Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Como ganhar uma concessão sem fazer força

Guia prático para demonstrar o funcionamento do Serviço de Comunicações Digitais (SCD) e tornar o leitor um feliz concessionário de serviço público de telecomunicações.

É simples e rápido. Basta ter amigos na alta direção da concessionária de telefonia de sua região e combinar o preço, que eles providenciarão tudo para você sair vitorioso na licitação, incluindo, é claro, computadores e backbone.

A coisa funciona assim:

Se vocês lerem direitinho a regulamentação do SCD, poderão observar que nos incisos X e XXII do Artigo 3º a Anatel considera a internet como um serviço de valor adicionado, prestado por Provedores de Acesso à Serviços Internet (PASI).

Mais adiante, observem que o Artigo 4º descreve o SCD como um serviço de telecomunicações que serve apenas para transportar ‘sinais digitais’ entre os terminais dos usuários e as redes de provedores de serviços de valor adicionado, reeditando o SLDD utilizado atualmente nos contratos das concessionárias de telefonia para encobrir a desagregação parcial de rede proporcionada pelo aDSL (banda larga):

Art. 4º Serviço de Comunicações Digitais (SCD é o serviço de telecomunicações de interesse coletivo destinado ao uso do público em geral, que por meio de transporte de sinais digitais permite o acesso às redes digitais de informações destinadas ao acesso público, inclusive da internet.

No parágrafo 1º do Artigo 4º encontra-se a confirmação de que o SCD realmente só serve para conectar os computadores dos usuários às redes dos provedores de serviços de valor adicionado:

§ 1º. O SCD deve incluir:

I. provimento de conexão em banda larga nas interligações dos equipamentos terminais com os provedores de acesso a redes digitais de informação e à internet;

Finalmente, no Artigo 5º está a informação de que não é necessário que o concessionário do SCD tenha redes ou equipamentos próprios para poder explorar o serviço:

Art. 5º Na exploração do SCD, é assegurado à prestadora empregar equipamentos e infra-estrutura que não lhe pertençam, contratar terceiros para o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço, nos termos do artigo 60 do Regulamento dos Serviços de Telecomunicações, aprovado pela Resolução n.º 73, de 1998, bem como regulamentos e normas referentes à desagregação e uso de redes.

Redes ocultas

Juntando tudo isso, e considerando que a finalidade dos serviços de telecomunicações é apenas o estabelecimento de circuitos eletrônicos, através dos quais circularão informações analógicas ou digitais, podemos concluir que:

a) A minuta não esclarece o que são as ‘redes digitais de informações destinadas ao acesso público’. Porém, se elas puderem ser acessadas a partir de uma conexão internet, obviamente tornam-se parte integrante da própria rede internet. Assim, segundo o entendimento da Anatel, elas também seriam consideradas como redes de serviço de valor adicionado (SVA).

b) Como todas as conexões realizadas através do SCD destinam-se exclusivamente às redes dos provedores de SVA, está implícito que não haverá interconexão entre as redes do SCD e as redes de outros serviços de telecomunicações, como o SCM.

c) Pelo fato de a Resolução 40 da Anatel não considerar como interconexão as ligações entre as redes de telecomunicações e os terminais ou redes de usuários, podemos considerar que não existem interconexões no SCD e, conseqüentemente, não haverá nenhuma desagregação de redes.

d) As redes dos provedores de SVA não poderiam se interpor entre as redes de dois serviços de telecomunicações (SCD > provedor > SCM), pois neste caso os provedores estariam impedindo a realização de interconexões de redes da classe V, previstas na Resolução 40, e isto seria uma violação ao artigo 183 da LGT e ao Artigo 10 da Lei 9.296.

e) Por estar explícito na regulamentação que os destinos das conexões do SCD devem ser sempre as redes dos provedores de SVA, no caso de uma autorizada do SCM obter uma concessão para SCD, ela estaria impedida de utilizar o seu próprio backbone, sendo obrigada a utilizar a ‘internet’ do provedor de SVA.

f) De acordo com a definição de internet do inciso X do Artigo 3º, o SCD seria apenas o serviço de telecomunicações utilizado como suporte na interligação de usuários à ‘rede internet’ dos provedores de SVA. Neste caso, as autorizadas do SCM que possuírem concessões para SCD, somente poderão utilizar as suas redes para estabelecer linhas dedicadas (SLDD) ligando os equipamentos dos usuários às redes dos provedores de SVA, o que pode ser feito através de redes sem fio, dispensando as SLDDs ‘desagregadas’ das concessionárias de telefonia fixa.

g) Por servir apenas para conectar os computadores dos usuários à redes de provedores de SVA que, segundo o Artigo 61 da Lei Geral das Telecomunicações (LGT), também são usuários de serviços de telecomunicações, o SCD é na realidade um serviço de interesse restrito, que, de acordo com o Artigo 67 da LGT, não poderia ser prestado em regime público.

h) Para se tornar um concessionário de SCD, o pretendente não precisa de absolutamente nada, pois toda a parafernália necessária para a prestação do serviço pode ser alugada de terceiros, o que permite caracterizar o SCD como uma simples fachada para concentrar tráfego em redes IP, que convenientemente devem ser mantidas ocultas.

Mas quais seriam estas redes IP para as quais a regulamentação do SCD está procurando desviar o tráfego internet? Por que é conveniente que elas fiquem ocultas?

Encalhe-problema

Bem, quando a licitação do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) foi melada em fins de agosto de 2001, todo mundo ficou sabendo que tudo não passava de uma armação da Anatel para entregar às concessionárias de telefonia os serviços de comunicação de dados internet, previstos nos incisos V e VI, VII e VIII do Artigo 5º da Lei 9.998 (a do Fust), apesar de proibidas, pelo Artigo 86 da LGT, de prestarem este tipo de serviço.

Para viabilizar a participação das concessionárias de telefonia naquela licitação, em 1998 a Anatel plantou a seguinte obrigatoriedade de universalização no inciso III do Artigo 5º do Decreto 2.592 – o do Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado no Regime Público (PGMU do STFC):

Art. 5º Em localidades com Serviço Telefônico Fixo Comutado, com acessos individuais, a Concessionária deverá:

III – tornar disponíveis acessos individuais para Estabelecimentos de Ensino Regular e Instituições de Saúde, objetivando permitir-lhes comunicação com redes de computadores, mediante utilização do próprio Serviço Telefônico Fixo Comutado ou da rede que lhe dá suporte.

Além do PGMU siliconado, a Anatel também forneceu às concessionárias termos de autorização para SRTT, um serviço de telecomunicações que jamais existiu, através do qual elas poderiam explorar serviços de comunicação de dados, como rede comutada por pacotes e o SLDD, que é utilizado para transportar as informações dos usuários até os backbones das próprias concessionárias, igualzinho ao que está sendo proposto agora pelo SCD.

Com isso, logo assim que foram privatizadas, as concessionárias de telefonia passaram a investir pesado em redes IP, tanto para atender ao tráfego do Fust, quanto para outros serviços domésticos e corporativos de comunicação de dados. Os investimentos nas redes foram tão expressivos que, no fim de 2001, a meta de 33 milhões de acessos telefônicos instalados, estabelecida pelo PGMU, havia sido ultrapassada em 11 milhões de terminais.

Porém, esta enorme capacidade de tráfego supostamente ociosa, concentrada nas grandes cidades, onde não havia mais demanda para tantos telefones, na realidade correspondia às redes IP das concessionárias. Mas aí havia um probleminha: as redes IP são utilizadas para serviços de comunicação de dados, modalidade de serviço prestada sempre em regime privado. Com isso, para poderem repassar os seus custos de implantação às tarifas de telefonia pública (na forma de subsídio cruzado), as concessionárias precisaram transforma-la em ‘telefones encalhados’.

Tudo dando certo

No início de julho de 2001, quando o edital do Fust foi publicado, simplesmente não havia nenhum serviço de comunicação de dados de interesse coletivo devidamente regulamentado (O SLE era de interesse restrito) e apenas as concessionárias de telefonia exploravam esta modalidade de serviço, por conta de seus ‘termos de SRTT’. Porém, isto só se tornou possível porque a Anatel ficou embromando a regulamentação do SCM, para libera-la, através da Resolução 272, somente no início do mês de agosto de 2001, quando a licitação já estava na sua reta final.

Então, no dia 30 de agosto de 2001, aconteceu o que a Anatel não esperava: após várias tentativas, os deputados Sérgio Miranda e Walter Pinheiro finalmente conseguiram uma liminar na 6ª Vara de Justiça suspendendo a licitação do Fust, arrumando com isso um tremendo pepino para a nossa querida agência reguladora pois, caso ela precisasse fazer um novo edital, obrigatoriamente teria de reconhecer que a comunicação de dados estava regulamentada pelo Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) que, segundo a Resolução 272, representava a convergência tecnológica dos serviços de telecomunicações.

Portanto, se a Anatel estivesse realmente interessada em atender aos requisitos de comunicação de dados da Lei 9.998 bastaria ter criado, ainda em 2001, uma modalidade do SCM para ser prestado em regime público, o que é permitido pelo Artigo 65 da LGT. Porém, como os autorizados de SCM podem operar seus próprios backbones internet e proverem a última milha através de equipamentos sem fio, o que a agência faria como os imensos backbones IP das concessionárias, travestidos de linhas encalhadas e pagos pelos assinantes do serviço de telefonia, que já estavam prontinhos para receber tráfego IP de escolas e hospitais?

Pois é. Em vez de agirem como autoridades máximas em telecomunicações de nosso país e discutirem a lambança de forma clara e transparente com a população, assumindo a responsabilidade pelos seus atos, os doutores da Anatel optaram por insistir no erro, armando um tremendo circo, que envolve até um acórdão do TCU, tudo para fazer os usuários de trouxas, procurando convencê-los com artifícios tecnicamente ridículos e insustentáveis de que o SCD é o serviço de telecomunicações salvador da pátria que vai liberar a grana do Fust para os computadores das criancinhas nas escolas.

O pior é que a armação parece estar dando certo, pois, pela exaltação ao SCD feita em nota publicada no caderno de informática do Globo no dia 2/2, daqui a pouco vão acabar colocando uma estátua do Edmundo Matarazzo, o pára-raios oficial da Anatel, bem na porta do jornal.

Respostas sabidas

Infelizmente, os doutores da Anatel só prosseguiram com seu nebuloso projeto de favorecimento das concessionárias graças ao apoio do ex-ministro Miro Teixeira, que apesar de viver falando mal deles não viu nada de errado no seguinte inciso plantado no PGMU das concessionárias (Decreto 4.769), que entrará em vigor a partir de 2006:

Art. 5º A partir de 1º de janeiro de 2006, em localidades com STFC com acessos individuais, as Concessionárias devem:

III – tornar disponíveis acessos individuais para estabelecimentos de ensino regular, instituições de saúde, estabelecimentos de segurança pública, bibliotecas e museus públicos, órgãos do Poder Judiciário, órgãos do Ministério Público, objetivando permitir-lhes a comunicação por meio de voz ou da transmissão de outros sinais e a conexão a provedores de acesso a serviços internet, mediante utilização do próprio STFC ou deste como suporte a acesso a outros serviços.

Ou seja, enquanto o SCD está claramente limitado a conectar terminais de usuários às redes de provedores de SVA, as concessionárias de telefonia, pela ‘transmissão de outros sinais’ podem fazer barba, cabelo e bigode nas telecomunicações das entidades beneficiadas com a grana do Fust.

Com isso, fica óbvio que o SCD é apenas uma fachada para o PGMU da telefonia, pois ninguém terá condições de concorrer com elas nestes serviços, principalmente devido ao fato do custo de seus backbones ter sido pago pelos usuários dos serviços de telefonia.

Agora, supondo que vocês queiram participar da licitação das concessões do SCD: não seria bem mais prático procurar os amigos diretores das concessionárias regionais e propor uma parceria, na qual vocês alugariam toda a estrutura que eles já tiverem, incluindo computadores, backbones e linhas aDSL desagregadas? Com isso, vocês entrariam apenas com o nome, as concessionárias fariam o trabalho, os monopólios seriam mantidos e todos ficariam felizes, principalmente a Anatel.

Quanto às perguntas lá de cima, sobre desviar tráfego internet e a conveniência de que as redes IP fiquem ocultas, parece que agora vocês já sabem as respostas.

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