem a mesma pergunta: você acha importante o diploma para se exercer a profissão?

Não sei, porque nunca freqüentei uma faculdade e não conheço os currículos.

Mas sei que tem algumas matérias que eles não ensinam lá: português, reportagem e história universal da imprensa. Se ensinam, ensinam mal.

Os alunos saem de lá sem a mínima idéia da serventia da vírgula, por exemplo. Acham que tudo se resolve com reticências… E não se fazem mais repórteres como antigamente. Aquele que ficava até um mês na rua e chegava com um furo de reportagem. Sabe o que é furo, menina? Hoje os furos são armados lá no andar de cima, entre os poderosos. Quando dizem que a Veja derrubou o Collor com a denúncia do outro Collor, o Pedro, não foi obra de nenhum repórter. Alguém procurou a Veja. Recentemente, a Época publicou o curta-metragem entre o Waldomiro e o Cascata (perdão, Cachoeira). Não foi nenhum repórter quem conseguiu aquilo. Foi alguém da oposição quem levou de bandeja. Hoje o jornalista fica oito horas dentro da redação lendo press release. E dando uns telefonemas, mascando chicletes.

Um garotinho apresenta um assassino no rio e a imprensa engole. Um rapaz (consta que) matou seu pai e o jornalista fica sentado esperando que a polícia ache o assassino e dê uma coletiva. Ninguém sai da redação para procurar nada. O jornalismo de hoje é sedentário. Nem fumar na redação pode mais. Onde já se viu um repórter sem um cigarro na boca, deixando cair a cinza no teclado?

Outro dia duas garotas (último ano de jornalismo, em São Paulo) me entrevistaram e eu falei em linotipo. Elas perguntaram o que era aquilo.

Último ano de jornalismo e não saber o que fazia um linotipista é o mesmo que um formando de medicina desconhecer as mezinhas ou um advogado se formar sem saber o que é data venia.

Estou escrevendo tudo isto, porque acabo de ler o livro Cem Quilos de Ouro (e outras histórias de um repórter), do Fernando Morais, lançado recentemente pela Companhia das Letras. Tenho a impressão de que a simples leitura do livro vale por quatro anos de jornalismo universitário. O livro é uma aula de como fazer jornalismo, do que é um repórter e qual a sua função dentro de um jornal. Mais que uma aula, um curso, uma faculdade inteira.

Será que as faculdades de jornalismo já mandaram seus alunos lerem o Fernando?

Será que as faculdades pedem aos seus alunos que leiam antigas edições da revista O Cruzeiro, que chegava a tirar 700 mil exemplares nos anos 60?

Aquilo ali é outra aula de reportagem. Uma revista investigativa. Será que eles ensinam quem foi Samuel Wainer e a revolução que ele fez na imprensa brasileira? Será que eles contam que o Rubem Braga foi para a 2.ª Guerra Mundial – no front – fazer crônicas? Sim, crônicas.

Será que alguém lá nas cátedras pode explicar que quiser não é com z?

Enfim, meu queridos alunos de jornalismo, leiam o livro do Fernando Morais.

Vocês vão aprender muito mais do que colocaram na sua cabeça em quatro anos.

Muito, muito mais.

E, por favor, senhores professores, citem o Ferreira Gullar: a crase não foi feita para humilhar ninguém…

E, para terminar, o que é mesmo um linotipo? E o que é mesmo um repórter?’



LÍNGUA PORTUGUESA
Deonísio da Silva

‘Palavras de política’, copyright Jornal do Brasil, 12/04/04

‘Os candidatos são assim denominados porque na antiga Roma aqueles que se apresentavam a cargos públicos vestiam-se de branco. Suas vestes semelhavam a toga dos sacerdotes. Com isso, queriam demonstrar que eram puros, sobretudo em suas intenções. A palavra candidato veio de candidatus, vestido de branco.

A cor branca está associada, desde tempos remotos, às idéias de pureza e honradez. Nas democracias, marcadas por escolhas periódicas de representantes do povo, os candidatos passaram a vestir-se de muitas outras cores, mas permaneceu a etimologia do vocábulo. Entretanto, dado o que aprontam vários deles, inclusive depois de eleitos, a pureza foi sacrificada em nome de pragmatismos diversos, que incluem alianças dos supostamente puros com os comprovadamente corruptos.

Eleição também é palavra de origem latina. Veio de electione, escolha. Nos começos de nossa história política, exigia-se do eleitor certa renda, mas não instrução. Votavam apenas os ricos, ainda que fossem analfabetos. Depois estendemos o voto a todos os maiores de 18 anos, ricos e pobres, desde que alfabetizados.

Nossa atual Constituição, de 1988, revisada por Ulysses Guimarães na placidez da Fazenda São Joaquim, em São Carlos, no interior de São Paulo, conferiu o direito de voto a todos os brasileiros maiores de 16 anos, alfabetizados ou não. O voto é, no Brasil, além de direito, dever, já que é obrigatório dos 18 aos 70 anos.

Já vereador, sinônimo de edil, vem do português arcaico verea, vereda, caminho. A função principal do vereador romano, denominado aedil, era verificar e tomar providências para a conservação dos edifícios. Edil e edifício têm origens semelhantes. Com o passar do tempo, vereador substituiu edil, mas as duas palavras designam a mesma função.

O vereador percorre as veredas – hoje elas se chamam avenidas, ruas, bairros, subúrbios, periferia – e vê o que falta ali. Faz seu projeto e o apresenta a seus pares na Câmara, assim chamada porque na antiga Grécia os locais em que os políticos se reuniam eram cobertos por abóbadas, semelhantes às das catedrais.

Em grego, abóbada é kamára. Quando passou para o latim vulgar, as pessoas começaram a pronunciar ‘camára’, mas vieram uns falsos eruditos que, para diferenciar sua fala da do povo, tornaram-na câmara, proparoxítona. A língua portuguesa evita palavras proparoxítonas. O latim vulgar, o do povo, era mais coerente: ‘camára’, como no grego.

As origens das palavras prefeito e município também são latinas. Os romanos denominavam praefectus a autoridade posta à frente das fortificações que cercavam o município. O praefectus, prefeito, era o chefe do municipium, município, o local onde as pessoas moravam e exerciam seus ofícios, tendo direitos e deveres.

Deputado veio do latim deputatu, enviado a alguma missão. Em latim, deputare significou inicialmente podar, separar e, por fim, o sentido que hoje tem, de indivíduo que trata de interesses de outros. Já senatus, senado, conselho onde tinham assento os anciães, e senator, senador, o próprio ancião que atuava como conselheiro, também são palavras latinas. Este é também o caso de presidente, do latim praesidente, declinação de praesidens, presidente, designando aquele que está assentado à frente, na sede, no palácio, ocupando o primeiro lugar.

Todos os desempregados devem ter qualificação se quiserem trabalho. E ainda assim não estão encontrando empregos. Por que dos candidatos a representantes do povo exigimos tão pouco? Os partidos poderiam ao menos colocar um mata-burro ou mata-corrupto à entrada das respectivas sedes.’