Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Notícia a quente em primeira pessoa

‘As histórias que se transformam em notícia – a base essencial do jornalismo – estão, todas, na rua. E é na rua que o repórter deve estar.’ Estas afirmações representam a profissão de fé de Joel Silveira, um grande repórter brasileiro. Joel prega o que viveu. Em sua longa e rica experiência, sempre correu atrás da notícia, onde quer que ela fosse encontrada, até mesmo numa guerra. Trabalhando para os Diários Associados, Joel foi correspondente na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial.

Hoje, repórter na rua é apenas uma imagem obliterada, uma prática cada vez mais escassa nas redações. O telefone e a internet encurtaram a distância entre o repórter e seu objeto. O produto que surge dessa mediação, porém, não tem o mesmo tempero obtido na refrega a quente com o cotidiano, no contato com gente de carne e osso. Esse é um dos motivos – mas não o único – que explicam o empobrecimento da narrativa jornalística em nossos jornais e revistas.

Mas, com a explosão dos blogs jornalísticos, os conceitos tradicionais de narrativa e de produção da notícia têm sofrido uma reviravolta. Com esse boom, outros recursos surgem em cena. A instantaneidade é um deles. Outro é a possibilidade da interatividade com os leitores. E mais um, importante: a utilização da primeira pessoa nos relatos, numa mistura de observação com opinião, quebrando assim o paradigma do distanciamento baseado na narrativa em terceira pessoa.

Os sons da guerra

Cinco exemplos em andamento na nossa mídia ilustram o poder dos blogs, e garantem um sopro de vitalidade à reportagem dentro dessa nova mídia. É um sinal alentador de que, por meio de uma outra dinâmica, o jornalismo segue seu curso, apesar de tudo.

O primeiro exemplo vem do Estado de S.Paulo com o blog Direto do front, do repórter Lourival Sant’Anna, que está no Líbano cobrindo o conflito entre Israel e o Hezbollah. Desde que chegou ao palco do conflito, o calejado Lourival tem postado informações surpreendentes, mesmo para uma pauta tão escarafunchada diariamente por veículos do mundo inteiro. Sua narrativa sobre mais uma noite de bombardeios israelenses, por exemplo, é impagável. Eis um trecho:

‘Tudo começa com os caças-bombardeiros rompendo a barreira do som: ROAARRR. Em seguida, os mísseis descem assoviando. Se são bombas, o som é mais o de um corpo caindo: tóum. E, quando batem no chão, fazem assim: tuf, tuf, tuf, como se fosse a agulha de uma máquina de costura. E explodem: PAM. Aí vem o que eu não sei se é táctil: o chão e as paredes tremem, como se fosse um terremoto. Claro que, quanto mais perto cair a bomba ou míssil, mais forte o terremoto. Na casa onde eu fiquei entre segunda e terça, em Marjeyoun, uma janela inteira, com toda a esquadria de madeira, saltou da parede e caiu no chão, como se alguém tivesse dado um peteleco numa caixa de fósforos’.

Realidade distante

O jornal O Globo também tem mandado seus repórteres blogueiros gastar sola de sapato pelo mundo. No blog Na África, a repórter Juliana Lootty e o fotógrafo Leo Aversa mostram a vida na Somália, país que visitam neste momento. A partir do rés-do-chão, eles vão passando ao leitor uma visão pouco edificante da região, confirmando o futuro sombrio de boa parte daquele continente. Na quinta-feira (17/8), Leo Aversa escreveu:

‘Em cada esquina de Hargeisa tem uma ONG humanitária európeia, uma associação de ajuda americana, algum braço da ONU. E a cidade continua um caco’.

Noutro post, com forte pitada de humor, Leo registrou a força da discriminação contra as mulheres:

‘Aqui eu sou rei (isso tinha que acontecer em algum lugar no mundo). Posso tudo. Avacalho o espião do governo, faço troça com os hábitos locais, fotografo o que não pode, me comporto como macaco em loja de louça. Eles acham o máximo. Sorriem e aprovam. Já a Juliana tem que aturar todo mundo querendo dar ordem nela. E ainda tem que usar um véu pra cima e pra baixo, num calor insuportável’.

Gilberto Scofield é outro repórter blogueiro que O Globo despachou para ver de perto uma realidade distante – no caso, a China. Embora escrevendo sobre vários aspectos do cotidiano chinês, Scofield tem concentrado seu foco na vida dos chineses do campo, exatamente o contingente que ainda não foi beneficiado pela revolução econômica do grande dragão. Na segunda-feira (14/8), ele reportou:

‘De certa maneira, a vila de Duan Jia Ling é um retrato da desigualdade campo x cidade vivida pela China moderna. Nas paredes de suas casas ainda é possível ver as campanhas do Partido Comunista da China (PCC) pelo filho único e pelo valor das meninas. Como no campo os casais preferem filhos, pois estes não apenas ajudam na colheita como cuidam dos pais na velhice, há um perturbadoramente alto registro de abortos de meninas’.

Arsenal de histórias

Percorrendo o famoso caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, o repórter Pedro Doria tem relatado o seu périplo no blog No caminho de Santiago, disponível na revista eletrônica NoMínimo. Trata-se talvez de iniciativa pioneira no Brasil, não no sentido de falar da empreitada para ultrapassar os desafios da jornada espiritual: da atriz Shirley MacLaine ao escritor Paulo Coelho, muitos ofereceram seus testemunhos em livro. Mas o compartilhamento da experiência num blog, por um jornalista, é algo inusitado na mídia brasileira.

Pedro Doria anotou na quinta-feira (17/8):

‘Chove muito, falta muito para chegar, estamos no meio de uma floresta. Passamos por uma pichação que diz `Estrangeiros, lembrem-se que aqui não é a Espanha´. Meu mau humor interno é todo direcionado para o raio dos terroristas e separatistas do mundo. Mas sempre que a trilha da floresta é interrompida por um vilarejo de pequenas casas de pedra, uma meia dúzia ou pouco mais, cada uma datada – mil setecentos e isto, mil oitocentos e aquilo – todas em duas águas, lindinhas que só, fonte de pedra no meio da praça, imagino que o País Basco não é tão ruim assim. Aliás, é uma lindeza.’

Em suas andanças, os repórteres blogueiros vão dividindo com seus leitores um arsenal de histórias que não caberiam num relato convencional da mídia impressa. Por meio dos blogs e de sua linguagem própria, exercitam a veia de repórter e abrem uma nova frente para a notícia. O jornalismo segue em frente.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias