Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

CoberturaWiki, um registro a muitas mãos

É consenso, mesmo entre os de visão mais tradicional, que a internet vem desencadeando um profundo e contínuo processo de reinvenção do fazer jornalístico. Os blogs e wikis, as redes descentralizadas para a produção e difusão da informação: são não poucas as novas ferramentas e dinâmicas midiáticas que, de modo cada vez mais acelerado, dão contorno vívido à web como estandarte da ‘era da interatividade’.

Mas se até bem pouco tempo essa ‘interatividade’ limitava-se a enquetes ou pequenos comentários publicados sob o texto original, num discurso ‘de cima para baixo’ disfarçado de conversação, hoje a idéia realiza-se num processo radical, que confunde quem cria e quem consome a informação. Não é incomum que assuntos levantados e circulados em blogs e comunidades de usuários determinem e/ou influenciem a pauta de grandes grupos de comunicação. Do mesmo modo, é também comum a desconstrução coletiva, no ritmo dos hiperlinks e dos sites/colunas pessoais, de agendas difundidas por corporações de mídia.

Não são poucos os que vêem nos blogs a ponta-de-lança desse fenômeno. A ferramenta, um sistema de publicação online gratuito, intuitivo e simplificado, estruturado basicamente em torno de notas referenciadas entre si por meio de hiperlinks, trouxe dinâmica inédita à circulação da informação pela web. Sua estrutura padronizada oferece certa ‘ordem’ ao caos de referências hiperlinkadas nas antigas (e horrendas) páginas pessoais dos primórdios da internet, limpando ruídos tanto na exposição quanto na difusão da produção midiática.

Blogs x wikis

Para garantir o escoamento do que publicam, a estrutura dos blogs costuma equilibrar-se sobre uma comunidade de vários blogs ‘amigos’, que rastreiam e republicam as notas mais pertinentes às suas agendas. Uma republicação que, dependendo do interesse pela pauta em questão, não raras vezes dissemina-se em projeção geométrica pela rede. Não à toa, os blogs não demoraram a se transformar de diversão geek [jargão para vício em computadores e internet] adolescente para o formato padrão das colunas de notas rápidas na rede, primeiro para os jornalistas com um pé no alternativo e chegando, depois, às grandes empresas de comunicação.

Apesar de amplamente disseminado, o fenômeno mostra fôlego invejável. Seus parentes próximos no mundo radiofônico e televisivo, os podcasts e videocasts (estes, hospedados em sites como YouTube ou Google Vídeo) ainda são usados timidamente, mas têm grande potencial de crescimento.

Se a relação entre os blogs e seus usuários é por natureza personalista (blog, vale lembrar, é uma corruptela de ‘web log’ – algo como ‘diário web’ em português), os wikis têm revolucionado o modo de se pensar e fazer a comunicação pelo motivo oposto. Num wiki, todo e qualquer trabalho é aberto à reelaboração coletiva, descentralizada em ambiente virtual. Uma obra construída num wiki não tem autoria definitiva, suas linhas de debate não são determinadas por uma única pessoa – trata-se de um recorte de realidade amalgamado, negociado pela multidão. Apesar da boa idéia, não é raro que a tecnologia wiki, aberta ao público, como uma página de internet escrita a lápis na qual todos podem apagar e escrever algo diferente, desperte desconfiança quanto à sua confiabilidade.

Exemplo mais notório dessa queda-de-braço é a Wikipedia, que, apesar de tornada o local preferido de boa parte dos internautas para a busca de informações básicas, ainda desperta discussões acaloradas – e quase sempre equivocadas – sobre a acuidade de seu material, editado pelo público livremente, sem restrições.

Ética colaborativa

Grande parte do mérito do Wikipedia está na ousadia de sua idéia: acreditar que o máximo de liberdade e abertura possível levará à construção de algo útil, relevante e positivo. Antes do sucesso do projeto muitos o classificariam como utópico e ingênuo. A Wikipédia, porém, ganha força pelo caráter colaborativo que permeia a estrutura da web tanto tecnologica quanto comunicacionalmente.

Assim como o movimento software livre já havia provado que é possível construir um sistema operacional de computador sem um grande financiador por trás – e que é proprietário daquele conhecimento – a Wikipedia mostrou que é possível unir esforços e produzir uma enciclopédia completa.

Além da ética por trás da iniciativa, a Wikipédia tem também suas salvaguardas tecnológicas. Diferente de uma folha de papel, nas páginas wiki é possível recuperar (ou retirar) todas as alterações feitas na página. Assim, se alguém apaga todo o conteúdo de um tópico, é fácil para qualquer outro usuário publicar novamente o que foi modificado. Ao mesmo tempo, isso cria uma nova possibilidade de leitura para a página: é possível acompanhar todo o histórico de alterações que ela recebeu, desde a criação do tópico até sua versão mais completa e atual. Além disso, o wiki oferece também, dependendo de sua configuração, que se permita alterações apenas para usuários cadastrados, tornando possível que se saiba quem contribui com exatamente o quê em cada página.

Um evento, muitos olhos

Essa idéia de interação entre usuários para a construção de textos coletivos deu origem a muitos outros projetos. Alguns deles são diretamente ligados à Fundação Wikipedia, como o Wikitionary, que se preocupa em construir um dicionário, ou o Wikiquote, que faz uma coleção de citações, famosas e obscuras. Mas outros são independentes, como o Wikitravel, que pretende ser um guia de turismo escrito a partir da experiência de diversos viajantes.

Pensando nesses projetos e tendo em mente a idéia de construir uma iniciativa voltada a eventos, principalmente aqueles de grande público, com debates abrangentes, desenvolvemos a CoberturaWiki. O propósito da CoberturaWiki é fazer com que os próprios participantes de um determinado evento criem relatos e documentem as discussões ocorridas, tanto em mesas oficiais como em discussões paralelas.

Mais importante do que simplesmente reunir as colaborações, porém, é a idéia de construção coletiva dos tópicos. Do mesmo modo como o Wikipedia permite que vários usuários agreguem pequenas informações que construirão o verbete de uma enciclopédia, diferentes pessoas, presentes em uma mesma sessão ou debate, podem interagir e colaborar para oferecer uma visão um tanto mais completa do evento. Quando houver divergências, nada impede que o debate ocorra naquela mesma página e, se estas forem irreconciliáveis, um novo tópico sobre a mesma sessão pode ser criado.

Casos concretos

A idéia da CoberturaWiki foi testada pela primeira vez no Encontro Latino Americano de Software Livre (LacFree 2005), evento promovido pela Unesco em dezembro de 2005, no Recife (PE). Para estimular a participação e divulgar a iniciativa foram oferecidas algumas oficinas ao público, nas quais foi trabalhado o funcionamento dos wikis e a idéia geral da CoberturaWiki. Essa primeira experiência contou com pequena participação do público, e teve pouca alimentação de conteúdo. Das quase mil pessoas no evento, 20 apenas, aproximadamente, se cadastraram.

Além disso, observou-se uma preferência do público em criar novos itens a alimentar os tópicos já criados. Ao invés de trabalharem coletivamente para a construção de textos unificados, os participantes preferiram criar novos tópicos e, neles, imitaram claramente o formato jornalístico. Foram publicadas apenas notas curtas, bastante objetivas. Um padrão de imitação do formato jornalístico que foi, também, a tônica da segunda edição da CoberturaWiki, realizada no 7º Fórum Internacional de Software Livre (fisl7.0), em abril deste ano, em Porto Alegre. Desta vez, com uma participação um tanto maior do público, graças à melhor divulgação, com folhetos e anúncios antes das sessões do evento.

No fisl 7.0, o site da CoberturaWiki foi redesenhado, para que a criação de novos tópicos/matérias se tornasse mais simples. E cada um deles passou a receber uma classificação, indicando se aquele era um tópico que já poderia ser considerado completo (mas ainda podendo receber novas contribuições), se já possuía algumas informações mas necessitava de mais conteúdo para ser considerado pronto, ou se era completamente imaturo, contendo muito pouca informação.

Essas novas funcionalidades, intuitivas, desaguaram num aumento da colaboração e na elaboração de textos coletivos. A grande maioria dos tópicos criados sofreu poucas revisões. Em geral, após a inserção de uma pequena nota sobre uma palestra, outro participante complementava o tópico com uma foto do palestrante ou com a citação de uma frase dita durante a apresentação. Alguns tópicos, porém, chegaram a ser revisados mais de 10 vezes. A significativa participação deriva também do perfil do público do evento: mais técnico, habituado a lidar com computadores e com wikis. Embora tenha havido algum esforço de divulgação é provável que um evento com público distinto necessitasse de maior incentivo à participação do que o realizado.

Do wiki para os blogs e grande imprensa

Entre os que receberam maior número de revisões está o texto ‘Microsoft – Liberdade mesmo que tardia (?)‘, revisado oito vezes por seis participantes diferentes. O tópico relata a presença da Microsoft no fisl7.0. A companhia, tradicional adversária do software livre, apareceu de surpresa no evento, fora da programação oficial, e para um debate no stand de um veículo de imprensa por ela patrocinado. Embora esse tenha sido um dos momentos mais polêmicos e controversos do fórum, todas as alterações foram em direção à complementação e revisão de trechos e não houve exclusão de parágrafos. Essa leitura da evolução do artigo – e dos usuários responsáveis pelas alterações – é possível a qualquer leitor – basta um clique de botão para se acompanhar toda a história da página.

A CoberturaWiki repercutiu na imprensa tradicional e especializada. Às vezes, mal compreendida – foi descrita em mais de um veículo como ‘cobertura oficial’, embora totalmente aberta, editável, e sem controle central. O material oferecido pela iniciativa foi reproduzido e comentado na grande imprensa e em diversos websites, que a indicaram como uma das fontes principais de informação sobre o fisl7.0.

É certo que o material publicado não reflete, jornalisticamente, uma visão total do evento. Os tópicos e comentários são fruto do interesse de alguns em documentar e relatar o que viram, a partir de seu próprio ponto de vista, e dispondo-se a confrontar essa visão com a de outros participantes – para, a partir daí, construir um painel (um pouco) menos enviesado. As matérias da CoberturaWiki não refletem uma linha editorial unificada, mas emergem da contribuição de participantes que se dispuseram a embarcar nessa aventura coletiva. De todo modo, o que a experiência mostra é que, proporcionando ao público um espaço de expressão e um ambiente convidativo de colaboração, é possível construir uma fonte de informação diferenciada, independente, produtiva e bastante interessante.

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Entre 24 a 26 de agosto a CoberturaWiki estará ativa novamente neste endereço, desta vez para o III Festival de Software Livre da Bahia.

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Respectivamente, pesquisador do Labjor/Unicamp; coordenador da ONG Rede Livre e edita o site OPlanoB