Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Injustiça com as próprias mãos

Outro inocente sofreu execração pública na internet essa semana. Na Austrália, um homem estava tirando uma selfie ao lado de um pôster do Darth Vader. Algumas crianças se aproximaram e ele pediu que elas aguardassem um segundo para que ele concluísse a foto. A mãe viu a cena, imaginou que ele estivesse fotografando seus filhos e não teve dúvidas: fotografou o sujeito e postou no Facebook, afirmando que se tratava de um pedófilo. Mais de 20 mil pessoas compartilharam a postagem e o homem teve que ir à polícia esclarecer a situação e tentar salvar o que sobrou de sua reputação. Mais tarde, percebendo o grave equívoco, a mulher se desculpou publicamente e logo em seguida passou a ser ela própria vítima da fúria dos execradores nas redes sociais.

A maioria das pessoas não pensa muito antes de compartilhar gravíssimas acusações como essa. A emoção despertada pela indignação com a notícia e o pânico moral de que aquele indivíduo possa produzir novas vítimas são capazes de desligar qualquer resquício de racionalidade e senso crítico da maior parte das pessoas. E, assim, denúncias falsas, ainda que bem-intencionadas, tornam-se virais e espalham-se pela internet em uma velocidade exponencial.

Não bastasse essas reações espontâneas e emocionais de quem compartilha graves denúncias em um ímpeto de indignação, está se tornando moda na internet os “escrachos” orquestrados por ativistas políticos desejosos de fazer “justiça” a qualquer preço.

No início deste mês, militantes feministas acusaram um segurança de uma boate de São Paulo de ter estuprado uma frequentadora. As acusações geraram enorme repercussão na internet. Posteriormente, a suposta vítima esclareceu na delegacia que não houve estupro e que o contato dela com o segurança havia sido consensual. Tarde demais. A vida sexual da moça já havia sido exposta, o segurança já havia ganhado o rótulo de estuprador e a reputação da boate já havia se desgastado. Tudo em nome da “justiça”.

O problema é que ninguém acha que faz injustiça com as próprias mãos. Todo mundo tem sempre a plena convicção de que está fazendo justiça. Nenhuma declaração de guerra foi feita em nome do mal; todo general que se preze alega estar lutando em nome do bem. Nenhuma tortura, seja da inquisição ou das polícias de nossos dias, foi praticada em nome do mal; todo verdugo afirma que age em nome do bem. Nenhum linchamento ou esculacho é praticado por malfeitores; todo justiceiro está convicto de que é um homem de bem. E é por isso que o inferno está cheio de pessoas bem-intencionadas.

Boas intenções nem sempre trazem bons resultados. Foram necessários séculos de civilização para se perceber que não é razoável sair por aí queimando pessoas simplesmente por terem sido acusadas de bruxaria pelo vizinho. O Direito ocidental consagrou princípios como legalidade, contraditório e ampla defesa não para “defender bandidos”, como muitos insistem em dizer, mas para defender acusados da fúria dos bem-intencionados.

A cultura da justiça pelas próprias mãos baseia-se na premissa de que os fins justificam os meios. Dessa forma, quem age em nome do bem, de Deus, de minorias oprimidas ou de qualquer causa que considere relevante se julga legitimado para passar por cima da própria lei. E é por isso que essa é uma ideologia inevitavelmente antidemocrática. Em um Estado de Democrático de Direito, quando a lei é falha, deve-se procurar modificá-la no parlamento, e não simplesmente violá-la.

É bem verdade que o caminho democrático para a realização da justiça é muito mais longo e árduo que a solução simplista da justiça com o próprio teclado. É muito mais fácil escrachar supostos racistas pela internet do que acionar o Ministério Público para que ele seja processado e julgado pelo crime de racismo. É muito mais fácil escrachar supostos homofóbicos na internet do que lutar pela aprovação de uma lei que criminalize a homofobia. E é muito mais fácil escrachar supostos estupradores pela internet do que dar os meios para que as vítimas de estupro processem criminalmente seus agressores.

A democracia pode até não ser o sistema mais simples e rápido de resolução de conflitos, mas a adoção da justiça pelas próprias mãos deixa a porta aberta ao totalitarismo. Patrulhas morais da internet não são uma alternativa democrática às deficiências dos órgãos públicos, pois estão fadadas a cometer os mesmos excessos autoritários de qualquer milícia.

A cultura do escracho digital é um indício frustrante de decadência do ativismo político na internet, que parece ter deixado de ser uma ágora de debates e de pressão pela aprovação de novas leis no Congresso Nacional para se converter em um pelourinho para execrações públicas.

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Túlio Vianna é professor da faculdade de Direito da UFMG, autor de Um Outro Direito (Lumen Juris)