Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A solidão dos espíritos

E as redes sociais tomaram conta de tudo. Não se deixa de ouvir a resposta da filha de 12 anos, ao ser chamada para ir dormir: “Mãe, peraí que estou fechando meu Face”; ou, então, algo mais específico como “já vou pai, deixa só eu postar essa foto minha com a Bia e aí vou correndo…”

Oras, se é assim para quem não aprendeu ainda nem duas ou três coisas da vida, imagine para um jovem de seus 18 aos 27 anos de idade – ou, para uma versão 1959, com seus 52 anos. Antes de fazer as pazes com o travesseiro há um mundo de coisas virtuais que precisam também dormir: as notificações de pessoas dizendo que são seus amigos no Facebook, os comentários mencionando você no Twitter, aquelas fotos ainda presas à vida de rascunho e que precisam seguir avante. O resultado é uma atividade incessante, como se a vida não passasse de mera dízima periódica, onde tudo se automatiza, tudo se fragmenta, até que você exale o sempre adiado mas certamente último suspiro do dia.

Minha filha do meio, de 22 anos, não faz muito tempo deu para saber o que seu velho tanto fazia no Facebook. Sua conclusão foi certeira e um tanto surpreendente: “Mas, pai, você não conhece nem metade desses seus amigos aqui, não é?” Ela se referia aos 4.854 amigos que tenho na rede do Sr. Mark Zuckerberg. Respondi, já na defensiva: “É, não conheço nem uns 350 de meus facefriends… Mas o que vou fazer? Todo dia recebo pedidos para confirmar amizade, vou fazer o quê?” Minha filha foi taxativa: “Pois não devia aceitar. Eu mesma nunca confirmo uma pessoa sem ter certeza de que ao menos a conheço e se posso chamar de amiga”.

Há momentos em que não é gratificante manter um diálogo que, com as posições tão claramente definidas, somente nos levará a uma inevitável rota de colisão. Para finalizar, argumentei: “Pois eu aceito. Não conhecer uma pessoa não quer dizer que a pessoa não me conheça. Pode ser alguém que leu um artigo meu no Observatório da Imprensa ou viu uma entrevista no Sem Censura, ou então me viu falando sobre jornalismo e direitos humanos em alguma faculdade dessas. Seria descortesia recusar a amizade”.

Enxugando gelo

E ficou por aí a conversa, com argumentos mortos e feridos se remexendo em nossas telas mentais. Tenho certeza que não a convenci. E o contrário também me parece ser verdade.

O fato é que descobri que tenho muitos amigos e isso é bom quando se tem mais de meio século de vida, pois quanto mais o tempo passa mais difícil é fazer novas amizades. Muitas até começam, mas não engrenam e, quando menos espero, estão amontoadas umas às outras como “anônimos que pensei conhecer”. É triste, mas é verdade. Melhor dizendo, é verdade… mas, é triste.

Como tudo o que é vivo, o mundo virtual é um delicado jogo de escolhas. A começar por aceitar ou rejeitar alguém no círculo de amizades. Depois, há que se escolher no que vale a pena debruçar o olhar: notícias interessantes em vez de notícias patéticas, coisas com algum teor de verdade em vez de coisas fake, imagens agradáveis de ver em lugar de outras de um mau gosto atroz. E todos aqueles que nos indicam a cada dia dois ou três novos jogos: pôquer, cityville, farmville, mycalendar, luckyphrases. Sim, quase todos têm nomes ingleses. E cumprem à risca sua missão no mundo virtual: desperdiçar tempo real dos humanos que transitam livres, leves e soltos pela matrix virtual.

O exercício de escolha é acionado de uma a 58 vezes ao dia: o uso da opção “Curtir”. Às vezes a nota trata de uma tragédia com muitos mortos, um incêndio em escola belga com crianças… e, então, encontramos coisas singelas como “uma coisa dessa não tem nem como curtir” ou, mais explícito, “estou curtindo a rapidez com que você postou a imagem e não a tragédia em si, viu?”

Mas é no mundo virtual que a palavra cidadania adquire toda extensão de seu sentido e significado. É que no silêncio existente entre o teclado e o monitor a pessoa revela suas preferências de forma aberta ou mesmo brusca, atabalhoada. “Odeio o famigerado BBB, devia ser proibido porque não passa de uma telesacanagem para iludir os trouxas.” E a mágoa contra qualquer nível de autoridade é logo escancarada. “Policiais do Alckmin detonam moradores do Pinheirinho. Polícia fascista!” E agora o Poder Judiciário virou a bola da vez: “Ângela Calmon para presidente do Brasil. Xô à farra dos juízes corruptos!”

No aspecto da cidadania temos reflexões profundas sobre a condição humana, sobre a luta inglória dos índios por seus direitos, por suas terras. E uma carrada de mensagens dessas para emocionar: a criança britânica que luta contra o câncer; a mãe rinoceronte atenta ao bebê rinoceronte; a história do menino negro que foi humilhado no restaurante de São Paulo; o “Errar é o Mano” quando a seleção brasileira de futebol perde algum amistoso.

Pelo que observo, as pessoas estão mais para “Curtir” (o mesmo que apoiar, estar de acordo, simpatizar, achar legal, bacana e tudo de bom) do que para expressar suas ideias, desvelar sua visão de mundo, colocar às claras seus pontos de vistas. Poucos criam conteúdos. Muitos observam e curtem na maior parte do tempo em que acessam a rede social.

Mais recentemente, com a vinda de empresas de comunicação para as redes sociais, temos o Facebook como o verdadeiro jornal do futuro. As notícias dos portais jornalísticos na web já vêm com a opção de curtir e compartilhar com o Facebook, Orkut, LinkedIn, WordPress. Assim ficamos sabendo que fulano achou legal a notícia do comandante Schettino, do malfadado Costa Concórdia, tropeçando em um bote salvavidas e daí saindo apenas quando chega à praia. Outro colocou o clássico polegar para cima ao compartilhar a notícia de que o Brasil é a meca de investimentos dos europeus encalacrados em dívidas, pessimismo e falta de horizontes no médio prazo. Fiquei sabendo muito sobre o alegado estupro ocorrido nas dependências do Projac (centro de produção da TV Globo, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro) durante o Big Brother Brasil por meio de colegas jornalistas e defensores dos direitos humanos que ficaram colocando detalhes no Facebook, minuto a minuto.

É fato que nada passa despercebido nas redes sociais: tem sempre alguém a comentar algo, a divulgar para outros a mesma postagem e a atualizar essa ou aquela notícia. Por exemplo, no caso do BBB, a mais recente e onipresente polêmica da televisão brasileira, não faltaram ativistas pontuais declarando boicote às empresas que patrocinam o programa dos Boni, Boninho e Bial: Fiat, Nyeli Gold, Omo etc. O assunto foi tão comentado que no meio da confusão, quando me dei conta, já havia enviado ao Observatório um texto intitulado “Cabeças vazias, corpos sarados e comportamentos patéticos”. Posso dizer que, pensando com calma, se não estivesse assíduo às redes quando o assunto passou a ser mencionado, dificilmente escreveria uma nova crítica ao programa do Pedro Bial. Reclamei para mim mesmo que estava serrando serragem, engarrafando fumaça, clamando no deserto e enxugando gelo, uma vez que a atração é campeã em faturamento para a emissora-líder.

Coisas perdidas

A saturação das redes sociais ainda está longe do Brasil, onde elas continuam a crescer. Enquanto escrevo, estou consciente que em várias partes do mundo, principalmente na Europa e nos EUA, o assunto em pauta é nada menos que certa percepção de que atravessamos um princípio de saturação social das redes. Pelo menos é assim que trata o New York Times: saturação social. E leio que, de acordo com depoimento de David Carr, repórter e colunista da área cultural do NYT, 2011 foi o primeiro ano em que ele viu sua produtividade cair por causa de seu consumo de mídia. E, para 2012, Carr diz estar diante da escolha entre cortar passeios de bicicleta ou “alguns desses hábitos digitais que estão me comendo vivo”.

A tarefa de Carr e de milhões de outras pessoas é difícil, para dizer o mínimo. Lembra o sujeito dentro do mar sendo rapidamente sugado por um redemoinho: quando olha, parece ser tarde demais. Para alguém passar de 4 a 8 horas diárias conectado à internet significa que essa pessoa abdicou de preciosos nacos de vida real: deixou de ler Clarice Lispector, Affonso Romano de Sant’Anna, Jeffrey Archer ou Adélia Prado. Esqueceu de fazer caminhadas diárias escutando suas músicas preferidas. Não apareceu em lançamento de livros de amigos nem em jantares da família. Viu muitos filmes, mas entre uma entrada e outra no Facebook, perdeu o fio da meada, a trama tão diligentemente traçada pelo roteirista. Deixou de estudar para aquele concurso do Senado com salário inicial de R$ 23.844. Sem contar outras coisas ainda mais valiosas que restaram soterradas nesse mundo de bem poucos amigos mesmo: pesado déficit de atenção aos filhos.

São essas coisas perdidas no mundo real que a qualquer momento irão apresentar a fatura. E não haverá mundo virtual que preencha essa estranha solidão de espírito que se apossará de nós. Como o redemoinho, logo também será tarde demais.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundoseu twitter]