Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Obra de arte preciosa e custosa

Uma das maiores revoluções na história da imprensa foi o aparecimento do fotojornalismo. O fato escrito passou a ser ilustrado por uma fotografia instantânea legendada. Quem a tornou viável, por ironia, não era fotógrafo nem jornalista, mas engenheiro, o alemão Oskar Barnack (1879-1936). Apaixonado por fotografia, mas asmático, não tinha condições de carregar a pesada aparelhagem fotográfica do início do século, com negativos feitos de placas de vidro e flash a magnésio.

Fotógrafo de fim de semana, gostava de registrar cenas do campo e, com a simplicidade das coisas geniais que anos mais tarde trouxeram o transistor, o computador pessoal e a internet, passou a trabalhar na construção de uma pequena câmera que pudesse ser carregada no bolso. Conseguiu uma obra de arte, preciosa e muito custosa, composta por milhares de peças móveis em aço e latão, muitas feitas à mão. Ele não tinha condições econômicas para industrializá-la. Dessa forma, levou o protótipo a um fabricante de microscópios, o também alemão Ernest Leitz (1871/1956). Ernest olhou bem o que lhe estava sendo apresentado e concluiu: ‘Está certo, arriscamos, vamos mandá-la para produção’. Assim, do acrônimo Leitz Camera surgiu a lendária máquina fotográfica Leica. Até hoje se diz ‘Formato Laica’ para indicar o filme de 35mm perfurado nos lados, adaptado das películas de cinema, patinado com brometo de prata.

Foi uma revolução na mídia. Com o novo aparelho nasceu uma nova profissão: o fotorrepórter, com seu gosto de estar presente no momento do acontecimento. Segundo o artista e fotografo Alexander Rodcenko (1895-1956), a Laica é ‘um prolongamento do olho do fotorrepórter’. O estadunidense Bruce Gilden vai mais adiante: ‘Um instrumento de trabalho que fica na mão como uma luva’.

Nestes últimos anos, os fabricantes da Leica, por acreditarem que a fotografia digital fosse uma ilusão passageira, quase levaram a industria à falência; foi salva por dois investidores que não são do ramo, a Hermès francesa e a austríaca AMG – mesmo assim, a câmera continuou made in Germany.

Então é você

Mesmo com o avanço impensável da fotografia, a Leica preserva seus ‘cultuadores’, que a tratam com fervor quase religioso. Faz-lhe um verdadeiro panegírico o fotógrafo italiano Gianni Berengo Gardin (1930):

Gostariam que nos divorciássemos. Semeiam discórdia entre nós, fazem terrorismo psicológico. Dizem que é velha e que logo não se encontrarão mais filmes; todavia, não é verdade, não se vêem tantos filmes em preto e branco como nestes anos, até os chineses os estão fazendo, e se eles os fazem quer dizer que há mercado. Caluniam só para nos fazer desafeiçoar.

Mas nós, os da Leica, somos amantes fiéis. Minha primeira vez foi em 1953, era uma 3C. Comprei-a usada, também naquela época custava muito. Desde Cartier-Bresson (1908-2004), que a ‘descobriu’ antes da guerra, todos os grandes fotorrepórteres a usaram. Alguns a deixaram, mas eu nunca. É verdade que algumas vezes a traí, mas sempre foram traições ‘honestas’. (…) Foram sempre ‘escorregões’ autorizados e ocasionais. Cada retorno à Leica, para mim, era o gáudio do amor reencontrado, portanto sou fiel, mas polígamo.

Da lente da eterna Leica, saiu, como não podia deixar de ser, uma eterna fotografia, uma das mais conhecidas no mundo. Foi conseguida pelo também eterno Alfred Eisenstaedt (1898-1995) em 15 de agosto de 1945, no Dia da Vitória dos aliados na Segunda Guerra: em Times Square, Nova York, um marinheiro abraça e beija uma enfermeira. Assim como a Leica e Eisenstaedt, a foto também tem sua história particular e curiosa.

No ano passado, para comemorar o Dia da Vitória, um jornal resolveu encontrar, se vivos ainda fossem, os protagonistas da cena. A enfermeira foi fácil, mas se apresentarem seis marinheiros garantindo serem eles o personagem. Estavam nesse nó quando a enfermeira encontrou a solução: perguntou o que haviam dito depois do beijo. Todos tinham uma versão, menos um que ficou calado.

– E você? – perguntou a enfermeira.

– Eu? Não disse nada, dei o beijo e fui embora – respondeu o marinheiro.

– Então é você, pois foi assim mesmo que aconteceu.

‘Em Time Square, no Dia da Vitória, eu vi marinheiro que vinha agarrando todas as moças que encontrava. Eu saí correndo junto a ele com minha Leica, olhando para trás por cima de meu ombro. Então, de repente, numa mínima fração de tempo, vi alguma coisa branca sendo agarrada. Girei em torno e cliquei o momento em que o marinheiro beijava a enfermeira. Tirei exatamente quatro fotos. Foram conseguidas em poucos segundos’ – Alfred Eisenstaedt

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Jornalista