Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Hermano Vianna

‘Dizem que a Rocinha é a maior favela da América Latina (gostaria de saber qual é a maior do mundo). Dizem que Heliópolis é a maior favela de São Paulo, a segunda maior do Brasil, a segunda maior da América Latina. Acho que falam isso porque pouca gente -a não ser os moradores- conhece a Vila Brasilândia, na zona norte paulistana. Fiquei impressionado quando passei a primeira vez por lá. Parece muitas rocinhas, clonadas em muitos morros, não tão íngremes quantos os cariocas, mas colados uns nos outros. Talvez eu esteja cometendo um engano, e aquela área, nos mapas de urbanistas e na percepção de seus moradores, não seja considerada uma favela. Mas que parece uma favela, mesmo que com casas de alvenaria não tão amontoadas umas sobre as outras, isso parece. E que parece infinita e muito maior que a Rocinha ou Heliópolis, disso eu não tenho dúvida.

Ultimamente, tenho conhecido muitos lugares diferentes na periferia paulistana, lugares que eu nem sabia que existiam, lugares onde a maioria de meus amigos paulistanos, acostumados com o circuito Espaço Unibanco-Ampgalaxy, nunca esteve.

Fui também visitar a Cidade Tiradentes. É uma Cidade de Deus amplificada, realmente uma cidade dentro da cidade de São Paulo. Incrível como não se ouve falar nesses aglomerados humanos, como eles -mesmo tão gigantescos- não ocupam espaço nenhum no imaginário nacional e como lugares semelhantes cariocas ocupam e são notícia.

Não vou recomeçar aqui a velha disputa Rio-São Paulo. Mas uma constatação é óbvia: Brasilândia, Cidade Tiradentes ou mesmo Heliópolis não conseguiram gerar, nas pessoas que ali moram, um sentimento de pertencimento como aquele que encontramos nos morros do Rio de Janeiro. Já escutei muito funk produzido na Rocinha em que o MC diz morar na ‘maior favela da América Latina’ cheio de orgulho.

Nessa trilha, o funk C.I.D.A.D.E. D.E. D.E.U.S, de Cidinho e Doca, é uma das mais emocionantes canções de protesto da história da música brasileira, também baseada em militante ufanismo (‘vá lá conhecer minha cidade’, ‘êta povo valente, êta povo gigante’).

Não se entra também na Mangueira, no Salgueiro ou mesmo no complexo do Alemão sem sentir que ali existe realmente uma comunidade orgulhosa de si mesma, com uma história de sofrimentos, mas também de criatividade cultural, fenômeno que só recentemente apareceu em São Paulo, mas em territórios muito específicos, como Capão Redondo, hoje referência cultural nacional por causa da música dos Racionais e da literatura de Ferréz. O resto, a não ser um ou outro lugar que tenha uma importante escola de samba ou alguma festa mais tradicional no ‘pedaço’, é quase sempre apenas dormitório, lugar de castigo com o qual ninguém quer estabelecer nenhum vínculo emocional ou relação de vizinhança, inferno no qual todo mundo foi despejado e de onde só se quer fugir.

Para quem é da teoria do ‘quanto pior, melhor’, a situação de São Paulo deve apresentar vantagens. Para que criar qualquer vínculo ou altivez por morar num lugar miserável? O melhor seria fazer logo a revolução para tirar todas essas favelas do mapa. Mas, já que essa revolução tarda, um pouco de auto-estima bairrista, se bem usada, pode se transformar em ferramenta de melhoria de condições de vida. O fato de isso não ter acontecido nos morros cariocas e de o poder público fazer o possível para entregar a mais vibrante cultura favelada para a contravenção ou para o crime (samba para bicheiros, funk para traficantes) não é prova de que não se possa ter resultados mais bacanas em outras cidades ou outras situações.

A situação realmente é outra. Fui à Brasilândia, Cidade Tiradentes e outros distantes bairros da periferia paulistana para visitar seus telecentros, cujo objetivo é também atuar como centros comunitários. Não sei se todos os moradores de São Paulo conhecem o projeto dos telecentros. Deveriam, como dever cívico e também para aprender algumas importantes lições. Não estou de maneira nenhuma fazendo propaganda política suspeita em ano eleitoral: isso não é do meu feitio nem do meu interesse. Os telecentros, do modo como existem em São Paulo, deveriam ser transformados num projeto suprapartidário (para termos a garantia de que não vão acabar quando os governantes mudarem) de salvação nacional, com repercussões internacionais já evidentes. Eles podem tanto produzir o orgulho comunitário e cidadão nas periferias quanto conectar todas essas periferias entre si e com o mundo, não deixando que suas conquistas criativas sejam cooptadas por sistemas político-culturais de ‘fora’ ou organizações criminosas de ‘dentro’ que querem apenas tornar as periferias mais periféricas.

O telecentro é um espaço de inclusão digital. Ali a comunidade têm acesso gratuito aos computadores, incluindo cursos de computação, e à internet. São mais de cem no município de São Paulo. Vivem lotados. Fiquei conversando com a garotada que encontrei no telecentro da Brasilândia. Uma menina de uns 11 anos chegou com as amigas, todas de shortinho, top e havaianas (o traje oficial das periferias brasileiras), querendo saber como entrar no site da Barbie.

O instrutor não deu o endereço, mas mostrou para ela como o Google funciona. Muitos garotos conversavam via ICQ (um, com primos do Ceará), outros jogavam games variados, outros faziam pesquisa para trabalhos escolares. Mas, bisbilhotando os computadores lá do fundo, descobri dois adolescentes -de 16 anos- programando em HTML: estavam fazendo páginas pessoais para mostrar para o mundo sua coleção de cards do estilo ‘Yu-Gi-Oh!’.

Qualquer movimento cultural, do punk a Luther Blissett, parece uma ‘doença infantil’ diante da ideologia do software livre

Barbies e games

A administração dos telecentros faz bem em não proibir barbies, games e ICQ. Os pirralhos perdem o medo do computador, tratando-o como um brinquedo. Os mais interessados levam a sério a brincadeira, ficam íntimos da máquina e passam a programá-la. Não existe ferramenta mais necessária no mundo de hoje do que uma boa base de informática -se essa formação incluir programação, aí a pessoa deixa de ser apenas um consumidor passivo da alta tecnologia.

Nos telecentros de São Paulo, a programação é incentivada, pois tudo ali funciona à base de software livre. As máquinas não guardam segredos, seus códigos são abertos, e quem quiser pode investigar mesmo o núcleo de seu sistema operacional. Essa abertura levou gente como Cléber Santos, 18 (pai pedreiro-mas-há-pouco-tempo-desempregado, mãe faxineira-salário-mínimo), frequentador do telecentro da Cidade Tiradentes (o primeiro inaugurado pela Prefeitura, em 2001), a fazer vários programas -também de código aberto- com os recursos de programação que aprendeu em regime de total autodidatismo. Cléber, hoje monitor do telecentro da sua ‘Cidade’ (e o fato de participar de um projeto pioneiro produziu seu orgulho de morar ali), fala com a maior normalidade do mundo do fato de conhecer e já ter trocado idéias com Richard Stallman, papa do movimento software livre em todo mundo, o principal criador desse novo conceito de liberdade.

Não me canso de admirar essa conexão direta entre a periferia mais pobre de São Paulo (os telecentros foram instalados nos lugares dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano do município) com o movimento político, cultural e econômico que considero ser o mais de vanguarda e importante que acontece hoje no mundo.

Qualquer outro movimento político, da antiglobalização ao dos sem-terra, se revela ineficiente diante das conquistas do software livre. Qualquer movimento cultural, do punk a Luther Blissett, parece uma ‘doença infantil’ diante da ideologia do software livre.

É uma revolução enorme, talvez tão importante quanto qualquer outra revolução da história da humanidade (por incrível que pareça, estou medindo bem minhas palavras, para não parecer exagerado), que acontece quase na surdina, sem nenhuma guilhotina. É uma revolução feita em regime colaborativo e descentralizado, sem um partido político no comando, mas com pedaços de código em computadores diferentes espalhados pelo planeta, comandados por gente que trabalha não para ficar rica, mas querendo o bem comum -e às vezes um pouco de fama, já que ninguém é de ferro.

O negócio livre está dando certo, já ameaça a Microsoft (e nada pode estar mais no centro do poder contemporâneo do que a Microsoft), já tem como aliados outros capitalistas poderosos como a IBM (o que mostra como o capitalismo é esperto), além da totalidade da esquerda inteligente e atenta, já modifica a nossa percepção sobre propriedade intelectual (a propriedade que importa em nossos dias), já dá outros sentidos para nossas vidas que não a busca desenfreada de lucros e desenvolvimentos insustentáveis. Mas a batalha mal começou.

É interessante perceber um consenso em vários setores do governo federal brasileiro a favor do software livre. Vi, no ano passado, em Brasília, Richard Stallman, sem paletó e muito menos gravata, ser aplaudido por uma mesa que incluía José Sarney, João Paulo Cunha, José Dirceu (trazendo os votos de boas-vindas do presidente Lula), Gilberto Gil (que na ocasião proferiu seu discurso mais psicodélico), entre outras autoridades. Stallman nunca foi recebido assim em nenhum país do mundo. E poucas pessoas tão polêmicas quanto Stallman foram recebidas com tanta reverência por qualquer governo.

Muitos projetos de disseminação de software livre pelos computadores governamentais já estão sendo colocados em prática. O Brasil vira uma espécie de farol para o movimento, de laboratório onde testes importantes podem ser aplicados -o que gera uma simpatia enorme pelo país em meios ciberesclarecidos. Mas, como disse, a batalha mal começou.

E a continuação da batalha que vem por aí já se anuncia bem pesada. Noutro dia, o ‘New York Times’ publicou um artigo bem suspeito acusando o Brasil de ser um paraíso do crime informático. Não gosto de teorias conspiratórias, mas, daí a dizer que software livre incentiva ciberpirataria, e a polícia planetária baixar na nossa porta, é um pulo. Temos que nos preparar para a briga e não nos deixar enganar. Pois o que não falta no mundo é projeto de inclusão digital que tem como objetivo transformar cada vez parcelas maiores da população em clientes do Windows e seus caros ‘upgrades’.

O software livre mostra o único futuro alternativo àquele que parece óbvio e sufocante: a cada vez maior dependência de uma única empresa, a Microsoft. O conjunto de telecentros pode ser pensado como uma zona autônoma, espero que não tanto temporária. Disso a periferia paulistana pode se orgulhar: tem muito provavelmente a maior rede pública de software livre do mundo. É um projeto que está apenas começando. Mas aquela garota que entrou ali procurando o site da Barbie já meio que chama de otários todos nós que pagamos por software proprietário, ainda por cima mais instável que o GNU/Linux e suas aplicações (eu juro: são tão fáceis de usar quanto os programas para Windows com os quais já temos imposta familiaridade).

Ninguém sabe de que maneira a garotada periférica vai usar a arma cibernética livre que tem na mão para melhorar sua vida. Querendo, e os governos e empresas continuando a investir em espaços como os telecentros, podem criar a cultura ciberpopular de programação brasileira, e os ‘novos quilombos de Zumbi’ serão digitais. Se isso acontecer, ao passar na Cidade Tiradentes, espero que totalmente ciber-reurbanizada, o brasileiro do futuro vai ficar tão ou mais orgulhoso do que quando vê a Mangueira ou a Mocidade Independente, os produtos mais nobres das favelas cariocas, entrarem no sambódromo. Hermano Vianna é antropólogo, autor de ‘O Mundo Funk Carioca’ e ‘O Mistério do Samba’ (ed. Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na série ‘Brasil 504 d.C.’, do Mais!.’



Ronaldo Lemos

‘A revolução das formas colaborativas’, copyright Folha de S. Paulo, 18/04/04

‘O surrealismo é um movimento pela liberação da mente que enfatiza os poderes críticos e imaginativos do inconsciente’. Esse trecho não é de minha autoria. Ele consta no verbete ‘surrealismo’ da enciclopédia ‘Wikipedia’. Se você achar que o texto não define adequadamente o surrealismo, não se acanhe. Você pode modificá-lo imediatamente. Basta ir ao website da ‘Wikipedia’, uma enciclopédia on-line, e clicar na opção ‘editar esta página’, introduzindo a seguir as alterações que quiser. Com mais de 230 mil verbetes, a diferença entre a ‘Wikipedia’ e uma enciclopédia tradicional é que ela não possui um conselho editorial. Ela é construída integralmente a partir da colaboração de pessoas de todo o mundo, que livremente criam novos verbetes e alteram os antigos. O resultado, de excelente qualidade, está on-line para quem quiser conferir (www.wikipedia.com). Há inclusive planos para o lançamento de uma versão impressa, que será vendida em livrarias, mas mantendo o direito de copiar, redistribuir e alterar seu texto. A ‘Wikipedia’ só existe por causa do chamado ‘copyleft’, uma brincadeira (que se tornou séria) com o termo ‘copyright’. O ‘copyleft’ significa liberdade para copiar, distribuir e modificar, desde que tudo que for agregado ao trabalho também continue da mesma forma livre. A idéia surgiu mais ou menos assim: no início da década de 80, um programador chamado Richard Stallman, indignado com a decisão da AT&T de proibir acesso amplo ao sistema operacional Unix, resolveu ele próprio escrever um sistema operacional e garantir que ele continuasse aberto, podendo ser modificado, copiado e redistribuído, desde que as pessoas que o modificassem subseqüentemente também o mantivessem ‘livre’.

Sempre aberto

Nascia assim o sistema operacional chamado GNU, que veio a gerar o GNU/Linux (como os entendidos chamam o Linux). A grande peculiaridade desse sistema é que a colossal tarefa de desenvolvê-lo é distribuída entre colaboradores de todo o mundo, que, tal como a ‘Wikipedia’, testam, aperfeiçoam e modificam o software, desde que ele permaneça aberto.

Além da ‘Wikipedia’, do GNU/Linux e da miríade de outros programas de computador livres, há vários outros projetos colaborativos em curso. Existe um projeto de catalogação das crateras do planeta Marte mantido pela Nasa a partir das fotos enviadas pela sonda Viking.

O projeto já catalogou mais de 1,2 milhão de crateras e continua aberto para qualquer pessoa analisar as fotografias do planeta e contribuir na catalogação.

Outro é o projeto Kuro5hin, uma revista de tecnologia e cultura cuja íntegra da produção editorial é feita por meio de um sofisticado trabalho cooperativo (www.kuro5hin.org).

O motor dessa revolução colaborativa é o ‘copyleft’. Ele representa uma flexibilização, feita de baixo para cima, da idéia de direito autoral que herdamos do século 19. Enquanto as obras precisavam de suporte físico, o direito autoral propiciava os incentivos e a proteção adequada para fomentar sua circulação. Esses incentivos consistem em um grande ‘não!’, ou seja, qualquer obra já nasce com ‘todos os direitos reservados’. Isso se aplica até mesmo a rabiscos feitos em um guardanapo: quem quiser colocá-los na internet (hipótese remota, mas vá lá) também precisa de autorização prévia. Surge assim uma cadeia de intermediários que cuidam dessas autorizações, agenciando predominantemente apenas obras com valor comercial.

Assim, com o desaparecimento do suporte físico, no final do século 20 esse direito autoral tradicional passou de agente propulsor da circulação da cultura a seu principal inibidor.

A promessa da internet de digitalizar, preservar e transmitir toda nossa cultura, na íntegra, para as gerações futuras simplesmente não aconteceu. Como é impossível obter as permissões jurídicas necessárias para digitalizar a maior parte da informação, estamos preservando para as futuras gerações apenas uma pequena parcela cultural, sobretudo aquela que tem valor comercial, e perdendo todo o resto, que se deteriora juntamente com seu suporte físico.

A reação a isso surgiu com inspiração no software livre: inúmeros autores perceberam o dilema e passaram a desejar que suas obras pudessem ser acessadas, distribuídas e copiadas. Desejar até mesmo a modificação, aperfeiçoamento e reconstrução do seu trabalho, como nos exemplos acima. Para esses autores, surgiram iniciativas como o projeto sediado na Universidade Stanford chamado Creative Commons (www.creativecommons.org), representado no Brasil pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Ele cria instrumentos (licenças) para que um autor sinalize ao mundo, de modo claro e preciso, que sua criação é livre para distribuição, cópia e utilização, eliminando intermediários. O criador pode permitir, se quiser, alguns ou todos desses direitos, bem como a reconstrução do seu trabalho, por meio de remix, colagens, mesclagens e ‘sampling’, gerando um poder revitalizador inacreditável e rompendo as barreiras entre autor e público.

Evolução do capitalismo

Um aspecto muito importante do ‘copyleft’ é que ele não representa um rompimento com a lógica capitalista, mas sim uma evolução (ou revolução) feita dentro de seu próprio sistema. Software livre e cultura livre dão dinheiro, sim. Não por acaso a IBM e, mais recentemente, a Novell estão focando o desenvolvimento de produtos licenciados sob ‘copyleft’. Aquela já investiu alguns bilhões de dólares no Linux. Com isso obtém retorno vendendo serviços e configurações especiais de hardware. Esta está seguindo o mesmo caminho. Na música, o rapper Jay-Z liberou recentemente todos os vocais de seu álbum de despedida para a recriação de outros artistas. Dentre os resultados, misturas do rapper com os Beatles ou mesmo com Metallica.

No Brasil, a banda pernambucana Mombojó liberou seu excelente disco de estréia, ‘Nadadenovo’, na internet. A banda está escalada para tocar na noite mais importante do Curitiba Pop Festival, festival cujos 6.000 ingressos se esgotaram em menos de quatro horas. Nos EUA, o escritor Cory Doctorow vendeu mais de 10 mil cópias impressas de seu primeiro livro, colocando-o livremente para download na internet. Seu segundo livro, recém-lançado, repete a mesma política.

Em outras palavras, não se trata de repudiar o direito autoral como um todo, mas de restabelecer o balanço para devolvê-lo à sua função originária de propulsor cultural. Decai um modelo de negócios, surgem vários outros em paralelo. E socialmente mais benéficos, porque garantem a principal premissa para inovar e criar: acesso sem fronteiras à informação.

Em paralelo a essa revolução, o direito autoral segue caminho diverso, tornando-se cada vez mais fiel à sua imagem forjada no século 19. Nos EUA, o prazo de proteção autoral, que era originalmente de 14 anos, foi sucessivamente ampliado até chegar a 70 e, em 1998, estendido para 90, por pressão de grupos de mídia como a Disney. O ratinho Mickey, que cairia em domínio público em 2003, ganhou uma sobrevida no cativeiro por mais 20 anos. E com ele levou a obra de George Gershwin e todos os outros bens culturais que teriam caído em domínio público não fosse a mudança na lei. Estima-se que a maior parte deles irá se perder, pois não há fundos nem gente o suficiente para destrinchar o labirinto de autorizações para restaurar seus suportes ou fazer sua digitalização.

Os ventos da globalização sopram forte sobre o Brasil e com eles trazem pressões vindas de todos os lados para enrijecer nossa legislação autoral, como se a mesma já não fosse severa o bastante. Resta saber se em uma sociedade culturalmente tão rica quanto a brasileira e, ao mesmo tempo, tão carente de meios que possam fazer essa cultura emergir, saberemos optar pelos interesses que verdadeiramente nos dizem respeito e fazer com que o direito autoral se modifique, sim, mas para ser um instrumento de transição para o futuro, e não meramente um mecanismo de preservação do passado. Ronaldo Lemos é mestre em direito pela Universidade Harvard e diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ).’



Roger-Pol Droit

‘A invenção jurídica do autor’, copyright Le Monde / Folha de S. Paulo, 18/04/04

‘É meu livro’, diz o autor com orgulho. ‘É meu livro’, diz também o comprador do volume. Ambos têm razão, é mesmo ‘seu livro’, mas, evidentemente, em sentidos diferentes. Um concebeu a obra, o outro possui um exemplar dela. Isso parece muito simples à primeira vista.

Mas, assim que começamos a entrar no detalhe, tudo se complica. O que o autor possui exatamente? Em que sentido? Em razão de que direito? De que, por sua vez, o cliente do livreiro se torna proprietário? A essas perguntas, inspiradas em Kant, assim como o exemplo inicial, outras se acrescentam se incluirmos o editor, os herdeiros, as adaptações… Nesse labirinto de dificuldades, Bernard Edelman constitui um guia excepcional. Poderíamos pensar que é normal: esse advogado é especialista em direito autoral e propriedade intelectual. Mas estaríamos enganados.

Pois é como genealogista, arqueólogo e historiador que explora, em ‘Le Sacre de l’Auteur’ [A Sagração do Autor, ed. Seuil, 380 págs., 22 euros] não a jurisprudência dos casos contemporâneos, mas a implementação jurídica e literária, ao longo dos séculos, da ‘função autor’. Tornou-se habitual pensar que um indivíduo pode criar soberanamente uma obra do espírito, mas nada é menos histórico que tal conclusão.

O grande mérito do livro de Edelman é o de explicar o longo processo jurídico pelo qual se chegou lá. A Antigüidade não conhecia nenhum equivalente desse autor soberano. Os plagiadores existiam, claro. Mas bastava, como fez Cícero, tentar envergonhá-los ao desmascarar sua trapaça. A idéia de processá-los na Justiça não poderia se constituir, à falta de leis adequadas e à falta, sobretudo, da idéia de um texto intangível que emana de um indivíduo-autor.

A obra literária permanece uma realidade instável ao longo da Idade Média. Todo mundo pode legitimamente remodelar um texto, versificar o que é prosa ou o contrário. É preciso que nasça a ‘república das letras’, a constituição dos livreiros, o estabelecimento de privilégios para que novas questões comecem a ser colocadas. Então se desenha lentamente o rosto do autor.

Edelman insiste em uma virada, a de 1637-38, em que evidentemente se reconhece a querela da peça ‘El Cid’. ‘Não devo senão a mim mesmo todo o meu renome’, proclama Corneille em ‘L’Excuse à Ariste’, inaugurando a autocriação do autor, anunciando a ascensão do individualismo e o sagrado futuro de um eu todo-poderoso.

No entanto nenhuma conseqüência jurídica se seguiu. É preciso que terminem de triunfar o indivíduo, os direitos do homem e a Revolução Francesa para que se estabeleça a paisagem que conhecemos. Definitivamente? Nada é muito seguro. Edelman não aposta na morte do autor. Mas o que diz sobre as invenções digitais mostra que o risco existe. O próximo século verá talvez esse autor, de soberania afinal juridicamente estabelecida, morrer sem glória, ‘assassinado sob o peso da tecnologia e do mercado’. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.’