Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Direito autoral e a hiperconectividade

A Folha Online publicou, em 25/5/05, artigo de Gerson Schmitt, vice-presidente da câmara e-net e conselheiro da Abes, intitulado ‘Empresas de software ainda têm dúvidas sobre regras do segmento‘. Que mal pergunte: neste segmento, quem não tem dúvidas? A começar pela natureza das regras: quem as impõe, a quem, quem pode ou deve impô-las, ou negociá-las, e como?

Da leitura do tal artigo, a primeira dúvida a me assaltar é básica: com que autoridade pode alguém tratar do tema ignorando completamente as regras basilares, ou seja, os regimes hoje praticados no licenciamento de softwares? Sobre softwares, diferentemente de outros temas, a Folha nunca aceitou publicar opiniões minhas, de sorte que, em se tratando de dúvidas, nem tentarei. Sobre elas, o leitor poderá ler aqui.

Indústrias e mercados no segmento de TI evoluem rápida e constantemente, mas o momento atual é especial. Nele vivemos importantes e profundas transformações. Nele, a rica demografia das dúvidas e certezas dá o sentido dessa importância e profundidade. Enquadrar essa demografia, por inteiro e a uma distância que a atenção do leitor permita, é objetivo deste artigo, diante da parcialidade marota com que a retratam ali e alhures. Caricaturas que tentam ofuscar, a qualquer custo, a marcha da comoditização do software, inevitável quando a evolução das técnicas de reuso de código, regimes de licenciamento que estimulam a produção colaborativa e coletiva, e a hiperconectividade que batiza a sociedade da informação se combinam, em busca de eficiência técnica, moral e econômica no setor.

Verborrice inútil

O conselheiro da Abes começa a traçar a do seu artigo com uma pergunta retórica: ‘Como proteger o direito autoral daquele que produz software de código aberto?’ A resposta, para o articulista, ‘é simples: isso é impossível’. Tal resposta é perigosamente simplista. E não simples, como sua aparente certeza confunde. Mais ainda o leitor, com suas aspas lançando o veredicto a partir de boca anônima. Entendamos a pergunta, e a resposta se inverte na contraparte dos interesses representados no seu grandioso currículo. Noutras palavras: ao identificarmos quem deseja proteger, proteger o que, contra qual tipo de ilicitude, chega-se, pela óptica do usuário, a resposta oposta, como se pretende aqui mostrar.

Para se entender a proteção autoral do software, é preciso antes entender seu contexto. Para a maior parte da atividade produtiva no setor, a questão do código de um software ser aberto ou fechado não é assunto de foro público. São softwares produzidos por encomenda, em cujo caso o acesso ao código é assunto privativo entre contratantes. No Brasil, se o contrato é omisso sobre a titularidade da obra, esta titularidade é atribuída ao contratante, pela lei do software. Assim, esse tipo de contrato determina quem é o titular, e o titular determina, para si, a forma de proteção a direitos daí gerados que deseje exercer. Em regimes democráticos de Direito, direitos se exercem, não se impõem como os deveres.

Por que, então, tanta verborrice sobre regimes contratuais envolvendo a menor parte? Porque, em se tratando de software, a menor parte do que se produz constitui-se na maior parte do que se usa. Quanto mais genérico, maior o potencial de uso. O software terá valor de uso não só para quem o encomenda. Poderá ser replicado e distribuído, envolvendo terceiros na relação produção/’consumo’. Na expressão jurídica desta relação, além de contratos entre autor e empreendedor, surgem as licenças de uso e os licenciados. Tecnicamente, a grande maioria dos softwares atualmente em uso se encaixa em ‘ecossistemas’, plataformas estratificadas onde interoperam através de códigos e formatos digitais padronizados, compartilhados pelo ecossistema. Nessa estratificação, cada vez mais complexa, generalidade corresponde, grosso modo, a abstração funcional e proximidade do hardware. Daí a importância estratégica dos sistemas operacionais, pois seu regime de licenciamento influi decisivamente no regime dos padrões que estabelece.

Licenciamento alternativo

A competição entre regimes de licenciamento se exacerba pelo fato dos padrões de interoperabilidade alimentarem o ‘efeito rede’, estudado por economistas da era da informação. Tal efeito faz com que o valor de uso de um software aumente com sua disseminação. Esse efeito faz também com que o mercado onde atua, normalmente de intangíveis, tenda ao monopolismo. A lógica de mercado de bens rivais, que normalmente são tangíveis, indica, no caso do software, o potencial para esquemas piramidais fabulosos: Lucrar várias vezes com a mesma obra (um software), vendendo licenças de uso por cópia executável, sem depreciar o produto. Como se fossem sabonetes. Para isso, é preciso coibir a replicação por terceiros, e tratar a matriz do software (o código fonte), a forma original em que foi escrito, como segredo de negócio.

Do código fonte se obtém, por tradução automatizável, versões executáveis em hardware, para certos tipos de plataforma. Na base do esquema, sistemas operacionais e os padrões que os mesmos estabelecem. Tal é o modelo proprietário, que ganha esse nome por tratar cada cópia executável de um software como propriedade do fornecedor. A pirâmide do modelo proprietário já está esquematizada, e seu monopolismo, em adiantada consolidação. É ilusão querer hoje galgá-la a partir do nada. Nela, só resta lugar para parceiros vassalos.

Mas o esquema de pirâmide desse modelo tem um calcanhar de Aquiles: a premissa de escassez, essencial à lógica de mercado de bens rivais. Para controlar a escassez exigida por essa lógica, o modelo proprietário precisa induzir demanda por novas licenças, quase sempre para funcionalidades já atendidas. No discurso dos seus acólitos, isto se chama ‘inovação’. Usuários são ‘beneficiados’ com tais inovações (quase sempre upgrades) através da obsolescência programada, sobre o acervo dos seus dados, que estão fechados em códigos e formatos proprietários. Um CD pode ser vendido, mas o preço da cópia executável ali gravada é como o de um aluguel: proíbe-se a engenharia reversa sempre que possível, enquanto se força indiretamente os upgrades, através de incompatibilidades seletivas sob o efeito rede. O aluguel é pago à vista, com garantia da gradual dissolução do valor do ‘sabonete caixa-preta’. O preço da recusa aos upgrades é dado pela dependência aos padrões fechados e proprietários nos quais estão armazenados os dados do licenciado (vendor lock-in). Tal modelo viveu seu ciclo de eficácia entre a revolução do downsizing, no final dos anos 70, e a da hiperconectividade, com a internet atual.

Um software é uma seqüência de símbolos, formando uma hierarquia de instruções num determinado código ou linguagem. Copiar uma tal seqüência de símbolos digitais tem custo desprezível em relação ao da autoria, sendo que o ato de copiá-la não destitui quem a detém da posse, usufruto ou disponibilidade da mesma. Diferentemente de um sabonete, cuja venda destitui quem o detém da posse, usufruto e disponibilidade do mesmo. O que significa, na acepção precisa do termo em economês, que software é um bem não rival e sabonete é um bem rival.

Tratar bens não rivais, como software, como se fossem rivais, como o sabonete, aguça a avareza mas também leva a distorções cumulativas nas práticas comerciais, sociais e jurídicas envolvidas. Por isso, a eficácia desta estratégia tende a se estreitar com o tempo. No caso, em vinte anos, tal qual a estratégia anterior, a do modelo monolítico dos mainfraimes, que atrelava o negócio do software ao do hardware. Não por coincidência, a internet é o primeiro caso de sucesso de um modelo de produção e licenciamento alternativo a ambos, baseado em padrões abertos e licenças que tratam o software como bem não rival. Como linguagem técnica, aberta a especialistas.

Soberania e selvageria

Sob o estresse causado pelas distorções do modelo proprietário, é natural que o próprio mercado busque modelos alternativos. É natural que surjam agentes motivados a colaborar no desenvolvimento coletivo e aberto de softwares, para se livrarem do jugo escravagista de um tal esquema, enquanto buscam modelos negociais alternativos. Isso pode ser visto como aventura, mas também como evolução natural. Foi assim que surgiram e prosperaram os regimes de desenvolvimento e licenciamento coletivamente chamados de FOSS (software livre / de código aberto). Em regimes de licenciamento do modelo FOSS, os direitos autorais que um autor deseja proteger não são os mesmos que no modelo proprietário. Alguns, aliás, são opostos. É mesmo impossível proteger como segredo uma obra cujo autor lhe deseja o livre acesso. Moralmente, isso melhor alinha o FOSS – que desestimula a avareza – com a pedra de Moisés. A resposta do articulista é simplória porque implicitamente rejeita, ou finge rejeitar, a possibilidade de modelos sustentáveis alternativos ao proprietário. ‘Finge rejeitar’ está aí porque há outra explicação plausível, e perigosa, para o seu simplismo. Semente de dúvidas.

Ao referir-se à política de TI do governo, o articulista fala como se software só pudesse ser tratado como sabonete. Fala da destruição de empresas e do desemprego tecnológico, de vazamento gratuito de conhecimento, da impossibilidade de com ela se conjugar comércio e exportação, caso software seja tratado doutra forma. Se o foi antes do downsizing, não lhe vem ao caso, e ele prossegue. Fala de obrigações constitucionais do governo como se fossem aventuras irresponsáveis, fareja nele uma cruzada demagógica, quer julgar o que é melhor para governos. Estudos de ‘institutos idôneos’ explicariam tais arroubos falaciosos e previsões tenebrosas. Mas ele só conjuga no futuro do condicional, sem citar sequer um único caso ou exemplo. Isso se chama FUD (fear, uncertainty and doubt), uma forma de terrorismo verborrágico camuflado de profetismo tecnológico, patrocinado por gordas contas bancárias e executado por veículos midiáticos com muita sede de verbas publicitárias e pouca paciência com nuanças desambiguadoras entre ficção e fato.

Não é à toa que as dúvidas só crescem. No caso, de propósito: software não é sabonete; é inteligência intermediadora, estratégica na era da informação. Nem toda empresa hoje bem-sucedida no setor trata software como sabonete. Há sete anos, pelo menos. Conhecimento não se vaza; se expressa. E o que se oculta na intermediação de um software só pode ser imposto a quem se disponha, caso ‘livre mercado’ não seja apenas uma piada grosseira, oxímora. A maior parte da produção de software não é para distribuição, e portanto, passa ao largo desse catastrofismo pueril. E empresas que se recusam a evoluir, presas a um modo de produção por demais avarento e decadente, pré-internet, e ao regime de licenciamento que lhe faz par, cada vez mais abusivo, poderão, sim, sucumbir. Mas pela própria inércia e escassez de demanda por suas licenças, não pela ação de Estados cujos governos defendem sua soberania da selvageria insuflada no capitalismo pelo fundamentalismo neoliberal. A menos que tais empresas os enfrentem por isso, na tentativa de desestabilizar ou criminalizar regimes negociais alternativos.

Escalada de desobediências

Na prática, os direitos autorais que um autor de código aberto deseja defender tem sido, ao contrário do que prega o FUD, muito bem defendidos até aqui. O mais popular modelo de licença, por exemplo, amparado em dispositivos do tratado internacional de direito autoral de Berna e adotado pelos autores de mais de 3/4 dos mais de 70 mil projetos de desenvolvimento colaborativo de software livre – a licença GPL –, ainda não encontrou, ao longo dos mais de 15 anos em que vem sendo usado, nenhum interessado em bancar um desafio à sua consistência jurídica, em sua jurisdição de origem, nos EUA. E onde já foi desafiado, recentemente na Alemanha, passou incólume no teste. O que contrasta enormemente com o nível de litígio considerado ‘normal’ para o regime proprietário. Uma lista de links para ações judiciais nas quais a maior empresa a operar no regime proprietário já se envolveu, por exemplo, ocupa mais de sete páginas.

Outro bom teste tem sido o mais espetacular assalto já praticado contra o FOSS. Trata-se de um ataque jurídico bilionário da empresa SCO contra meio mundo, inclusive grandes clientes dela mesma, camuflando tentativas de extorsão de usuários e de rapto jurídico do maior patrimônio de usufruto coletivo do software livre, o direito autoral sobre o Linux. Essas tentativas, baseadas em esdrúxulas e fantasiosas teorias hermenêuticas dos direitos contratual e autoral norte-americanos, vêm se mostrando, esta sim, uma aventura demagógica. E, ao final, suicida. Diante do ataque, dezenas de milhares de usuários e desenvolvedores de sistemas operacionais e outros softwares livres se mobilizaram para defender seus interesses e desarmar a farsa. A barragem de FUD e falsas representações em juízo, nessa saga que se arrasta há mais de dois anos com dinheiro de origem obscura, vem sendo meticulosa e sistematicamente desarticulada com farta documentação, pesquisa e análise, histórica, técnica e jurídica, num esforço colaborativo ímpar, similar aos de produção no modelo FOSS.

Na prática, do outro lado também ocorre o contrário do que prega o FUD. Impossível de se proteger tem sido mesmo o modelo de negócio que o artigo aponta como único viável. Na medida em que, reagindo mal ao estreitamento de sua eficácia, o regime proprietário radicaliza suas regras, induzindo, com isso, uma escalada de desobediências, violações, e de custos sociais e jurídicos para a contenção. Custos que seus acólitos e vassalos pretendem imputar, pasmem, ao Estado, vítima dentre as mais prejudicadas por esse radicalismo, ante a perda do controle de sua exposição à espionagem eletrônica, através das tecnologias de Digital Rights Management (DRM) de fornecedores proprietários. Externalidades de um modelo que trata o consumidor como bandido em potencial, mas que se assim o trata é pela única forma de defender seu quinhão de direito autoral? Aqui, caro leitor, não pode caber dúvida: o discurso goëbelliano que pressupõe ou insinua que esse quinhão, o quinhão máximo, seja obrigatório a qualquer um que escreva software, é perigoso e totalitarista.

Monopolismo e espoliação

Um autor que abre o código do seu software é alguém que julga por si mesmo quais direitos autorais lhe convém reter. É alguém que, vendo-se também como usuário e respeitando os de outros, exerce sua liberdade de escolha no exercício desses direitos. É alguém que se nega a abdicar desta liberdade delegando tal julgamento a terceiros, a uma elite que quer impor ao mundo seus interesses a qualquer preço, embriagada em esotéricos dogmas econômicos, nunca comprovados. É alguém motivado por princípios que nenhum FUD ofusca.

Se hoje há mais de um milhão de programadores ativos e assim dispostos, qualquer tentativa de se banir essa liberdade e criminalizar tais escolhas terá conseqüências imprevisíveis. Culpar ideologia A ou fanatismo B pela marcha do tempo, da evolução tecnológica e dos desdobramentos das conquistas humanistas das revoluções Francesa e Americana, só servirá para espalhar FUD. Demonizar esta marcha porque a comissão de frente tem ideólogos e fanáticos, como se a defesa dos interesses do modelo proprietário não os tivesse, é FUD.

Para ilustrar, examinemos a segunda pergunta retórica do artigo em tela: ‘O software livre não te[m] um modelo de negócios que se prove sustentável… De que maneira, então, o governo espera estimular os negócios de software sem um modelo de comercialização viável?’ Para quem só pensa em vender licença de uso, para quem não quer entender, qualquer prova será insuficiente. Para quem quer entender, a resposta é, esta sim, simples: Não é o governo, é o próprio mercado que estimula. O modelo comercial é o SOA (Service-Oriented Arquitectures). O mercado oferece, e o governo prefere. Simples. Seria uma aventura muito arrogante, em tempos magros e incertos, ignorar esse rumo do mercado só porque nele o lucro sobre um trabalho se ganha uma vez só. É fato insofismável que existe cada vez mais código livre disponível para reuso, suficiente para solapar cada vez mais a estratégia de escassez induzida que sustenta o mercado de software-sabonete. Se houver algum concorrente disposto a tirar vantagem desse fato, quem o desdenha pode se ver em desvantagem. Principalmente na medida em que o concorrente consiga angariar colaboradores.

A julgar pelo discurso do articulista, não haveria nenhum concorrente interessado, já que nenhum modelo de negócios para o FOSS se lhe provou sustentável. Mas ora, nenhum se provou para ele. Quanto aos outros, ou ele não se deu ao trabalho de verificar, ou omite. Ignora que a adesão parcial ou total de empresas a regimes de desenvolvimento e licenciamento do modelo FOSS não pára de crescer, em todo o mundo, e que a taxa de sucesso dessas adesões se iguala à de outros modelos. Os modelos de negócio associados vêm se sustentando o bastante para que as adesões mantenham o ritmo. O que se torna inviável com o FOSS não é, como prega o FUD, o negócio de produzir ou comerciar com software, mas a aspiração monopolista. É a espoliação via vendor lock-in. É a promessa da pirâmide que se esvai, em favor do monopólio da liberdade semiológica via SOA. Também outros setores de TI, além do que produz e comercia com software, vêm encontrado sucesso com o SOA. Como o setor de telefonia, que, diante da massiva hiperconectividade propiciada pelos padrões abertos que constituem a internet, expondo seus negócios ao risco de diluição em convergências tecnológicas, tem enfrentado a reengenharia para sobreviver.

Com agenda oculta

Na reengenharia do setor de telefonia, soluções SOA racionalizam a tarifação por suporte ao serviço, e não mais por volume de uso, em busca de maior eficiência. Ali, onde essa reengenharia tarifária é tida como útil ou necessária, ninguém ideologiza, sem se passar por tolo, tal racionalidade como aventura demagógica. Minha dúvida aqui é sobre o motivo do articulista omitir critérios de sustentabilidade objetivos, enquanto está a pregar sobre objetividade ao governo. Soa a farisaísmo. O mercado de software continua desregulado, mas não há mais nele muito espaço para bobos. Se o articulista é conselheiro de uma associação de empresas de software, fica difícil acreditar no seu desconhecimento do sucesso, medido pelo mercado, de empresas que abraçaram o modelo FOSS. E ainda, quando ele critica o ‘brutal crescimento da presença do estado como produtor, fornecedor e concorrente no setor de software’, fica difícil acreditar que ele não saiba, diante da sabida penúria por que passa o nosso estado, que o que ele está aí a descrever é o efeito sinérgico do FOSS, racionalizando a produção interna para atender a demandas de TI que se lhe imputam, exemplo da eficiência objetiva que todos cobram do estado.

Para que não pairem mais dúvidas sobre a sustentatibilidade do FOSS e viabilidade do SOA, mencionemos a segunda maior empresa de software do mundo, a primeira em número de empregados, em faturamento e em portfólio de patentes. Há vários anos ela vem investindo bilhões de dólares em desenvolvimento colaborativo de software livre e de código aberto, em vários projetos coletivos, inclusive no Brasil. Contrapartida? Sua receita com serviços de suporte a plataformas de software livre ultrapassa, hoje, o dobro de sua receita com licenciamento auferida do maior portfolio de patentes de TI do planeta. No balanço do último trimestre de 2004, essa empresa estimava uma reserva de pedidos de serviços por executar, primariamente em plataformas de software livre, de cerca de 111 bilhões de dólares. A mais grave omissão do articulista, entretanto, não é de números e fatos como estes, ou de outros do gênero.

Mais grave é ignorar completamente empresas brasileiras que operam com sucesso e só no modelo FOSS, como a Cyclades e a Conectiva. Esta, com operações continentais recentemente globalizadas, por associação à francesa Mandrake. É ignorá-las num artigo onde assina como conselheiro da associação de empresas brasileiras do setor e como autor. Donde surgem outras dúvidas: que interesses sua associação representa? Pelo teor do artigo, parece que só os dos monopólios proprietários. Quem é que está a retroceder no tempo? Seu catastrofismo profético sobre os efeitos nefastos da política governamental – de incentivo ao FOSS – nas exportações soa piegas: quais empresas brasileiras do setor vivem hoje da venda de licenças de uso dos seus softwares? Ele não diz, e eu as desconheço. Como elas, caso existam, galgariam o lado global da pirâmide do modelo proprietário, enquanto o lado local também já está dominado pelo monopolismo transnacional? Bastaria que o governo aceitasse passivamente a dominação, alargando o seu ralo de despesas com royalties para a medida do apetite monopolista? Duvido. Como política pública, esta sim, seria uma aventura demagógica. E, com agenda oculta.

Arma de pressão

Se não, vejamos. A radicalização do regime de licenciamento proprietário tem se mostrado insuficiente para neutralizar o encolhimento de sua eficiência. Daí, o marketing proprietário pressiona: o valor das licenças não pagas, por conta da pirataria digital, constitui perda da indústria (do software proprietário), debitável à ineficiência do Estado. Mas quem garante que o infrator não optaria por software livre, se fosse obrigado a pagar pela licença? Quem garante que tal postura sobre pirataria não seja hipócrita, já que a mesma agrega valor de uso ao produto via efeito rede, e fidelização de futuros clientes a custo zero? Dúvidas. Em paralelo, interesses se concentram no lobby legislativo, para a aprovação de leis mais severas e desequilibradas de direito autoral e de patentes. Mais dúvidas, sobre o custo/benefício. Ato seguinte, ideologiza-se o FUD: software livre é coisa de comunista! Quem prova, e como? Agora, a pressão é imperial. Pressão para que os países interessados em ter o direito ao ‘livre comércio’ globalizado, se submetam, através de tratados internacionais, ao neocolonialismo patentário. Principalmente os que estejam reféns da agiotagem global. O cerco se fecha, de volta às licenças de uso. Em novembro passado, o maior agente interessado na defesa do modelo proprietário anunciou sua nova estratégia.

No Asian Government Leaders Forum de 2004, em Cingapura, o presidente da maior empresa de software do mundo esclareceu como esse fecho se dará. Ao se incluir, nas licenças de uso dos seus softwares, algo como um seguro compulsório contra responsabilização solidária do licenciado em eventuais litígios, nos quais o licenciado possa se ver envolvido por conta do acirramento da guerra de patentes promovida por esta nova forma de colonialismo. Isso resguardaria a liberação do arsenal de patentes sobre idéias, do portfolio da empresa, para uso, supostamente com a participação da Organização Mundial do Comércio (OMC), como arma de pressão e ameaça contra países que, em sua política de informática, elejam o FOSS como regime preferencial de desenvolvimento ou licenciamento. Por sinal, uma entidade testa-de-ferro dos interesses desta empresa – a CompTia – recém-ingressou, por este motivo, com queixa-crime contra o Brasil na OMC.

Balão-de-ensaio

A dúvida que agora me assalta é: por que o tal seguro compulsório só entrou no marketing, e talvez no preço, das licenças? Até onde se saiba, o tal seguro ainda não apareceu nas licenças propriamente ditas. Ao menos nas do sistema operacional que é o carro-chefe da empresa, nesta data, enquanto a cláusula que autoriza o licenciador a espionar a plataforma do licenciado se pereniza. No caso do tal sistema, no parágrafo 2 do artigo 7. Mas esta é uma dúvida apenas retórica, já que o repertório de práticas eticamente questionáveis, e sentenças condenatórias por práticas monopolistas abusivas, sob os links daquelas sete páginas não nos autoriza aqui a surpresa. Nem mesmo se a licença linkada neste parágrafo desmentir o que nele é dito, já que tal empresa não costuma datar nem nomear autores de seus documentos on-line.

Embora o leitura do artigo comentado possa nos assaltar com mais dúvidas, como por exemplo, pela reprise da falácia sobre reserva de mercado, creio ser prudente parar por aqui, pois a tranqüilidade do leitor pode já ter sido suficientemente abusada.

Encerro, então, com duas certezas. Tentar impor, no grito, um regime de licenças decadente e escravagista aos governos, camuflado-o com critérios economicistas fajutos a título de respeito a regras concorrenciais, enquanto se tenta ostracizar a racionalidade que o próprio mercado aponta, não é apenas FUD. É ideologização totalitarista e perigosa. Acima dessas regras existem as Constituições, e a nossa obriga o governo a defender sua soberania. Que soberania nos restará quando os atos de governo forem executados através de documentos cujos formatos e meios legítimos de acesso – do tipo sabonete caixa-preta – sejam propriedade estrangeira, sob jurisdição estrangeira? Muito pouco, tenham certeza.

Como vemos, o caso SCO pode ser apenas um balão-de-ensaio, uma missão de busca e reconhecimento. A guerra é global e promete ser boa. O moral de quem se vê atacado em artigos como o que aqui comentamos só aumenta com o tipo de FUD dali disparado. A arrogância que exsuda, cega pela avareza, do desdém ao poder que a hiperconectividade devolve às consciências numa sociedade informatizada, onde a liberdade de acessar e expressar o conhecimento se torna vital, cobrará o seu preço. Negociável ou não, ele parece inevitável.

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Professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília