Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O bê-a-bá dos códigos

No final de 2012, em uma atividade anual que reúne pais, filhos e professores na escola primária St. Saviours, no centro de Londres, o tradicional cantinho de contação de histórias – no qual os alunos ouviam contos de monstros, fadas e bruxas – se voltou para algo completamente diferente: a programação e aprendizado de código computacional. “Queríamos dar às crianças as ferramentas para que elas pudessem contar as próprias histórias”, explica Lindsey Woodford, diretora do colégio.

A ideia saiu da cabeça de Nick Corston, empresário e pai de dois alunos, preocupado porque seus filhos poderiam se tornar meros usuários de tecnologia em vez de pensadores críticos da era digital em que nasceram e viverão. “A intenção é mostrar para as crianças que elas podem se tornar produtoras de conteúdo em vez de desperdiçarem todo o tempo delas com joguinhos ao estilo Angry Birds. Se elas forem direcionadas da maneira correta e mostrarem esforço, podem criar os próprios jogos e, com isso, se tornarem pessoas mais criativas e preparadas para o futuro”, afirma Corston.

Durante o dia livre, as crianças puderam se familiarizar com o Raspberry Pi, um computador do tamanho de um cartão de crédito que custa US$ 25 e que propositalmente deixa suas “entranhas” de circuitos à mostra, permitindo entender melhor como funciona a parte interna de um computador. Pelo preço acessível e alta possibilidade de customização, o computador criado por uma fundação inglesa tem sido usado no mundo todo para dar vida a uma infinidade de projetos – de máquinas de pinball a helicópteros.

Alfabetização

Os pupilos também aprenderam alguns conceitos de programação através do Scratch, um software desenvolvido pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) para tornar o aprendizado de código e robótica compreensível para crianças. Através do programa e do Raspberry Pi, crianças a partir de cinco anos conseguiram controlar um crocodilo-robô produzido pela Lego, o WeDo. Interpretando o código escrito pelos participantes, o crocodilo mordia o dedo de qualquer um que o colocasse em sua boca. “Foi fantástico, a grande maioria adorou e, para nossa surpresa, notamos uma grande parcela de meninas interessadas”, diz Corston.

O sucesso foi tão grande que a escola se conectou a uma organização nacional para a difusão de código, o Code Club, e agora oferece o curso como parte do currículo básico. “No começo eu me assustei um pouco, mas vi que pode ser fácil. Às vezes, é difícil ter de digitar a mesma linha diversas vezes até que o computador aceite, mas é legal dizer o que o robô vai fazer e criar coisas no computador”, diz Saskia Lee, estudante do St. Saviours de nove anos.

Iniciado por designers e programadores voluntários como um projeto-piloto em cinco escolas londrinas, o Code Club ganhou o apoio da ARM (gigante do setor de semicondutores) e expandirá consideravelmente seu alcance em 2013 para, em dois anos, alcancar 5 mil colégios (25% de toda a rede inglesa).

Assim como a ARM, outras empresas importantes do setor estão voltando seus olhos para o ensino de código e robótica para crianças em idade escolar – também um investimento para criar trabalhadores mais capacitados no futuro. A fabricante Dell patrocina o Apps for Good, que ajuda estudantes a criar aplicativos para smartphones para solicionar problemas cotidianos. E a Mozilla, que produz o navegador Firefox, gastou cerca de US$ 10 milhões para desenvolver um pacote de programas que ajuda a remixar a web, o Webmaker, e produz uma série de seminários e hackathons voltados para o público infantil.

De acordo com o presidente da fundação Mozilla, Mark Surman, trata-se de uma atuação estratégica, pois as crianças decidem entre os oito e dez anos de idade se querem se tornar criadores de conteúdo ou apenas consumidores.

Recentemente, o Google também decidiu apostar na tendência. O presidente-executivo Eric Schmidt esteve na Inglaterra para anunciar um esforço conjunto com a Raspberry Pi para incentivar o ensino de tecnologia em colégios e se livrar do velho currículo escolar que apenas as instrui sobre softwares como Microsoft Word ou PowerPoint. Para alavancar a parceria, o Google doou 15 mil Raspberry Pis para a rede escolar britânica e planeja outras iniciativas similares.

A alfabetização digital de crianças ganha força no mundo todo. No mês passado, Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, gravou um vídeo apoiando a associação Code.org – que também tem o respaldo de Bill Gates, fundador da Microsoft, e Jack Dorsey, criador do Twitter. Sites como Codecademy e Udacity, que oferecem cursos gratuitos de programação voltados para leigos, têm ganhado destaque nos últimos anos.

A ideia por trás disso é que, em um mundo governado pela internet, interpretar, alterar e criar códigos é quase tão vital quanto ler e escrever. Porém, o pretexto é essencialmente econômico: na Inglaterra, dados governamentais mostram que a procura por cursos superiores de ciências da computação diminui a cada ano, enquanto a demanda por trabalhadores capacitados na indústria de tecnologia crescerá anualmente 1,6% até 2020, exigindo a entrada no mercado de 130 mil pessoas ao ano.

Uma ideia, um comando e uma mordida

Na escola londrina, 240 crianças já começaram a programar. Mas o pai responsável pela iniciativa, Nick Corston, sabia muito pouco de linhas de código. Ele foi inspirado por uma palestra no TED dada em 2006 por Sir Ken Robinson, que dizia que o atual sistema educacional inglês poderia matar a criatividade das crianças. O programa de ensino de códigos é detalhado: primeiro as crianças aprendem o que é o Raspberry Pi, o computador de US$ 25, e descobrem para que serve cada uma de suas portas.

Depois, elas são introduzidas à linguagem de programação Scratch, para programar comandos básicos. As crianças aprendem primeiro a jogar um game de gatos escrito em Scratch; depois, descobrem como cada comando escrito interfere nas ações do gato. Por fim, começam a alterar o funcionamento do jogo. O crocodilo vem no final: as crianças aprendem que podem escrever comandos que são lidos pelo Raspberry Pi e, ali, são transformados em ações físicas no réptil feito de Lego. Os códigos viram mordidas: o robô abocanha o dedo de quem o coloca em sua boca.

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Programa infantil

O ensino de programação e habilidades técnicas é só uma parte da transformação do ensino infantil. Uma ala mais radical de educadores planeja uma reestruturação ainda maior da educação através da tecnologia, trazendo as inovações para a sala de aula, colocando fim na tradicional divisão de conteúdo por disciplinas e criando uma abordagem mais concreta para o conhecimento adquirido. A ideia é comum a muitos empreendedores do setor: é preferível ajudar as crianças a aprender com a prática, tateando o caminho por elas mesmas, do que despejar conteúdo teórico que a maioria não sabe onde aplicar.

Encabeça esse grupo o professor norte-americano Mitchel Resnick (leia entrevista na pág. 5), criador da linguagem de programação infantil Scratch, dos produtos robóticos da Lego e espécie de ideólogo da turma. Resnick é o criador e atual diretor de um laboratório do MIT dedicado apenas a criar ferramentas intuitivas para o aprendizado de crianças, o Lifelong Kindergarten Group. Ele acredita que é necessário integrar as diversas disciplinas até o ponto em que a separação entre elas praticamente desapareça, em prol de uma abordagem em que as crianças aprendam primordialmente a solucionar problemas.

Algumas empresas que atuam na área já vêm se adaptando a esses conceitos. Trabalhando há 15 anos com o desenvolvimento de robôs voltados para crianças, a Lego foi uma das pioneiras na área e faz parte da maioria dos programas modernos de ensino de tecnologia para crianças, através dos seus produtos WeDo e Mindstorms.

“Em vez de alguém dizer que determinada fórmula matemática é correta, elas podem simplesmente testar, programar um robô e ver se aquilo de fato funciona. Isso ajuda o cérebro a assimilar informações”, acredita Abigail Fern, diretora de educação da marca dinamarquesa. Ela pontua que os maiores desafios para a adoção de novos métodos pedagógicos são as barreiras impostas pelos próprios diretores e professores. “Existe o medo de mudar algo já estabelecido em prol de algo novo e desafiador, mas é preciso superar essa visão. O ensino de tecnologia pode tornar as crianças melhores em matemática, ajudá-las a se organizar melhor e fortalecer o entendimento de lógica. Muitos podem cogitar seguir uma carreira na qual nunca pensaram antes se forem expostos a esse tipo de conteúdo”, acredita.

Outros bom exemplos de startups que se esforçam para incentivar novos métodos de ensino usando a tecnologia são as norte-americanas Makey Makey e littleBits, ambas saídas de pesquisas no MIT. A primeira criou uma placa baseada no hardware livre Arduino que, com o auxílio de pequenos pregadores, transforma qualquer objeto que minimamente conduza eletricidade em um controle de computador, tornando possível tocar piano com bananas ou jogar videogame com massinha.

O littleBits lembra os tijolinhos coloridos de Lego, com as pecinhas eletrônicas que permitem criar uma série de traquitanas. Cada kit vem com uma bateria de nove volts e blocos de quatro cores: o azul fornece a energia, o rosa controla o circuito elétrico, o laranja funciona como um extensor e o verde controla sinais visuais, físicos e sonoros. Apesar de parecer complexo demais para uma crianca, é bem simples manipular e construir uma série de brinquedos – a maioria já está documentada em uma comunidade no site da empresa.

De volta ao pré

“Não devemos menosprezar a inteligência das crianças. Elas têm uma grande intuição e muitas vezes estão mais abertas que adultos a aprender coisas novas”, afirma a canadense Ayah Bdeir, engenheira que projetou o kit inicialmente para designers e mudou o foco no meio do caminho. Assim como os outros empreendedores da área, Bdeir é bastante crítica com os métodos tradicionais de pedagogia. “Escolas oferecem um conteúdo desconectado da realidade de muitas crianças. Muitas delas têm laptops e tablets em casa e na escola aprendem em ferramentas obsoletas. Acredito em uma visão multidisciplinar que privilegia o conhecimento prático, mostrando onde cada teoria se aplica.”

Para o acadêmico Resnick, essa busca se traduz em um conceito simples: fazer a educação infantil em geral mais como o jardim de infância. Ele explica: “Muito do ensino que temos hoje é um professor em pé em uma sala de aula e as crianças escrevendo palavra por palavra. No modelo ideal, que segue o jardim de infância, as crianças estariam engajadas em desenhar, criar, experimentar e explorar, em colaboração umas com as outras, trabalhando em coisas com as quais eles se importam. No final das contas, elas imaginam, criam, experimentam, brincam e aprendem juntas.” (Rafael Cabral)

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‘O maior problema é a mudança de mentalidade’

Entrevista com Mitchel Resnick, pesquisador do MIT

Quais os conceitos do jardim de infância que poderiam ser levados para a educação em geral?

Mitchel Resnick – Quando penso sobre o aprendizado, penso em um processo: primeiro a criança imagina algo, digamos um prédio, e logo ela começa a materializar o que imaginou com os objetos disponíveis. Criando. Com isso, elas aprendem sobre estabilidade, o que faz as coisas ficarem em pé ou caírem. Então elas brincam e colaboram – outra crianca pode vir e fazer uma estrada na frente do prédio original. Talvez o prédio caia e, se isso acontecer, a criança vai pensar no porquê e no que fazer para que ele não desmorone mais, trazendo conceitos de estabilidade. Esse processo cria uma ideia melhor que será construída na próxima vez. As crianças podem se aperfeiçoar brincando. Precisamos construir ferramentas e métodos que levem esse processo em conta.

Como as crianças deveriam aprender no século 21? Qual é o maior desafio para a reinvenção da sala de aula?

M.R. – Não acredito na divisão estrita de conhecimento por disciplinas e muito menos no método em que o professor apenas dita como tudo deve ser feito e o aluno apenas segue. Muitos diriam que uma das maiores dificuldades é educar os professores sobre as novas tecnologias que podem ser usadas em sala de aula, mas eu pessoalmente acho que o maior problema é a mudança de mentalidade no ensino. Hoje o método mais comum de ensino é o professor apenas entregando informação e o aluno apenas recebendo. Mas eu acredito que uma verdadeira mudança aconteceria com o professor funcionando como um guia e com as crianças aprendendo juntas, em colaboração. Vejo isso acontecendo no software que eu idealizei, o Scratch. Naquela plataforma, é muito comum que as crianças ensinem umas às outras a evoluir no uso do programa e que remixem as animações alheias.

Além dos seus próprios projetos, quais outras iniciativas do setor você destacaria?

M.R. – Tenho grande interesse no fortalecimento do chamado movimento “maker”, que traz muito da lógica do faça-você-mesmo para a criação de objetos e tecnologias. Acredito que isso pode ser muito bem adaptado para o ensino infantil, como mostram conceitos como Makey Makey, que realmente abre as portas para a criatividade, e Little Bits, outro um produto muito bem desenhado para esse público. Ao serem expostas a ferramentas deste tipo, as crianças aprendem seguindo a própria paixão e intuição.

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Rafael Cabral, especial para o Estado de S.Paulo, de Londres