Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Justiça às turras com a internet

A Justiça brasileira está descobrindo a internet. E as duas não estão se entendendo. Não faz muito tempo, escrevi uma coluna sobre o Amarula com Sucrilhos (www.sobresites.com/blog/artigos/pirataria.htm), tirado do ar por determinação da empresa que produz o licor Amarula. O caso foi quase cômico. O caldo, entretanto, começa a engrossar. 

Enganados pela Artha

Um juiz de Minas Gerais exigiu que fosse tirada do ar uma comunidade do Orkut chamada ‘Enganados pela Artha’, sob pena de multa diária para seu fundador. O objetivo da comunidade era congregrar pessoas que teriam tido, digamos, experiências desagradáveis com a tal Artha, uma agência de viagens mineira. Naturalmente, só o que se fazia por lá era xingar a Artha e seus sócios.

O presidente da Comissão de Informática do Conselho Federal da OAB, Alexandre Atheniense, disse ao site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br) que a liminar concedida ‘afasta, enfim, a idéia de que a internet é uma zona sem lei e conseqüentemente qualquer prática ofensiva, seja ao uso não autorizado de marca ou ao que possa ser considerado um crime contra a honra, deverá ser aplicada pena à internet a exemplo de qualquer outro meio que incida em ofensa ou injúria à pessoa’.

Parece até que o Presidente da Comissão de Informática da OAB não entende nada de Internet. [Ele também é advogado da Artha (http://direitoinformatico.org/cynthia/index.php?p=144); será que foi por isso?)

Na verdade, aconteceu exatamente o oposto. A ação da Artha transformou uma minúscula e obscura comunidade no Orkut, conhecida por meia dúzia de consumidores revoltados, em notícia nacional e precedente jurídico. Muita gente que não conhecia a fama da Artha, agora conhece.

Talvez tudo isso até valesse a pena se a comunidade tivesse realmente saído no ar. Mas nem isso.

Como se para comprovar a total impotência da justiça em enquadrar a internet, surgiu uma nova comunidade, de mesmo nome, ‘Enganados pela Artha’ (www.orkut.com/Community.aspx?cmm=498339), mas dessa vez fundada por alguém que se diz estoniano morando na Inglaterra – ou seja, longe do alcance dos bracinhos da Justiça mineira.

Resumo da história: a comunidade continua no ar, com muitos mais membros e visibilidade do que antes; a má fama da Artha, antes uma questão local, tornou-se nacional; e a Justiça brasileira foi, vamos ser sinceros, retumbantemente humilhada.

O professor Túlio Lima Vianna (http://tuliovianna.org/blog), da PUC-MG e autor de diversos livros sobre Direito e Internet, define assim a situação:

‘O episódio demonstra uma absoluta impotência não só do Poder Judiciário, mas também do poder econômico da empresa, diante de um único cidadão que, antes do advento da internet, certamente teria sua voz facilmente calada pela censura judicial. (…) O direito à livre manifestação de pensamento, assegurado em nossa Constituição Federal, parece finalmente ter encontrado na Internet a garantia de seu pleno e incondicional exercício, mesmo diante das historicamente constantes tentativas de censura, sejam por parte de um poder militar, econômico ou judicial.’

HCO International vs. Imprensa Marrom

Mês passado, a empresa de recolocação profissional HCO International entrou com uma liminar na justiça pedindo que o blog coletivo Imprensa Marrom (www.imprensamarrom.com.br) fosse retirado do ar.

A empresa – brasileira, com sede no Brasil, e que de ‘internacional’ só possui o nome – tem algo em comum com a Artha: ambas são empresas de má reputação. Buscas no Google por seus nomes revelam um manancial de usuários descontentes e revoltados. Não tenho como dizer que essa má reputação é merecida ou não, mas ela existe e é incontestável.

Enfim, vocês já podem imaginar o que aconteceu, não é? Os blogueiros do Imprensa Marrom falaram mal da HCO e foram escolhidos para ser exemplo. Certo? Não, muito pior. O Imprensa Marrom nunca falou sobre a HCO. Nos comentários de um post sobre empresas de recolocação, um usuário não identificado xingou um dos sócios da HCO. E pronto. Tiraram o Imprensa Marrom do ar.

É como se a Veja publicasse, em sua seção de cartas, uma reclamação de um consumidor furioso – e a HCO entrasse com uma liminar para recolher a Veja de todas as bancas!

A alegação foi que os comentários permitiam anonimato e davam cobertura ao xingador. Na verdade, mantendo o mesmo exemplo acima, as cartas da Veja permitem mais anonimato ainda, pois o leitor pode inventar nome, endereço e CPF falsos. Os comentários em um blog, mesmo que anônimos, podem ser facilmente traçados de volta à sua fonte: basta a Justiça exigir essa informação do provedor.

Entretanto, ao invés de fazer isso, a HCO preferiu tirar o Imprensa Marrom do ar. Menos de quatro dias depois de feito o comentário, o provedor já estava recebendo a liminar.

Fernando Gouveia, 27, advogado de Salvador (BA), colaborava no Imprensa Marrom com o pseudônimo de Gravataí Merengue, e era o responsável legal pelo site. Ele se diz espantado porque a HCO jamais tentou entrar em contato com ele. Se pedissem para você tirar o comentário, eu perguntei, você tiraria? ‘No ato,’ responde Fernando. ‘Mas não me deram essa possibilidade.’

Na verdade, parece que o objetivo não era mesmo dar essa possibilidade ao Fernando. O blogueiro Cris Dias (http://www.crisdias.com/weblog/index.php?p=10306250&c=1) estava falando sobre empresas de recolocação profissional em seu blog e seus usuários também aproveitaram para meter o malho na HCO nos comentários. Reparem que o próprio Cris jamais menciona a HCO: seu assunto era uma empresa similar, a Dow Right.

Apesar disso, entre os comentários de usuários lesados e revoltados, apareceu esse recado misterioso e algo sinistro:

‘Cris fale daqui 24hs com seu amigo gravatai blogeiro, veja seu caso , e esqueca essa mania de ganhar algum dinheiro com as besteiras acima, dou ate sabado para parar com essa atividade…Lhe dou esse prazo pois sou correto e objetivo, resolva o meu problema e vc se livra.Um acordo e melhor do que o litigio aprenda meu filho.’ (http://www.crisdias.com/weblog/index.php?p=10306250&c=1#comment-11442)

De fato, no dia seguinte, o provedor do Imprensa Marrom recebeu a liminar e o site saiu do ar.

Outro blogueiro conhecido me conta que sofreu ameaças explícitas por parte da HCO – ou de pessoas dizendo representar a HCO. Ligaram várias vezes para sua casa, disseram que sabiam onde morava e ameaçaram-no com processos de milhões de reais. Por fim, ele achou que não valia a pena o estresse: tirou do ar tudo o que eles pediram e, pelo sim pelo não, registrou um Boletim de Ocorrência de ameaça na delegacia mais próxima.

Naturalmente, tentei falar com a HCO e, mais naturalmente ainda, ninguém quis falar comigo. A simpática secretária chegou a me bater o telefone na cara.

Fernando Gouveia pretende combater a liminar na Justiça, alegando que não há anonimato algum. A pessoa que fez o comentário existe, é identificável e imputável e a HCO, se tiver que ir atrás de alguém, que vá atrás dela.

Uma vitória ele já conseguiu. Na sexta-feira (8/10), o Imprensa Marrom voltou ao ar.

Evitando ações judiciais na selva de bits

Em resposta a essa crise, o blogueiro Alexandre Inagaki (www.pensarenlouquece.com) acabou de incluir um tristemente necessário disclaimer em seus comentários:

‘NOTA: este sistema é disponibilizado aos leitores de ‘Pensar Enlouquece, Pense Nisso’ exclusivamente para a publicação de opiniões e comentários relacionados ao conteúdo deste weblog. Todo e qualquer texto publicado na internet através deste sistema não reflete, necessariamente, a opinião deste weblog ou de seu autor. Os comentários publicados através deste sistema são de exclusiva e integral responsabilidade e autoria dos leitores que dele fizerem uso. O autor deste weblog reserva-se, desde já, o direito de excluir comentários e textos que julgar ofensivos, difamatórios, caluniosos, preconceituosos ou de alguma forma prejudiciais a terceiros. Textos de caráter promocional ou inseridos no sistema sem a devida identificação de seu autor (nome completo e endereço válido de e-mail) também poderão ser excluídos.’

Por seu lado, o já citado professor Túlio, em parceria com Cynthia Semíramis Vianna, mestre em Direito também pela PUC-MG, escreveu um interessantíssimo e indispensável manual de sobrevivência na selva de bits [veja ‘Algumas noções de Direito para blogueiros’, nesta rubrica], para que os blogueiros tentem evitar, na medida do possível, ações como as que tiraram do ar o Imprensa Marrom.

Censura na internet

Tem muita gente falando em censura. Sempre que começa a acontecer algo que cheira a arbitrariedade as pessoas levantam esses palavrões que soam mal (censura, burguesia etc) mas que já não significam quase nada.

Censura não tem nada a ver com a história. Censura não é o que foi feito. Censura é proibir a exibição de Je Vous Salue Marie em todo o território nacional.

Segundo um dos meus leitores, advogado, o que houve foi uma manobra jurídica absolutamente comum e justificada, para prevenir dano irreparável à reputação de alguém:

‘Quando você entra com qualquer processo judicial você pode pedir uma liminar. O que é uma liminar? Liminar é um pedido de antecipação de tutela ou cautelar, ou seja, se existe o risco de que a demora no julgamento do processo acarrete prejuízo irreparável, vc pede desde já, por cautela, que o pedido seja deferido provisoriamente.

‘No caso de danos morais, ninguém consegue mensurar o tamanho, grande ou pequeno, do prejuízo de uma calúnia, difamação ou injúria. Quanto mais tempo ela ficar ‘disponível’, mais pessoas lerão e comentarão.

‘Liminares, pelo caráter de urgência são concedidas inaldita altera parts, ou seja, o prejuízo irreparável tem que ser provado de plano no pedido para que o juiz possa julgar sem necessidade de ouvir a parte contrária. Posteriormente, é claro, no curso do processo, a parte contrária terá a possibilidade de pedir a suspensão da medida e se defender adequadamente.

‘Bom, até aí corretíssima a concessão da liminar, mesmo sem ouvir o que o blog ou o comentador teriam a dizer em sua defesa nesse primeiro momento. O erro foi, s.m.j., como comentei abaixo, de imputar responsabilidade a quem não é objetivamente responsável, no caso o blog. Dessa forma a liminar poderia ter sido concedida simplesmente determinando a retirada do material considerado ofensivo, depois buscariam responsáveis e ouviriam o que todos tem a dizer. Inclusive se o comentador ou o blog, caso provassem que os comentários não foram mentirosos, poderiam publicá-los novamente.’

O erro não foi o pedido de liminar em si, foi o alvo.

Anarquia vs. lei

É fácil estar do lado da anarquia quando parece que a Justiça está a favor de duas empresas mal-afamadas como a Artha e a HCO. Mas também não vamos esquecer que quando a Justiça perde, perdemos todos: ela nos representa. Os americanos fazem questão de lembrar disso a cada julgamento, quando dizer ‘O Povo contra Fulano de Tal’.

Todos damos boas risadas quando o cara que falava mal da Artha faz ressurgir sua comunidade igualzinha no exterior. Mas eu, como bom jornalista e escritor, sempre penso no outro lado. E se fosse um site falando sobre a vida de um de vocês, ou postando fotos de vocês nus, tiradas na intimidade por um(a) ex-amante rancoroso? E se vocês tentassem tirar o site do ar na Justiça e o desgraçado simplesmente re-hospedasse o site na Estônia? E se você perdesse um emprego porque seu potencial empregador fez uma busca por seu nome no Google e encontrou esse site?

Será que acharíamos tanta graça no fato de esse cara estar fora do alcance da Justiça?

Liberdade de expressão

Todos também adoram conclamar a liberdade de expressão. Ninguém defende a liberdade de expressão mais do que eu, um liberal libertino que fala o que lhe dá na veneta. Mas vamos lembrar que esse conceito não vale nada sem a salvaguarda legal de que cada um é responsável e imputável pelas besteiras que falar.

Se chegarmos a uma situação de fato em que a internet esteja fora do alcance da lei, a rede rapidamente se converterá em uma terra de ninguém de calúnias e difamação e perderá toda a credibilidade.

Para que a internet seja a ferramenta democrática de comunicação que já é não é necessário – e nem desejável – que ela esteja à margem da lei.

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Colunista de internet da Tribuna da Imprensa, editor do Guia de Blog SobreSites (http://www.sobresites.com/blog) e mantém o blog Liberal Libertário Libertino (http://www.liberallibertariolibertino.blogspot.com/); e-mail (cruzalmeida@sobresites.com)