Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Morte no exercício do jornalismo

Acordo cedo. Café. O noticiário girando nas telas da TV e do computador. Leio sobre a já tão anunciada morte do repórter cinematográfico Gelson Domingos da Silva, da Rede Bandeirantes de Televisão, na cobertura de uma ação policial na comunidade de Antares, no Rio de Janeiro, na manhã de domingo (6/11).

Gelson tinha 46 anos e deixa esposa, filhos e netos. Em 2010, fez parte da equipe de reportagem da TV Brasil, vencedora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com o trabalho “Pistolagem”, sobre assassinatos no nordeste do Brasil.

Domingo, cobria mais uma entre tantas trocas de tiros entre polícia e traficantes em solo carioca. Morreu com um tiro no peito, bala de fuzil. Sem capacete, usava um colete que protegia contra disparos de revolveres calibre 38 até pistolas 44. Sabe-se, infelizmente, que a utilização de fuzis nos morros cariocas é comum.

Pode-se dizer que o cinegrafista sabia dos riscos que corria. Que era experiente nesse tipo de cobertura. Que gostava do que fazia. Que estava disposto a levar a informação, o furo de reportagem, a qualquer custo ao espectador. Tudo isso é e será dito.

O que não será falado é que esse é o discurso dos manuais produzidos pela visão patronal que impera nas grandes redações. Falácias de que o jornalismo é o bem maior. Bravatas que escondem o desapreço pelo ser humano – tanto por quem é o motivo da notícia quanto por quem a produz. E se o custo é deles, o lucro é do patrão.

Lamento nas bancadas

Sobre os riscos e a “proteção”, é comentado que a legislação não prevê o uso de coletes mais densos e capacetes por equipes de jornalistas. Se a lei não permite o uso de certos equipamentos que seja rediscutida, mas os patrões, diretores e editores sabem da utilização de armas poderosas nessas frentes de cobertura.

Ainda assim, sabedores da ineficácia do aparato, enviam profissionais. Os primeiros, porque não estão nem aí com a vida. Os outros, pois, em geral, incorporam o discurso patronal.

Até mesmo a validade jornalística do fato é questionável. Qual a relevância em mostrar mais um tiroteio nos morros cariocas? Aliás, o que existe de jornalístico em registrar gritos, sons de balas e homens se movendo em busca de uma melhor posição para fugir ou acertar alvos? Isso, muitas vezes, sem ao menos escutar uma história. Não é jornalismo. É entretenimento macabro em busca de ibope e, claro, ganhos financeiros. Os números de audiência sobem e a emissora atrai condições mais favoráveis para negociar com anunciantes e investidores.

No final, há um homem morto no “pleno exercício do jornalismo”. Ele será exaltado em notas de pesar e falas cheias de falso amor a uma profissão que tem progressivamente menos direitos e mais riscos. Gelson morreu e deixou a família por precariedade nas condições de trabalho. Isso, nas lamentações disparadas pelas bancadas de telejornais, certamente não será discutido.

***
[Moriti Neto, jornalista, colunista do Nota de Rodapé]