Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os problemas em tuitar uma revolução

Durante os dias mais turbulentos dos protestos na praça Tahrir, Andy Carvin postou mais de mil tweets por dia. Ele se focou nisso em turnos de 18 horas, agregando e distribuindo informação de ativistas, rebeldes e jornalistas (cidadãos). Dormia apenas por necessidade biológica. Por tudo isso, Carvin, que é também estrategista sênior da NPR [National Public Radio], tem sido chamado “o homem que tuíta revoluções”.

Carvin lançou recentemente um livro registrando esses dois anos em que – em que o que? Em que lutou nas trincheiras digitais? Em que produziu um Diagrama de Venn do ativismo de laptop e da agregação jornalística? A resposta não está clara porque Carvin é o exemplo mais proeminente de algo que pode mesmo nem ter um nome ainda.

Com frequência, ele se define como um jornalista, dizendo que “usou as redes sociais para realizar reportagens remotas em mais de meia dúzia de países”. Mas quanta reportagem de fato fez está aberto à discussão. Em Distant Witness [Testemunha Distante, em tradução livre, ainda sem publicação no Brasil], ele não tira o telefone do gancho uma só vez e se surpreende quando um contato inicia uma chamada via Skype. Escrito por alguém experiente em um assunto nebuloso, Distant Witness podia ser o tipo de livro que esclarece as fronteiras e a missão deste gênero de jornalismo online. Do jeito que é, a obra é aleijada por sua própria falta de autoconsciência ou de senso crítico. O que nos temos aqui é menos uma contribuição precisa e mais uma celebração cega.

Reações irracionais

Talvez o primeiro sinal da visão reduzida do autor é a sua incapacidade em perceber seu lugar privilegiado na pré-existente infraestrutura jornalística. O escritor continuamente cita o trabalho original de jornalistas profissionais, mas mesmo assim seu livro tece louvores aos “jornalistas cidadãos” – amadores sem treinamento que reúnem e transmitem informação por si próprios. Carvin vê bastante potencial nessas pessoas, chegando a afirmar que incluir o complemento “cidadãos” é rebaixá-los (o jornalismo talvez seja a única profissão em que alguns praticantes defendem que qualquer um conseguiria executar suas tarefas; e essas alegações com frequência vêm de pessoas confortavelmente instaladas na academia ou em empresas da grande mídia).

Mesmo Carvin inegavelmente se apoia em recursos jornalísticos mais tradicionais, como uma bloquinho de telefones (ou a agenda de contatos de um smartphone). Quando sua produção prolífica faz com que sua conta no Twitter fosse bloqueada, ele envia um e-mail a um executivo e é rapidamente colocado em uma “lista branca”, com limitações removidas. Quando um grupo sírio tem seu canal de vídeos no YouTube deletado (fora considerado spammer, por engano), ele contata amigos que trabalham para o Google que reestabelecem o perfil dentro de um hora. Enquanto isso, Carvin se veste com um manto populista, como se a única diferença entre ele e um jornalista-cidadão fosse um endereço de e-mail da NPR.

Por um lado, é difícil culpá-lo por sua falta de autoanálise; ele está sempre sob uma avalanche de vídeos com imagens fortes, fotos e tweets apavorados enviados por ativistas em perigo. Tudo o que ele pode fazer é não ser esmagado. As suas reações ao conteúdo que recebe são por vezes irracionais – um fato que ele reconhece, mas não se preocupa em examinar ou corrigir. Quando acompanhava os acontecimentos em Bahrein, ele se sentiu perturbado pelos ataques das forças de segurança aos manifestantes: “Comecei a me sentir culpado por isso. Mas não podia evitar o sentimento de que eu de alguma maneira vivi o ataque com eles.” Este livro poderia ser o lugar para investigar esse sentimento, mas a narrativa não vai além daquele ponto.

A visão de quem conta

Em vez disso, o testemunho de Carvin o leva a uma identificação com os personagens da sua cobertura, assim como a um desejo de participação que parece violar as práticas jornalísticas. Durante o levante líbio, ele está dormindo quando Mohammed Nabbous, um ativista conhecido pela transmissão ao vivo de protestos, é morto em Benghazi. “Irracional como isso possa parecer”, escreve, “senti que não estava lá quando ele mais precisava de mim… Eu poderia ter sido capaz de salvá-lo?” Alguns seguidores no Twitter lhe dizem que não, e ele admite que “não havia nada que eu pudesse fazer. Só poderia ter estado lá para ser uma testemunha. Descanse em paz, Mo”.

Em meio à sua dor, Carvin descobre que a França enviou aviões de guerra para proteger os habitantes de Benghazi. O jornalista fica fascinado: “Incrível – os aviões da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] que Mo tinha pedido em seus últimos dias estavam como que levantando voo quando ele foi morto. Ele não viveu o bastante para saber que teve êxito em ajudar a salvar Benghazi.” Sua reação é equívoca e presunçosa. Nós não temos evidências de que as demandas de Nabbous por uma intervenção da Otan foram estímulos da ação realizada pela aliança. Não sabemos – porque Carvin não se preocupa em investigar – o quão influentes eram as transmissões de Nabbous. Apesar do fascínio do autor, nós não sabemos se os aviões da Otan estavam partindo no momento em que o ativista é morto. Mas isso é típico do método de Carvin: encontre alguma correlação tênue entre a difusão das mídias sociais e os eventos in loco e a apresente como notável.

Essa arquitetura de conexões fracas está em funcionamento quando ele trata de seu contato americano Steen Kirby, também conhecido como @NolesFan2011, que compilou “manuais de vários tópicos médicos e militares, os traduziu para o árabe e os enviou para a Líbia”. Esse “help desk virtual para as milícias” parece confirmar o potencial revolucionário das mídias sociais. (Uma camada a mais de verniz é aplicada pela revelação de que Kirby tem apenas 15 anos.) Um ativista líbio afirma que os manuais foram “uma grande ferramenta”. No entanto, esses dados não são aprofundados. Carvin não se preocupa em procurar por algum rebelde que tenha usado os manuais, ou especialistas que poderiam avaliar a sua qualidade. Mantendo-se dentro de um contorno sensacionalista, a lenda reafirma a visão tecnoutópica de quem a conta.

Gás lacrimogênio

A atitude excessivamente otimista do jornalista em relação ao conjunto do seu testemunho é similarmente problemática. Como o título do livro indica, ele se considera “meramente uma testemunha distantes desses eventos, mas ainda assim uma testemunha”. Porém, ele gasta muito pouco tempo considerando o que isso realmente significa – se, digamos, esse testemunhar longínquo é menos genuíno, ou menos útil, do que a observação in loco dos acontecimentos. Considere o caso de Tarek Shalaby, um ativista egípcio que foi abordado por um oficial de seu país enquanto transmitia ao vivo pelo seu smartphone; o aparelho continuou transmitindo – embora apenas sons obscuros – depois de ter sido arrancado pelo oficial. Carvin exulta o fato de que “milhares de pessoas ao redor do mundo tiveram a chance de testemunhar a prisão de Tarek”. Talvez, mas a informação transmitida era quase incompreensível. Se Carvin e seus amigos observadores digitais realmente testemunharam alguma coisa permanece incerto.

O maior problema com o otimismo destemperado – para um jornalista – é que ele pode se tornar credulidade. Depois de assistir o vídeo de uma “criança ferida sendo preparada para cirurgia”, Carvin admira o modo como alguns homens delicadamente se aproximam do garoto e lavam seus ferimentos. Ele tuíta o vídeo. Vinte minutos depois, recebe uma mensagem que o avisa de que o menino estava morto; os homens estavam lavando o corpo antes do funeral, de acordo com uma tradição islâmica. “Eu me senti como se tivesse sido chutado no estômago”, ele escreve, “Pensei que ia vomitar.” E se pergunta: “Como pude ter sido tão estúpido?” – os itálicos são dele – e se desculpa aos seus seguidores.

A resposta pode estar no grau em que Carvin desconhece suas fontes: sobre alguns contatos líbios no Twitter, ele descreve: “Havia algo no tom dos seus tweets, sem citar a quantidade de detalhes que ofereciam, que soava autêntico.” Ao lado disso, ele nunca questiona se as suas fontes – em maior parte urbanas, falantes de inglês, proprietárias de smartphones, partes das classes média e alta – lhe oferecem uma visão limitada dos eventos. O que ele está deixando passar que um jornalista em contato com pessoas que só falam árabe ou que vivem em áreas rurais empobrecidas, poderia apurar?

Poderíamos perdoar os tropeços de Carvin como sendo erros induzidos pelo ritmo acelerado dos fatos, mas o que é mais notável é tanto o quão numerosos são tais incidentes quanto quão pouca autorreflexão produzem. Melhor tuitar a informação, quem sabe com uma advertência, e deixar que a mente coletiva faça a seleção. (Enquanto isso, você irá acumular crédito por cada microfuro.)

Assim como há sabedoria nas multidões, há também distorção, pânico e falsidade. Um jornalista digital que seja adepto da crença nessa sabedoria pode não ser capaz de realizar julgamentos rápidos sobre o que é o que; e pode da mesma forma desconhecer as limitações do meio com o qual está trabalhando. O jornalismo de mídias sociais – ou o que se queira chamá-lo – precisa de filósofos e estudiosos de ética. Em Distant Witness, a profissão ganha um evangelista ingênuo.

Ao fim do livro, Carvin finalmente deixa Washington e viaja ao Egito. Na Cairo pós-revolução, uma reunião com algumas de suas fontes é interrompida por um confronto entre manifestantes e a polícia nas proximidades da praça Tahrir. Eles se encaminham até lá, para investigar. (Finalmente, o leitor pensa, uma ocasião para reportagem de primeira mão.) Carvin aborda Bouthaina Kamel, um ex-candidato à presidência. Eles trocam alegres cumprimentos e depois Kamel, resplandecente em sua bravura, caminha através de uma nuvem de gás lacrimogêneo até a praça. Cercado por manifestantes, policiais e gás ácrido, Carvin é menos sanguíneo. Deixa o local e logo relaxa: “Eu peguei meu telefone outra vez e comecei a ficar em dia com a minha timeline do Twitter. Em um minuto ou dois, senti que tinha agora uma melhor compreensão do que estava ocorrendo do que quando eu estava realmente lá.”

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[Jacob Silverman, do semanário The New Republic]