Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O desafio de combater o crime na rede

Em setembro de 2005, um homem de 27 anos, repositor de produtos em supermercados, deixou a seguinte mensagem no blog de uma criança: ‘oi garotinho vc e muito engrasadinho resolvi passear pela net nos blog e achei o seu simples mas com esta foto bonita sua continue assim meu sobrinho tem um album no msn se vc quiser ver e so vc addintalo no msn tai o msn dele mexo com fotografia e vc e super fotogenico ta nao sei seu nome mas um abracao vc e muito bonito’.

Naquele mês, ele já deixara mensagens parecidas em outros blogs -todos de meninos na faixa dos oito anos.

A situação, se não corriqueira, é frequente na internet, território em que crianças e adultos têm livre acesso a praticamente tudo o que queiram ver. Com o êxito das redes sociais no Brasil -o país tem mais de 40 milhões de usuários-, a criminalidade on-line passou a grassar. E não se trata de ações mirabolantes, cometidas por hackers ou trambiqueiros virtuais, mas de crimes da vida off-line que encontraram nas redes sociais solo fértil para se disseminar: maus-tratos a animais, racismo, nazismo, tráfico e apologia às drogas -e, como no caso do repositor de produtos em supermercados, pedofilia.

Em março de 2009, ele foi condenado em primeira instância a oito anos de prisão, em regime semiaberto, pela divulgação de pornografia infantil na internet. A denúncia do Ministério Público Federal dizia que, mesmo negando ser o responsável, ‘vários endereços eletrônicos investigados direcionam para o denunciado’. O homem fora descoberto por causa de um perfil criado por ele no Orkut, ‘Garoto Peter Sou Peter Bryan’, onde publicava as fotos.

Denúncias

O responsável por encaminhar o endereço do site à Procuradoria da República foi o advogado Thiago Tavares Nunes de Oliveira, presidente da SaferNet Brasil, principal canal para denúncias de crimes cibernéticos no país.

Numa quarta-feira de janeiro, Tavares chegou ao escritório às 9h, num edifício decrépito de Salvador. Ligou o computador e passou a relatar as denúncias que recebera desde a meia-noite anterior, pelo site denunciar.org.

‘Twitcam. Era ao vivo. Só veríamos se fosse na hora’, lamentou, antes de passar para o segundo caso.

‘YouTube. Um pitbull matando um gato. É ilegal? Não, mas é ofensivo. A política do YouTube não permite esse tipo de vídeo, embora haja centenas.’ O terceiro vídeo, do site 4Shared, mostrava uma adolescente sendo violentada, embora risse. ‘Fica a dúvida se foi consentido. De toda forma, o provedor é americano. Reporto aos EUA’, disse.

Seguiu-se nova dezena de casos (dois adolescentes xingando-se no Twitter, fotos de meninos nus no Blogspot), até Tavares deparar com uma situação grave: um vídeo, recém-postado no YouTube, de uma criança sendo abusada.

‘Aí vou ter que parar tudo para fazer um ’report’ de emergência’, disse. Enviou um e-mail para Fabiana Silveira, diretora jurídica do Google no Brasil (empresa à qual o YouTube está subordinado) e para Stenio Santos, delegado da Polícia Federal (PF) responsável por investigar crimes de pedofilia.

Até a hora do almoço, Tavares receberia mais 15 denúncias. Nove delas, como o fórum ‘Pela Legalização do Estupro’ ou a comunidade ‘Eu já Cometi um Homicídio’, vinham do Orkut. O grupo ‘Sede de Sangue. Matar e Matar’, era voltado a ‘todos que sentem vontade de ver alguém morto’. Já a comunidade ‘Sente o Drama’ debochava da Justiça letárgica: ‘O bagulho é louco. Já o processo pode ser lento…’. (As comunidades são grupos que agregam membros da rede social com interesses em comum, como ‘Jesus Cristo’, ‘Parei de Fumar’ ou ‘Neymar, o Craque’, para que possam trocar mensagens e fotos.)

O dia terminaria com 109 novas páginas a serem investigadas -delas, 46 no Orkut, 17 no Twitter e nenhuma no Facebook. ‘Juntando Orkut, YouTube e Blogspot, 80% do que recebo é por causa do Google’, conclui Tavares. ‘Eles são os meus principais clientes.’ Das 80 mil denúncias de crime cibernético levantadas pela PF em 2010, 65 mil chegaram via SaferNet (os outros caminhos são os sites da Secretaria de Direitos Humanos e da própria PF).

O denunciante, sempre anônimo, pode enquadrar a página suspeita em nove categorias, de ‘pornografia infantil’ a ‘maus-tratos contra animais’, passando por ‘racismo’ e ‘intolerância religiosa’. O Brasil ainda não tem um canal para denunciar sites de crime organizado e tráfico de drogas. De acordo com o delegado Santos, mais da metade dos crimes cibernéticos são de pedofilia.

Assim que recebe a página denunciada, um computador a fotografa e localiza em que país está hospedada. Páginas repetidas são agrupadas, para evitar investigações redundantes. ‘É necessário. No passado, recebemos mais de 4 mil denúncias sobre um pedófilo que se apresentava no Orkut como Tenente C’, conta Tavares.

A página então é verificada pela equipe. Sites com suspeitas concretas são encaminhados à PF para investigação. Desde que foi criada, em dezembro de 2005, a SaferNet recebeu mais de 370 mil denúncias (290 mil do Orkut).

Pesquisa

Tavares é um homem baixo, que usa paletó preto sobre uma camiseta surrada, com o logotipo da SaferNet e a frase ‘Crimes na Internet? Denuncie’. A voz de barítono e a fala empostada lhe dão mais do que os 31 anos que efetivamente tem. Em 2004, estudando direito na Universidade Católica de Salvador, ganhou uma bolsa do governo suíço para investigar violações aos direitos humanos na rede. ‘Vi que, no tocante à pornografia infantil, polícias, provedores e ONGs não faziam nada. Não havia pesquisa de campo’, lembra ele.

O advogado percebeu que as cinco contas de e-mail disponibilizadas pela PF não constituíam um canal de denúncias. ‘Uma delas era da assessoria de imprensa. O que um assessor ia fazer com isso?’, pergunta. No ano seguinte, recém-formado -e já contratado, pela mesma universidade, para lecionar informática jurídica- fundou, com alunos, a SaferNet.

O escritório, com 11 funcionários e três salas diminutas (uma delas fechada, ‘para economizar em ar-condicionado’), funciona na Federação, bairro residencial de Salvador. É bancado por Petrobras, Comitê Gestor da Internet e Childhood Brazil, que doam no total cerca de R$ 1 milhão por ano.

Padrão

Tavares logo notou um padrão nas denúncias: 90% provinham do Orkut. No começo de 2006, após tentativas infrutíferas de contato com Alexandre Hohagen, presidente do Google no Brasil, enviou-lhe um CD com 220 páginas da rede social, com supostos crimes sexuais. Foi ignorado.

Tavares moveu, então, sete ações judiciais contra o Google. ‘Eles descumpriram 38 ordens da Justiça Federal, sob alegação de que os dados estavam nos EUA, sob resguardo das leis americanas’, lembra. ‘Além de pornografia infantil, havia tráfico de drogas e até um cara negociando um rifle para matar o Lula. Os ladrões passaram a ver que existia um meio de comunicação onde a polícia não entrava.’

O embate não rendeu nada enquanto se manteve na esfera jurídica. Em agosto de 2006, em entrevista à revista ‘Exame’, Hohagen comparou o Orkut a uma ‘mina de ouro’, anunciando que abriria a rede social a anunciantes. ‘Eu conhecia o sistema que casava nomes de marcas com o de comunidades’, lembra Tavares. ‘Sabia que era questão de tempo até que eles pisassem no próprio pé.’

Por esse sistema, chamado AdWords, o anunciante pode escolher determinadas palavras que, uma vez presentes no nome de comunidades ou perfis do Orkut, remetam ao seu anúncio. Por exemplo, ao fazer uma busca no Orkut por ‘Ubatuba’, pipocarão diante do internauta links para pousadas e hotéis no balneário paulista.

Conar

Em 2007, o advogado entregou representação ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Argumentava que o Orkut estava prejudicando os anunciantes, expondo-os em páginas ilegais ou agressivas.

O documento mostrava que a comunidade ‘Animais Eu Mato na Faca’ anunciava a venda de animais de estimação. Na comunidade ‘Black Tiger’, sobre uma coleção de fotos de pedofilia, havia uma propaganda do uísque Johnny Walker Black Label. O texto indagava: ‘Será que os anunciantes estão, de fato, desejosos de vincular a sua imagem a conteúdos desta natureza?’.

Na semana seguinte, o Google eliminou todos os anúncios do Orkut -decisão que perduraria por mais de um ano. Tavares recebeu uma ligação do presidente do Google, propondo um encontro. ‘Na época, rebatizamos nosso provedor de Davi’, orgulha-se.

Desde então, Golias, isto é, o Google, removeu mais de 100 mil páginas criminosas ou agressivas do Orkut.

Orkut

Em dezembro de 2010, a comScore, especialista em aferir audiência na internet, estipulou em 31 milhões o número de usuários do Orkut no Brasil. O Facebook aparecia com 12 milhões de perfis -um terço. Essa proporção, no entanto, não se repetia no total de suspeitas de crime. No mesmo mês, a SaferNet recebera 1.745 denúncias contra o Orkut e 21 contra o Facebook -ou seja, a rede social do Google teve 83 vezes mais denúncias do que a de Mark Zuckerberg.

Felix Ximenes, diretor de comunicação do Google no Brasil, disse à Folha, por telefone, que ‘denúncia não é fator que denigre’. Ele explica: ‘Página suspeita não quer dizer página criminosa. O Orkut é uma das comunidades mais limpas da internet. O número de crimes apurados é ínfimo’.

De acordo com Thiago Tavares, da SaferNet, apenas 3% das denúncias se confirmam. Mas ele faz uma ressalva: ‘Em se tratando de Orkut, isso é expressivo. Uma média de 150 crimes sexuais consumados por mês.’

O Grupo Especial de Combate aos Crimes de Ódio e à Pornografia da PF (Gecop) abriu 116 inquéritos, desde 2008, para investigar casos de pedofilia no Orkut. Fez duas operações -Turko e Libras-, que resultaram na prisão em flagrante de 15 pessoas. Stenio Santos, delegado da Gecop, diz que até hoje a PF não abriu um único inquérito para investigar crimes praticados no Facebook.

Facebook

Em janeiro, quando estive na SaferNet, pedi a Thiago Tavares que me deixasse ver as 268 denúncias referentes ao Facebook, acumuladas pela ONG desde 2008. Consegui checar apenas dez: no Facebook, à diferença do Orkut, a maioria dos usuários mantém as suas páginas fechadas a desconhecidos: elas só podem ser acessadas por seus ‘amigos’.

Das denúncias ‘abertas à visitação’, a mais antiga datava de 29 de julho de 2010. Era o perfil de um torcedor do Internacional, que bradava: ‘Vagabunda tem que apanhar. Mulher é bicho ruim, por isso vomito nelas. Coloraaaadooo!!!!’.

As mais recentes eram de 22 de janeiro de 2011. A primeira mostrava a foto de um adolescente, no museu de cera Madame Tussauds, ao lado de uma estátua de Adolf Hitler. ‘Esse aí tá junto pro que der e vier hahaha!’, dizia a legenda. A segunda página pertencia à comunidade ‘Rivotril’. O denunciante justificava sua decisão: ‘Diversos perfis do Facebook fazem apologia a um remédio comercializado somente sob prescrição psiquiátrica’.

Havia denúncias, ainda, contra a comunidade ‘Descobrir Portugal’, pelo apoio às touradas, e contra o grupo ‘Se Tornar Pai e Mãe é o Grande Presente da Vida’, suspeito de ser frequentado por pedófilos.

Organização

O delegado da PF Stenio Santos diz que o crime, no Facebook, é mais organizado -logo, mais discreto. ‘Você precisa se infiltrar, pedir para ser membro. E, no caso das comunidades pedófilas, um sujeito só consegue isso se carrega, no currículo, um longo rastro de abusos anteriores, tendo frequentado outras comunidades do tipo’.

Segundo Santos, ‘o Orkut é a primeira droga, aquela de fácil acesso. Mas a partir dela a pessoa se especializa e vai para fóruns fechados, em páginas da internet, ou dentro do próprio Facebook’. Ele acredita que os crimes no Orkut chamam atenção pelo tamanho da rede. ‘Mas os sites [de pedofilia] mais perigosos, de crimes mais sofisticados, são outros, que nem sequer aparecem na busca do Google.’

Stenio Santos reconhece um aspecto positivo nas redes sociais: elas o ajudam a localizar os suspeitos. ‘A internet não criou a pedofilia, mas facilitou. De fato, o Orkut nos aproxima de criminosos que talvez não fossem encontrados. Mas, na balança, ainda prefiro que haja menos exposição para eles e mais dificuldade para nós.’

Thiago Tavares conta que a Microsoft é capaz de identificar a presença de sangue nas fotos em seus sites. A SaferNet desenvolveu uma ferramenta para detectar suásticas. ‘E como pode uma empresa que faz o Google Sky, que mapeia o universo, não resolver a pornografia infantil em seu site?’, pergunta.

Outro lado

Felix Ximenes, do Google, diz que à empresa não compete arcar com o que é publicado na rede social. ‘É como se a gente brigasse pelo telefone e processasse a Telefônica’, argumenta.

Em janeiro de 2011, o Superior Tribunal de Justiça negou o pedido de indenização de uma mulher insultada no Orkut. O acórdão dizia: ‘A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso […] o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos’.

Tavares sabe que a maioria das denúncias que encaminha acaba sem ser investigada. ‘Em sete anos o Ministério Público recebeu, de nós [SaferNet], 6 mil denúncias concretas’, diz ele. ‘Transformou em 46 ações penais. O Estado brasileiro não tem capacidade de investigar isso na velocidade em que acontece.’

Visibilidade

Ronaldo Lemos, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, no Rio, diz não saber ‘se o problema do Orkut é de periculosidade ou visibilidade’. Ele explica: ‘Como as comunidades do Facebook são fechadas, você não tem como medir os riscos. Apenas a própria rede social tem conhecimento de tudo o que acontece por lá. Já o Orkut, por ser aberto, paga um preço altíssimo.’

Orkut e Facebook são praias diferentes. Fazer buscas por uma mesma palavra nas duas redes sociais leva a resultados distintos. Tome-se, por exemplo, o termo ‘caviar’. No Facebook, 2.123 pessoas ‘curtiram’ a comunidade ‘Iranian Caviar’. No Orkut, 30.957 integram o grupo ‘Nunca comi caviar!!!’, que indaga: ‘Que gosto será que isso tem afinal?’.

Digitemos agora os termos ‘vendo maconha’. O resultado é nulo no Facebook. No Orkut, há dezenas de comunidades, entre as quais ‘Eu Vendo Pó Maconha e Cracke’ e ‘Zé Pequeno Vendo Maconha 8699-XXXX’.

Para os termos ‘meto bala’, o Orkut engloba centenas de grupos, como ‘Cai Dentro que eu Meto Bala’, ‘Meto Bala sem Dó’ e ‘Meto Bala nus Polícia’. No Facebook, há apenas um perfil e uma comunidade, em espanhol: ‘Si encuentro a Justin Bieber por la calle, le meto una bala em la jetaa!!!’ [se encontro Justin Bieber na rua, meto-lhe uma bala na fuça].

Se comparado a um estilo de governo, Lemos diz que o Facebook seria ‘um conjunto de aristocracias’, por incentivar amizades entre pessoas de interesses parecidos. Acima de todos, ‘legislando’, estaria o dono da rede, Mark Zuckerberg. ‘Ele é o monarca, que tudo vê, ao passo que cada aristocracia só alcança seu próprio horizonte.’

Já o Orkut teria ares mais democráticos. ‘Os horizontes, lá, são mais amplos. Você pode passear, explorar perfis, comunidades, sem ter que interagir. Ele é muito mais um espelho da sociedade brasileira e, por isso mesmo, reflete o que há de bom e ruim no país.’

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Repórter da ‘Ilustrada’ da Folha de S.Paulo