Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Governo chileno vai monitorar Facebook e Twitter

Mesmo tendo a porta-voz do governo chileno Edna Von Baer afirmado, em entrevista em vídeo ao El Mercurio, em 24 de junho último, que o governo não vai monitorar nenhuma conta individual nas redes sociais, o impopular governo de Sebastián Piñera agora vive mais um momento de desconforto na mídia chilena e também na latino-americana.

 

El Mercurio informou, na segunda feira (20/6), o novo plano de comunicações do governo, que inclui o monitoramento das opiniões dos usuários nas redes sociais e blogs chilenos. O governo de Piñera (economista, empresário e “um dos homens mais ricos do Chile”, segundo a Agência Brasil), que vem enfrentando nas ruas os protestos dos estudantes e professores universitários pressionando por melhorias nas universidades públicas, resolveu agora espionar os usuários das redes sociais.

O mais antigo jornal do Chile trouxe as explicações de dois altos funcionários do governo em sua reportagem: Pablo Matamoros e Nicole Forttes. Matamoros, assessor tecnológico do governo prussianamente disse que “o governo tem a responsabilidade de escutar o que acontece nas redes sociais”. O assessor também nomeou a firma que fará a trabalho: será a BrandMetric, uma empresa que rotineiramente faz controle de redes sociais para empresas. O projeto prevê a localização geográfica de usuários, o que provocou com justiça o protesto de muitos políticos de oposição. “Tenho a necessidade de informar o presidente porque interessa a ele”, ressaltou de forma marcial o funcionário.

Nicole Forttes, chefe de Comunicação Digital da Secretaria Geral de Governo, atribuiu o esforço como sendo “parte do apostolado do governo”. O que não deixou de soar um pouco cínico… E ela afirmou ao El Mercurio, empolgada: “A ideia é ser um governo próximo, que trabalhe 24 horas e sete dias por semana, e poder escutar a cidadania. E o lugar onde esses três apostolados se encontram é a internet.” A decisão de executivo é justificável, segundo ainda Forttes, “porque hoje a metade dos chilenos tem conta no Facebook, enquanto 300 mil estão no Twitter”, tentou justificar a chefe de Comunicação Digital, como se os números somente fossem suficientes para explicar a bisbilhotice do governo chileno sobre seu povo…

O que o governo faz com a informação?

O El Mercurio online também registrou, em dois parágrafos, a reação de indignação de políticos e grupos de usuários de ambas as redes que protestavam contra o atentado contra a liberdade de expressão. Na terça-feira (21/6), a Prensa Latina apresentou um cenário mais crítico, concentrando-se mais nos protestos feitos por políticos contra a espionagem governamental do presidente Piñera. Jaime Quintana acredita que “o executivo não precisa contratar uma empresa e gastar milhões de pesos para saber o que o povo pensa e localizar geograficamente quem emite as opiniões, o que em minha opinião viola o direito de privacidade das pessoas”.

Mas Prensa Latina não deixaria de fora a argumentação do governo, diante da perplexidade que a medida trouxe para povo e mídia chilena (ou pelo menos a boa parte de cada um deles, já que o Chile ainda é um país extremamente dividido). O governo repetiu a quase todos os periódicos o mesmo argumento cansativo de sobre “a necessidade de trabalhar muitos dias e muitas horas por semana, escutar o povo para desenhar políticas públicas, poder escutar a cidadania”. A mesma conversa da senhora Forttes, já comentada pelo Mercurio, e a visão errada de Edna Von Baer do Facebook e do Twitter como espaços públicos. Não são. Espaços públicos pressupõem propriedade coletiva e usufruto comum a todos. A todos, sem exceção. O que exclui as duas redes.

A Prensa Latina finalizou anotando que “revelada a operação governamental, o Colégio de Periodistas do Chile pediu ao Conselho de Transparência, órgão que vela pela informação pública, que “exija que o governo ponha sobre a mesa o que investiga na internet e o que faz com essa informação”.

“Medida afeta direitos coletivos”

O Twitter, apesar de só ter 300 mil usuários no Chile, tem sido muito mais visado nesse país, principalmente por duas razões: a primeira é que seu projeto original é ingênuo quanto à privacidade. Qualquer um que tecle o endereço do microblog na barra de endereços do seu navegador, agregar a barra transversal e depois escrever seu nome naquela rede, e depois apertar a tecla “enter”, vai encontrar, na maioria das vezes, o seu retrato (ou equivalente), seus seguidores e quem o segue. E sua lista de comentários. As configurações de privacidade não são bem feitas, não ficam claras ao usuário. Resultado: exposição pública (isso mesmo) na web.

Tente você mesmo, leitor. Se você não configurou muito bem sua privacidade, todos os seus “tweets” estarão à disposição do público, e a informação é, portanto, pública. O padrão do Twitter é este: suas informações ficam disponíveis a todos que sabem seu nome na rede, até você configurar quem pode acessar seus dados. Ou não (a grande maioria dos usuários parece querer manter seus “tweets” públicos). A segunda razão da vulnerabilidade do Twitter é sua estrutura de rede insegura e pouco sofisticada. O microblog não tem nem de longe o poder econômico do Facebook, para implantar uma rede com a mesma segurança.

A Folha de S.Paulo online apresentou seus comentários na quarta-feira (22/6). Sob o título “Governo do Chile decide monitorar redes sociais”, o periódico de São Paulo informou o custo do projeto: quase 3 milhões de dólares por ano. O jornal ainda reportou o contexto de protestos contra seu governo que Piñera enfrenta, com confrontações quase diárias entre universitários e professores e as forças de segurança estatais. Além disso, a Folha trouxe a boa argumentação de Lorena Donoso, advogada e pesquisadora da Fucatel, observatório das mídias chilenas:“Não há nada que justifique tal medida, e o governo tampouco deixou claro como vai monitorar os comentários”, disse Donoso.

E disse mais ainda: “Todo governo busca saber o que pensa a população, mas o problema é como utilizar essas informações. O problema aqui no Chile é que a Presidência decidiu monitorar as redes sociais, medida que afeta os direitos coletivos, sem nenhum tipo de consulta prévia à população”, afirmou a pesquisadora, que é ligada à Unesco, e acompanha a situação da liberdade de expressão no país.

Ataques de hackers

Mas o filé mignon da cobertura de mídia foi a reportagem do El Mostrador, periódico online de Santiago. A reportagem foi escrita por Jorge Fábrega, doutor em Políticas Públicas, e Pablo Paredes, mestre em Economia e Políticas Públicas – gente preparada e titulada. Em poucos parágrafos, os dois conseguiram demonstrar como é fácil, hoje em dia, traçarmos a rede virtual de cada usuário do Twitter e estabelecermos a localização geográfica de cada um que usa o microblog.

Utilizando eles mesmos programas de monitoramento, os dois estabeleceram a cronologia da evolução do impacto da notícia na web, desde os primeiros retweets até a notícia virar um tópico de tendência (Trending Topic) nacional. Apresentaram os programas que fazem isso em seu texto e informaram mais: a prática de monitoramento das redes sociais é prática corrente no mercado, disseram os especialistas chilenos. E localizar geograficamente perfis individuais não é difícil, com o arsenal de software que temos hoje em dia. Mas, (isso eles não dizem) criar bancos de dados com essas informações é crime, no Chile…

Os dois acreditam que o monitoramento das redes sociais é “bom para a tomada de decisões”. Eles dizem: “No âmbito das políticas públicas, quando se conhece a estrutura de relações de uma rede é possível antecipar o surgimento de uma epidemia, seja esta a difusão de uma ideia ou de um vírus e, por fim, o monitoramento outorga às organizações a capacidade de reagir a tempo”. Em outras palavras, se alguma ideia revolucionária ou perigosa ao governo estiver sendo elaborada na rede, com o monitoramento o governo terá tempo de reagir.

Observem como os dois se preocuparam em monitorar a disseminação de opiniões na web. E que compararam “epidemia”, e vírus, a “difusão de uma ideia”. Bastante significativo. E reacionário. A perspectiva de monitoramento de ideias não me agrada nem um pouco. Existem outros meios menos sinistros para uma administração tomar conhecimento do impacto de suas medidas na população. Mas os dois autores escolheram encerrar sua matéria dando boas vindas à medida do governo…

Há muitos anos atrás, assisti a uma reportagem feita no Chile pela TV Globo, logo após a saída do odioso tirano do poder. A juventude local havia adquirido um hábito interessante. Seria um novo “modismo” nacional. E o novo “hábito” da juventude de então era coletar informação sobre seus amigos e amigos de amigos. A matéria deixou-me estupefato: como podiam os chilenos se divertir espionando uns aos outros? “Que insano hábito é este, o de colecionar informações sobre os amigos?”, pensei eu, na época. A herança de Pinochet marcou profundamente a memória recente do povo chileno. E eu espero, sinceramente, que eles nunca se esqueçam da barbárie que lhes foi imposta depois da morte de Salvador Allende. Nunca.

Enquanto os noticiários comentavam a absurda ideia do governo chileno, começaram os ataques de hackers a sites de governos de vários países (entre eles o Chile) informou a Folha online dia 21 deste mês. O Chile foi alvo escolhido pela organização Anonymous, “por vigiar as comunicações das redes sociais e blogs”, informou o Canal N, do Peru (país também atacado por eles), no dia seguinte. O Brasil também foi alvo, mas os motivos não ficaram bem claros. Mas uma coisa é certa: alguém lá em cima não está gostando do que fazem nossos governos…

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano e regional, consultor e tradutor]