Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Contra o exagero das simplificações para leigos

O professor Gilberto Almeida respondeu, no Observatorio da Imprensa, à matéria que lá publiquei, na qual critico artigo de sua lavra em coluna que assina na revista eletrônica IDG Now!. Diz que seu artigo se destina ao publico em geral, o que dispensaria ‘rigorismo acadêmico’ [veja remissão abaixo]. No artigo criticado, o professor Gilberto define pirataria da seguinte forma:

Ela [a palavra ‘pirataria’] tem sido reservada para batizar a atividade de copiar com intuito comercial (as obras autorais, inclusive software).

Prossegue o professor em sua resposta:

‘O comentário do artigo [suponho o supracitado batismo da pirataria] se refere a software proprietário, e não a software livre, pois via de regra (salvo possíveis exceções), o software livre não é oferecido em condições comerciais (embora serviços correlatos possam vir a sê-lo)’.

Porém, em sua resposta o professor convenientemente omite o fato de aquela sua definição de pirataria aparecer naquele artigo como gancho à seguinte pergunta:

‘Mas e a cópia fornecida a terceiros gratuitamente, também não deve ser considerada como pirataria?’

Justamente a situação que inverte regra e exceção na sua justificativa, relativamente a software livre versus proprietário. Sendo que em nenhuma passagem do artigo criticado, antes ou depois desta pergunta retórica, o professor Gilberto esclarece que está falando de software proprietário apenas. Isto seria, podemos supor, a título de simplificação para leigos.

Mas mesmo que o professor Gilberto tivesse esclarecido, no artigo, que falava apenas de software proprietário, isto não seria suficiente para justificar a amputação do predicado da ilegitimidade na atividade replicadora do software, na caracterização da pirataria, pois as licenças proprietárias normalmente abrem exceção para uma cópia legítima, para fins de segurança do licenciado (backup), sem excluir aqueles com intuito de proteger suas atividades comerciais contra a perda da instalação concomitante a dano no CD original, arranhado ou extraviado depois de tantas infecções, travamentos e reinstalações.

Mesmo assim, avalia:

‘Creio que meu artigo não tenha transmitido algo enganoso aos leitores… Inversamente, me parece que o autor da crítica incorreu em engano. Nessa linha, preocupa-me o que possa ter ele transmitido aos leitores’.

Público incrédulo

Assim como o professor Gilberto, também sou educador. Ele, no Direito, e eu, na Informática. Também como ele, me preocupo com o que se possa transmitir enganosamente aos leitores. Particularmente, também eu, sobre as interrelações do mundo da informática com o do Direito. E os julgamentos de ambos, relativamente à enganosidade no texto alheio, são igualmente subjetivos.

Para que o leitor possa ponderá-los, gostaria de esclarecer que o meu julgamento, embora subjetivo, não é irresponsavelmente atirado a esmo, sem lastro, como mero veículo de adjetivação agressiva contra quem seja. O meu julgamento, o que me levou a dirigir-lhe crítica contundente, pois já não a primeira, tem base e prumo na minha experiência de educador. Cito apenas um episódio emblemático, para me explicar.

Quando fui convidado a participar do painel ‘Liberdade do Conhecimento na Sociedade da Informação’ no Fórum Mundial da Educação, em São Paulo, em abril de 2004, comecei minha apresentação mostrando à platéia de aproximadamente 50 pessoas, na maioria educadores e pedagogos, um CD com o logotipo oficial de uma distribuição GNU/Linux ‘pura’ na face, e perguntei: ‘Se eu fizer cópias deste CD e distribuí-las aqui a vocês, cobrando o valor aproximado de um CD virgem por cada cópia, quem acha que isso seria crime de pirataria?’ Todos os presentes, sem exceção, levantaram a mão, dizendo que sim. Só dois não sabiam que a cada software corresponde uma licença, esta sob a lei, mas entendiam que a lei assim nos enquadraria.

Quem, ou o que, poderia reparar-lhes o engano? Pareciam incrédulos, ao menos de início, com a minha divergência diante de sua unanimidade. Minha palavra e currículo se viram insuficientes.

Quem lucra

Certamente o artigo por mim criticado, no qual um professor e operador do Direito com inigualável currículo se dirige às massas sobre o tema, tampouco ajudaria a esclarecê-los, quero crer, já que, no tal artigo, pirataria é batizada como ‘a atividade de copiar com intuito comercial (as obras autorais, inclusive software)’. Justamente o que pensavam, e alegaram como justificativa para a opinião unânime sobre a tipificação penal em que incorreríamos com a minha proposta.

Certamente o restante do artigo do professor tampouco ajudaria, devo continuar crendo, pois tal definição nele é gancho à pergunta ‘Mas e a cópia fornecida a terceiros gratuitamente, também não deve ser considerada como pirataria?’, para a qual a resposta dele é ‘sim’, e com punição que possa alcançar, por que não, multa de até 3 mil vezes o valor ‘do produto’.

A contundência adjetivosa da minha crítica não tem o intuito de julgar o professor Gilberto, daí porque sob condicionais. Nem de ver sua imagem manchada, risco inerente à atividade de escritor, comum a ambos. Tem, outrossim, o objetivo de alertar leitores, inclusive ele, de que há um efeito socialmente nefasto na acumulação de inúmeras e semelhantes ‘simplificações para leigos’ semelhantes, em freqüência e amplitude observadas na grande mídia.

Efeito que mantém o público ignorante, confuso e receoso sobre alternativas, como se pôde constatar no Fórum Mundial de Educação em São Paulo, a um modelo de negócio que trata o consumidor como bandido em potencial, agora quase ao ponto de inverter o ônus da prova (vide cláusulas sobre ‘Digital Rights Management’ nas EULAs).

Esse efeito ganha o apelido de FUD (Fear, Uncertainty and Doubt) [medo, incerteza e dúvida]; e não é difícil perceber quem pode lucrar com ele. Há até os que se dedicam profissionalmente a espalhar e nutrir FUD, na sua maioria publicitários de empresas monopolistas de TI, ou jornalistas ‘especializados em TI’ que escrevem (ou assinam) opiniões em grandes veículos da mídia. São os ‘FUDsters’, nem todos jornalistas profissionais ou marqueteiros.

Apelo aos críticos

Os adjetivos condicionais em minha crítica pretendem alertar, com as melhores intenções mas também com eficácia, ao público sobre o FUD e ao professor Gilberto, em particular, sobre o risco de a linguagem que ele reserva, para dirigir-se às massas em assuntos de TI e Direito, como observada em mais de uma ocasião, poder levar sua imagem a ser confundida com a de ‘FUDsters’.

Para encerrar este episódio, dirijo um pedido aos meus críticos. Antes de atacarem o que escrevo sobre o modelo proprietário, sobre FUD, sobre ‘FUDsters’ e sobre o tal artigo, ou de me atacarem por isto ou aquilo, sugiro como preâmbulo a leitura de uma EULA. Quantos já leram as licenças dos softwares que usam para digitar suas críticas, públicas ou privadas?

Quanto ao link para minha crítica a um artigo anterior do professor Gilberto, esta ainda não respondida, e abordando especificamente software livre, peço desculpas pelo inconveniente da momentânea inoperância do site da minha instituição acadêmica, que é pública.

Há alternativas (não quis parecer ainda mais pedante) de versões publicadas – sob licença DFL – em:

Observatório da Imprensa

Centro Brasileiro de Estudos Jurídicos

Jus Vigilantibus

Portal Software Livre Brasil

Engenharia, Automação e Controle – Noticiário

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ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira. Site: (www.cic.unb.br/docentes/pedro/sd.htm)