Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A internet que (quase) ninguém vê

Para alguns críticos, um dos filmes que melhor representa o grande debate da era digital é Minority report – A nova lei. No longa-metragem futurista, dirigido por Steven Spielberg e lançado em 2002, a sociedade abdica de sua privacidade em nome da segurança: qualquer cidadão pode ser rastreado e ter suas ações controladas com o objetivo de evitar crimes. Na internet a que a maioria dos usuários tem acesso, a relação é semelhante. As empresas mais populares, como Google, Facebook, Amazon ou Apple, limitam o tráfego pela rede às suas próprias regras e monitoram os internautas. É uma forma de dar segurança, de evitar que crimes sejam cometidos, mas é, também, uma barreira para a privacidade.

Só que existe, fora da vista dos usuários regulares, uma internet escondida, em que não há controle, e tudo é permitido. Ela se chama deep web (web profunda): uma região da rede que teria até 400 vezes o tamanho da web visível e onde a privacidade está acima da segurança. Ou seja: o que o internauta comum consegue enxergar em seu dia a dia de navegação representaria 0,25% do volume de dados que está disponível na rede.

O termo foi criado pelo cientista da web Michael K. Bergman, em 2001, no artigo “The deep web: surfacing hidden value” (“A rede profunda: trazendo à tona valores escondidos”). Nele, Bergman explica que os dados aos quais temos acesso pelos mecanismos de busca tradicionais compõem a chamada “web da superfície”. A maior parte da rede, na verdade, seria composta por páginas que não podem ser encontradas facilmente, e, por isso, considera-se que estão nas profundezas. Na deep web. “As páginas da web da superfície podem ser rastreadas e indexadas pelos mecanismos de busca tradicionais, como o Google, porque são ligadas umas às outras por links. Já as páginas que estão na deep web residem em bases de dados pesquisáveis, mas somente podem ser descobertas por uma consulta direta. Sem isso, seus resultados não são publicados”, explica Bergman, em entrevista por e-mail.

O anonimato e a liberdade

O acesso a essas profundezas é feito por programas específicos, que escondem a identidade do usuário. A navegação é mais lenta e segue uma lógica distinta. Você não encontra um dado na deep web simplesmente procurando uma página no Google e clicando em seu link. É preciso saber o que procurar e como procurar – há, contudo, algumas experiências criadas para facilitar o acesso aos sites, como a Hidden Wiki (uma espécie de listagem de páginas, num visual como o da Wikipédia, mas “escondido”). Em geral, as páginas são simples, sem muitos recursos, mas com muita informação.

O diferencial da deep web é justamente reunir tudo o que não se encontra na web tradicional. Só que o “tudo” às vezes é um problema. Um uso positivo dessa rede profunda acontece em países com regimes ditatoriais, que tentam controlar a troca de informação na internet, como Irã, Coreia do Norte e China. É comum, por exemplo, que correspondentes estrangeiros se comuniquem pela deep web para não serem descobertos. Trata-se da privacidade que a rede tradicional não fornece. Por outro lado, o anonimato permite a troca de conteúdos ilícitos, como os mais diversos tipos de parafilia, entre elas a pedofilia. Além disso, suas páginas são espaços para testes de vírus.

A web profunda, assim, tanto pelo lado positivo quanto pelo negativo, desenvolveu-se como uma resposta à internet da superfície. “A deep web subverte as regras da internet tradicional, onde, em tese, temos segurança e conveniência, mas abrimos mão de nossa privacidade”, explica Carlos Affonso, vice-coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio. “Na deep web, a segurança fica de lado em favor do anonimato e da liberdade de seus usuários, algo que é o extremo oposto da internet comercial.”

IPs para maquiar origem do acesso

Na esfera negativa, nela encontram-se diversos fóruns para práticas ilícitas. Trocam-se imagens e vídeos de menores nus ou de situações extremamente violentas, como estupros e assassinatos. Há espaços para venda de drogas, exploração do turismo sexual e até compra de armas. Num fórum, havia, esta semana, uma mensagem de um usuário – anônimo, claro – pedindo dicas para a compra de um passaporte brasileiro na Europa.

Ao mesmo tempo, cidadãos comuns, ativistas, organizações não governamentais e até jornalistas usam a deep web para se comunicar de forma livre da censura ou mesmo discutir assuntos controversos preservando a sua privacidade. Por causa dessa característica, é lá que organizações como a WikiLeaks e grupos de ciberativismo como o Anonymous atuam, se articulam e publicam seus documentos. “Pensando em revoluções, como as da Primavera Árabe, a deep web teve um papel fundamental para a articulação política de civis que, de outro modo, não seria possível por causa do controle dos governos”, diz Affonso.

Entre os recursos mais usados para acessar a deep web está o navegador Tor, que permite manter o anonimato durante a navegação. Originalmente criado pelo Laboratório de Pesquisa da Marinha dos EUA, com o objetivo de proteger as comunicações do governo americano, atualmente o software faz parte da ONG Tor Project, uma iniciativa independente que visa a possibilitar a privacidade pela rede. Para garantir a navegação anônima, o Tor depende de sua comunidade de usuários, todos voluntários. Cada usuário de internet tem um protocolo que identifica de onde está sendo feito o acesso: é o IP, uma espécie de identidade do internauta. No Tor, os voluntários oferecem seus IPs para outros usuários poderem maquiar a origem do acesso.

Riscos para usuários

Só que isso pode trazer complicações. Em novembro, a polícia bateu na casa do austríaco William Weber, de 20 anos, acusando-o de repassar imagens de crianças nuas. O jovem desde então vem tentando provar que o que ele fazia era apenas fornecer seu IP para o Tor, a fim de ajudar outros usuários. “É muito ruim que o Tor possa ser usado por criminosos, mas não há nada que eu e o Tor Project possamos fazer quanto a isso”, disse Weber, em entrevista ao jornal americano Wall Street Journal. “Essa dualidade é justamente o que faz a deep web ser o que ela é”, diz Pedro Augusto, pesquisador do CTS da FGV-Rio. “Seus lados positivo e negativo estão atrelados. Não é possível ter um sem o outro. Nesse sentido, a deep web é um retrato muito próximo do que a internet era há 20 anos, em termos de controle e monitoramento.”

O caso de Weber, porém, mostra que o anonimato pode não ser absoluto – da mesma forma que a segurança na web da superfície. Hoje, qualquer país tem uma divisão policial dedicada a crimes virtuais. A web tradicional, por isso, está sempre sendo rastreada, com a aprovação das empresas estabelecidas. Se alguém provar à Google que um vídeo do YouTube fere as normas daquele país, ele é imediatamente tirado do ar. No caso da deep web , nada sai do ar com essa facilidade. Mas são usuais os boatos de que policiais entram na rede atrás de informações sobre ilegalidades. E o próprio grupo de ciberativismo Anonymous já cuidou de expor as identidades reais de usuários que frequentavam fóruns de pedofilia.

Para além de seu lado obscuro, a web profunda também possui um grande interesse comercial para uma série de empresas que buscam, em seu imenso conteúdo, informações que podem ser importantes para seus clientes, sejam eles políticos ou corporações. “Com a nossa tecnologia, conseguimos buscar referências que a própria Google não consegue”, afirma Jamie Martin, investigador da empresa americana Bright Planet, especializada em buscas na deep web. “É importante que as pessoas compreendam que a deep web é muito mais do que seu lado obscuro.”

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[André Miranda e Thiago Jansen, de O Globo]