Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Luis Fernando Verissimo

‘Na semana passada estivemos todos na estranha situação de ter que escolher nossos terroristas preferidos.

Na torcida para que os culpados pelas explosões em Madri fossem os separatistas bascos estavam o governo do Aznar e quase todo o mundo. O Aznar porque a culpa da ETA o favorecia eleitoralmente e a culpa da Al-Qaeda só daria mais razão aos que eram contra o envolvimento espanhol na aventura no Iraque, quase todo o mundo porque um atentado parecido com o de 11/9, em Nova York, no centro de uma das grandes nações européias, abria uma fase nova e assustadora na guerra do terror contra o nosso sistema nervoso. Eu, como o Zé Maria, torci para que fosse a ETA. Nem o consolo de ver a insensatez americana e sua encampação pela direita espanhola punida pela eleição dos socialistas compensa o fato de que – se foi mesmo a Al-Qaeda ou coisa parecida a responsável pelo horror de Madri – acabamos de passar do mau ao pior.

Na guerra de Estados europeus contra seus descontentes explosivos – a ETA na Espanha pós-Franco, o IRA na Inglaterra, grupos radicais na Itália e Alemanha em décadas recentes – muitas regras de correto procedimento policial e jurídico foram tapeadas mas a democracia, de um jeito ou de outro, sobreviveu. A Espanha e os outros eram, mesmo, exemplos de como se pode enfrentar o terror sem necessariamente perder a cabeça. Com o fundamentalismo islâmico inaugurando sua temporada européia, todos os países da comunidade passam a enfrentar o mesmo desafio a suas instituições e valores que enfrentam os americanos desde 11/9. Os americanos não estão tendo muito sucesso em manter a cabeça no lugar, vamos ver o que acontece na Europa sob a mesma ameaça. Paradoxo: o que deu a vitória aos socialistas na Espanha pode muito bem dar força à direita mais dura no resto do continente.

Há 70 anos, para animar seus compatriotas abatidos pela depressão e a desesperança, o lpresidente Franklin Roosevelt disse uma frase que ficou famosa: eles não tinham nada a temer a não ser o próprio medo. Nesta questão, é difícil saber do que ter mais medo, do terror ou do medo do terror.’



Zuenir Ventura

‘Derrota da mentira’, copyright O Globo, 17/03/04

‘Como um povo considerado temperamental e estourado como o espanhol, que sofreu três anos de guerra civil, quase meio século de ditadura e há 35 enfrenta o terrorismo, pôde reagir com tanta serenidade e lucidez em meio à dor e ao pânico? Como, em estado de choque, teve discernimento para rejeitar o uso político que o governo fez da tragédia, mentindo e manipulando informações com o objetivo de mobilizar a opinião pública a seu favor às vésperas das eleições?

A rapidez com que as fontes oficiais acusaram o ETA pelo atentado poderia ser atribuída, num primeiro momento, à precipitação e à vontade de descobrir logo a autoria do crime, o que seria uma atitude irresponsável, mas não necessariamente de má-fé. A leitura dos jornais espanhóis e de correspondentes estrangeiros, porém, não deixa dúvida de que foi uma ação deliberada e um jogo sujo. O governo mentiu para a imprensa, pressionou embaixadores e obrigou ministros a agir de forma fraudulenta para se livrar do peso de ter transformado a Espanha em alvo do terrorismo islâmico, ao se associar à aventura de Bush no Iraque.

No momento em que o porta-voz do ETA negava a autoria do massacre, desmentindo o ministro do Interior, que dizia ‘não ter qualquer dúvida’ dessa participação, o primeiro-ministro em pessoa telefonara aos diretores dos principais diários do país para comunicar sua ‘convicção absoluta’ de que os terroristas bascos estavam por trás do atentado.

Da mesma maneira, enquanto a ministra das Relações Exteriores, Ana Palacio, enviava nota aos embaixadores recomendando que aproveitassem ‘todas as ocasiões para confirmar que o ETA é o autor desses atentados’, a televisão estatal substituía um programa de variedades por um filme sobre o grupo separatista: ‘Assassinato em fevereiro’.

E por que então não deu certo uma operação que conseguiu impor sua versão até ao Conselho de Segurança da ONU? Como os eleitores descobriram a trama? A melhor resposta talvez tenha sido do correspondente francês Jean-Hébert Armengaud: ‘Simplesmente porque a mídia espanhola conseguiu junto à polícia informações muito mais confiáveis do que as do governo.’ Em outras palavras, fez o que a imprensa americana deixou de fazer em relação às supostas armas de destruição em massa no Iraque. Num primeiro momento chegou a embarcar no engodo, mas em seguida apurou por conta própria e rejeitou a mentira oficial.’



João Batista Natali

‘Mídia acusa governo Aznar de manipulação’, copyright Folha de S. Paulo, 18/03/04

‘O premiê José María Aznar pressionou a mídia espanhola para que ela atribuísse aos terroristas bascos do ETA, e não a grupos radicais islâmicos, a autoria do atentado de há uma semana.

É o que disse à Folha Fernando González Urbaneja, presidente da Associação da Imprensa de Madri, a principal organização espanhola de jornalistas.

Detalhes da pressão foram anteontem relatados por dois importantes diários. No jornal ‘El País’, a ombudsman Malén Aznárez escreveu que Aznar telefonou na quinta-feira ao diretor de seu jornal, Jesús Ceberio, para assegurar que os bascos haviam sido os autores da carnificina.

A credibilidade atribuída ao telefonema orientou a manchete (‘Matanza de ETA en Madrid’) da edição especial que o jornal ‘El País’ imprimiu a partir das 13h.

Antonio Franco, diretor do jornal ‘El Periódico’, de Barcelona, disse também ter recebido telefonema do premiê, o que orientou indevidamente seu noticiário.

Sábado à noite, a sensação de que o governo omitira deliberadamente a hipótese islâmica provocou uma reviravolta nas previsões eleitorais. O Partido Popular perdeu uma eleição que as pesquisas lhe davam como tranqüilas, e os socialistas do PSOE voltam agora ao poder, com José Luis Rodríguez Zapatero.

Ana Palacio, chanceler, disse ao ‘New York Times’ que ela e seu governo não procuraram enganar quem quer que seja. ‘As investigações levavam à versão [da responsabilidade do ETA] que nós acreditávamos ser a única correta’, afirmou ela.

Há, desde segunda-feira, um forte movimento, sobretudo nas empresas ligadas ao governo -agência Efe, Rádio e Televisão Espanhola, canal Telemadrid- pela demissão dos diretores que teriam reforçado uma versão favorável eleitoralmente a Aznar. Os acusados respondem que os sindicalistas estão fazendo proselitismo político e partidário.

Mas o clima anda tão tenso que ontem uma repórter da TVE acusou a direção da emissora de censurá-la na reportagem em que o cineasta Pedro Almodóvar saudava a ‘volta da democracia’ após a derrota eleitoral do governo.

O Partido Popular, de Aznar, anunciou ontem que processará Almodóvar por suas declarações.

De um modo geral a mídia espanhola diz que os canais de televisão regionais, que trabalham fora do controle do governo central, tomaram maiores precauções e foram mais apartidários.

Os correspondentes estrangeiros também relataram pressões. Steven Adolf, que preside a associação desses profissionais em Madri, disse que os representantes de alguns jornais europeus receberam telefonemas na própria quinta de assessores de Aznar.

Uma das ‘evidências’ citadas como suposta prova do envolvimento do ETA se referia aos explosivos utilizados nos trens de Madri, que seriam do mesmo tipo recentemente encontrado entre os terroristas bascos.

Isso, disse Adolf, não tinha o mínimo fundamento.

González Urbaneja, da Associação da Imprensa de Madri, reuniu-se anteontem à noite com jornalistas da Efe para discutir o que qualificaram de ‘crise de credibilidade da agência’. Ele disse que o governo ‘não foi ágil para dizer a verdade, o que provocou tensão com os jornalistas’.

Em entrevista à Folha, negou-se a acusar Aznar de ter agido de má-fé. Mas foi muito duro com o ministro do Interior, Ángel Acebes, ‘que deu oito entrevistas coletivas para não dizer nada’ e que já no sábado deixou de informar que um grupo de marroquinos possivelmente ligados à Al Qaeda estava por trás do atentado.

O atual debate tende a amadurecer as relações entre mídia e governo na Espanha. Mas sem que sejam cogitadas novas leis. ‘Já temos muitas leis, disse González Urbaneja.’



David E. Sanger e David Johnston

‘EUA dizem que Espanha manipulou informações sobre autoria de ataques’, copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 19/03/04

‘O governo Bush disse na quarta-feira que o governo espanhol ignorou informações sobre os ataques a bomba de 11 de março quando menosprezou provas de que extremistas islâmicos estavam por trás do plano.

A declaração pública mais forte veio de Richard A. Armitage, subsecretário de Estado. Ele disse em uma entrevista na televisão que o governo espanhol inicialmente ‘não revelou para o público a informação que tinha’.

Armitage sugeriu que o governo espanhol se agarrou à suposição de que o grupo separatista basco ETA era o responsável, e não contou ao público sobre as evidências de que os extremistas islâmicos talvez tenham detonado as bombas que mataram cerca de 202 pessoas. Em diferentes entrevistas, ele disse duas vezes que a Espanha ignorou o assunto, segundo a agência Associated Press. Segundo ele, como resultado, o partido do governo foi derrotado nas eleições gerais de domingo.

‘Eu acho que a votação que levou os socialistas ao poder foi um protesto do povo contra a manipulação do evento terrorista pelo governo’, disse Armitage.

As declarações foram a primeira crítica a como o governo de José María Aznar lidou com os ataques. Até agora ninguém no alto escalão do governo Bush disse quanto se sabia a respeito de quem estava por trás dos ataques e quando isso ficou conhecido. E os funcionários do governo, até a quarta-feira, não tinham criticado publicamente Aznar, um dos aliados mais próximos de Bush.

Ao mesmo tempo, a Casa Branca e seus aliados tentaram impedir qualquer idéia de que outros países possam seguir o exemplo da Espanha. O deputado governista Dennis Hastert disse que a Espanha sucumbiu às ameaças votando no governo socialista.

‘Eles mudaram seu governo por causa da percepção de uma ameaça’, disse Hastert. ‘Eis um país que se pôs contra o terrorismo e tinha uma grande atividade terrorista interna. Escolheu mudar o governo e, de alguma forma, aplacar os terroristas.’ Um alto funcionário da Casa Branca disse que ‘a mensagem que estamos tentando mandar é que não se pode mostrar fraqueza nas resoluções diante de ataques terroristas. Ao fazê-lo, apenas se encorajam potenciais ataques futuros. Não se faz paz em separado com terroristas’.’