Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Memória de internet

O lançamento recente de um acervo on-line de documentos e imagensdo líder político sul-africano Nelson Mandela é mais um passo de um movimento que tem reforçado o papel da internet como receptáculo moderno da memória da humanidade. Mandela entra para a lista de grandes cientistas e personalidades que passam a ter um vasto material relacionado à sua vida preservado e acessível na rede. No Brasil, iniciativas desse tipo, verdadeiros convites a conhecer o passado e grandes oportunidades de pensar sobre o futuro, ainda são isoladas e esbarram na falta de investimento e numa cultura que pouco valoriza sua história.

O acervo do líder africano foi disponibilizado peloCentro de Memória Nelson Mandelaem parceria com o Instituto Cultural Google. Entre as fotos, diários e documentos digitalizados, estão um mandado de prisão, cartas escritas do cárcere para sua famíliae até seu cartão da igreja. A CH On-line já abordou iniciativas parecidas, quando do lançamento dos acervos digitais dos físicos Albert Einsteine Isaac Newton, por uma universidade de Jerusalém e pela Biblioteca Digital de Cambridge, respectivamente.

A biblioteca britânica, aliás, tem o projeto de digitalizar todo o seu acervo de sete milhões de livros e documentos. Até agora, entre o material online é possível conferir, por exemplo, uma série de textos islâmicos, alguns com mais de mil anos, e um acervo do naturalista britânico Charles Dawrin, que conta com rascunhos da teoria da evolução e notas de sua viagem no Beagle. Quem também está interessada na área é o Google, que pretende usar o projeto de Mandela como modelo para resgatar a vida de outras personalidades do século 20.

História digital do mundo

Há muitos outros exemplos desse recente “ganho de memória” da internet. A vida do próprio sir Isaac é alvo de outras iniciativas, como o Newton Project, da Universidade de Sussex, e um projeto da Biblioteca Nacional de Israelque aborda o lado místico do personagem. Interessado em teologia e alquimia, ele via na análise das escrituras sagradas uma ciência capaz, inclusive, de prever o fim do mundo (em 2060, anotem aí).

Nos Estados Unidos, diversos nomes importantes para a formação do país têm seus acervos disponíveis online, como Abraham Lincoln, Benjamin Frankline Thomas Jefferson– iniciativas mantidas pela Biblioteca do Congressoe pelas universidades de Yale e de Princeton, respectivamente. O ativista político Martin Luther King Jrtambém possui uma coleção digital, com fotos e rascunhos de seusmais importantes discursos.

OInstituto Americano de Físicapreserva acervos com mais de 30 mil documentos de diversos cientistas e uma coleção de história oralcom centenas de entrevistas, além de promoverexposições on-linesobre importantes personagens da história da ciência, como Marie Curiee suas descobertas sobre a radioatividade eWerner Heisenberg, um dos fundadores da mecânica quântica. Na área de economia e política, o Avalon Projectreúne documentos como o Código de Hamurabie até o Tratado de Tordesilhas.

Amnésia brasileira

Apesar da importância que a pesquisa brasileira apresenta hoje, as iniciativas de resgate dessa história ainda são muito isoladas no país. Na opinião do jornalista e historiador da ciência Cássio Leite Vieira, editor de internacional da revista Ciência Hoje, elas esbarram na falta de uma cultura de preservação. “Temos pouca tradição no campo e, em geral, a história recebe pouco destaque na formação dos novos pesquisadores”, afirma.

Especialista em filosofia e história da ciência, Antonio Augusto Videira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), critica o atual modelo produtivista de construção do conhecimento. “É fundamental valorizar nossa história, pois só assim podemos avaliar as consequências de nossas decisões”, defende. “Por isso, são necessárias políticas públicas e ações pulverizadas, com a formação de redes, pois o material a ser preservado é maior que a capacidade das instituições dedicadas a esse trabalho.”

Uma dessas instituições é a Casa de Oswaldo Cruz (COC), da Fiocruz, que preserva – e agora disponibiliza na internet – acervos de pesquisadores da área da saúde, como Carlos Chagase Adolpho Lutz. O historiador Paulo Elian, vice-diretor da entidade, defende a importância de combinar preservação com pesquisa histórica e divulgação científica e destaca a falta de políticas públicas no setor. Na própria Fiocruz, outro acervo interessante é o do sanitarista e político Sérgio Arouca, criado pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em saúde (Icict)

Outra instituição com tradição em preservar a história da ciência, o Museu de Astronomia e Ciências Afins(Mast), guarda documentos de pesquisadores como o médico Olympio da Fonseca e o físico Bernhard Gross, mas pouco desse material está disponível on-line. Situação parecida com a da Fundação Getúlio Vargas(FGV), que reúne documentos de personalidades que vão do médico e político Arthur Neivaa Tancredo Neves, porém disponibiliza pouco desse acervo na internet. A FGV mantém, ainda, projeto de preservação da história oralpor meio de entrevistas com grandes personalidades sobre a sociedade brasileira.

Algumas universidades, como a Estadual de Campinas (Unicamp), também possuem acervo on-line de pesquisadores como o físico César Lattese o historiador Sérgio Buarque de Holanda. Documentos e imagens de cientistas como Nise da Silveira e José Reis estão disponíveis no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Outras iniciativas isoladas preservam pequenos acervos de figuras como José Bonifácio, Santos Dumont, Juscelino Kubitscheke Paulo Freire. Há ainda material sobre episódios importantes da história brasileira nos sites da Biblioteca Nacional, do Acervo Nacionale da Rede da Memória Virtual.

Apesar de toda a limitação apontada pelos especialistas, há exemplos interessantes de ricos acervos já disponibilizados online no Brasil. Por isso, a arquivologista Maria da Conceição Castro, chefe do departamento de documentação da Casa de Oswaldo Cruz, destaca o pioneirismo do país. “Os sistemas de acervo informatizados são recentes e requerem um grande detalhamento e investimento. É claro que existem problemas, mas estamos bastante adiantados em relação aos países sul-americanos e em desenvolvimento.”

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[Marcelo Garcia, do Ciência Hoje On-line]