Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Herança digital” já chegou ao Brasil

Em São Paulo, um tabelião foi consultado recentemente para saber se aceitaria fazer um inventário cerrado [fechado] com senhas de alguns serviços na internet – como de e-mails, de contas bancárias e de acesso a redes sociais. O tabelião aceitou – explicou que a legislação brasileira não traz qualquer impedimento nesse sentido. “Já começam a chegar casos assim nos cartórios”, afirma o advogado Alexandre Atheniense, especialista em direito eletrônico. Ele é um dos advogados que já receberam consultas de pessoas interessadas em incluir em testamentos ou em processos de inventário os chamados “ativos digitais”.

Além de senhas, tudo o que é possível comprar pela internet ou guardar em um espaço virtual – como músicas e fotos, por exemplo – passa a fazer parte do patrimônio das pessoas e, consequentemente, da chamada “herança digital”. Os ativos digitais são bens guardados por meio da internet em um espaço virtual chamado de nuvem. A SecureSafe, por exemplo, é uma empresa de um banco suíço em que a pessoa compra um espaço na nuvem para armazenar informações sigilosas como senhas de suas contas bancárias.

Segundo o advogado Renato Opice Blum, também especialista no assunto, o que há, por enquanto, ainda são consultas isoladas. Em um dos casos, segundo ele, o cliente está preocupado com sua produção intelectual em redes sociais – no futuro, esse conteúdo poderá servir para a realização de outros projetos, como a edição de livros. “O sujeito tem blogs e guarda tudo o que produz na nuvem”, explica o advogado.

Documento é considerado original

No Brasil, além de ainda não haver normas específicas sobre o assunto, tampouco há decisões judiciais a respeito. Já nos Estados Unidos, a família de um militar morto pleiteou na Justiça o acesso ao conteúdo de seu e-mail – e o juiz transmitiu o direito à família. Foi um dos primeiros casos em que se discutiu a herança digital.

Não é apenas o direito de família que vem se adaptando às novas tecnologias, mas também o direito contratual – o que vem reduzindo os custos de empresas. Os contratos de franshising, por exemplo, não exigem mais o deslocamento do representante da marca ou do franqueado pelo país. A advogada Patrícia Peck diz que, nesse segmento econômico, a contratação eletrônica tornou-se praxe. “E, na virada de ano, os contratos são eletronicamente atualizados”, afirma. “Basta a certificação digital das assinaturas para a validade jurídica do contrato em um eventual processo judicial.”

Recentemente, o desembargador Gilberto dos Santos, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), afastou a exigência de apresentação do original de um contrato de empréstimo firmado de forma eletrônica no processo. “A inicial instruída com documento digitalizado, registrado em cartório de títulos e documentos, é considerado original”, declarou o magistrado na decisão.

Publicações no Facebook

Essa nova realidade também já beneficia pessoas físicas. Isso porque as benesses dos contratos eletrônicos foram adaptadas às assembleias de condomínio. Administradoras de condomínio como o Panamby, por exemplo, não fazem mais assembleias presenciais. Patrícia Peck afirma que o condomínio passou a oferecer redes sociais para que as assembleias sejam virtuais, com votação online. Depois, a ata eletrônica da assembleia é registrada por cartório virtual. “A medida acaba aumentando a participação dos condôminos nessas discussões, reduzindo riscos de conflitos judiciais”, diz a advogada.

Apesar de temas como a herança digital serem novos demais para já terem chegado ao Poder Judiciário, um balanço realizado pelo escritório Patrícia Peck Pinheiro Advogados sobre como os magistrados brasileiros julgaram questões relacionadas à web realizado neste ano apontou o aumento de casos judiciais envolvendo o direito digital. “Isso acontece porque a maioria dos casos acaba envolvendo alguma produção de prova eletrônica”, diz Patrícia.

Essas provas passaram a ser bem compreendidas na esfera judicial, de acordo com o balanço feito pelo escritório. Em uma recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), o desembargador relator José Tarciso Beraldo considerou como provas as publicações feitas na rede social Facebook. “O próprio agravante afirmou, em rede social (Facebook), que tomou posse de uma casinha no sítio a contra gosto de familiares”, declarou, ao determinar a reintegração de posse de um imóvel.

Controle sobre mensagens

O levantamento conclui também que prevalece a interpretação de que o provedor é responsável, a partir da ciência da calúnia ou difamação, quando for demonstrada negligência da empresa. Uma decisão de outubro do TJ-SP condenou o Google a pagar indenização por danos morais por ter inserido, no Google Maps, imagem da residência do autor vinculada a seus dados pessoais. O desembargador Roberto Solimene considerou que o fato causou “ofensa aos direitos à privacidade e segurança”.

Cresceu também a interpretação dos juízes de que o empregador é responsável pela má conduta do empregado no uso de ferramentas tecnológicas de trabalho, bem como pelo monitoramento do uso desses instrumentos. “Com isso, é essencial que a empresa tenha regras claras sobre o uso desses recursos para que tenha êxito em uma demissão por justa causa”, afirma Patrícia Peck. Ainda é polêmica, no entanto, a legalidade do monitoramento do e-mail pessoal do empregado. “No caso de e-mail particular ou pessoal do empregado – em provedor próprio dele, ainda que acessado louvando-se do terminal de computador do empregador –, ninguém pode exercer controle algum de conteúdo das mensagens”, decidiu recentemente a desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, Maria Isabel Cueva Moraes. Há, no entanto, decisões que permitem esse controle.

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[Laura Ignacio, do Valor Econômico]