Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os vírus somos nós

Quem abre anexo desconhecido no e-mail dentro da rede da empresa é tão nocivo quanto quem cria vírus. A ladainha se repete. Nova infestação. Centenas de e-mails infectados nos últimos dias na caixa postal de todo mundo. Servidores congestionados, roteadores parados, sítios fora do ar.

O problema maior é que também não muda o noticiário da imprensa, sobretudo a dita especializada. Especializada em traduzir do internacional, talvez. É a abordagem de sempre. O mesmo tom alarmista. E, evidente, vários links para baixar a solução contra o novo vírus da moda, além de entrevistas com os especialistas sobre os prejuízos causados.

Ninguém discute a incompetência de alguns administradores de redes. Não se questiona a displicência de funcionários (e seus respectivos chefes) dentro de uma empresa com vários computadores em rede e conectados à internet. Pior ainda, ninguém ousa debater um fato nítido: a quantidade de usuários relaxados parece só aumentar. Não aparece um para colocar em xeque o pedestal da entidade chamada ‘usuário’, aquela que tudo pode. Mesmo quando prejudica um coletivo enorme.

Não se trata do usuário leigo, que não sabe operar Windows; e sim do internauta padrão, que sabe, sim, da necessidade de um antivírus e firewall. E não usa. Lê sobre o assunto sempre, mas acha que nunca vai acontecer com ele. Usuários assim, por incrível que pareça, são a maioria. Computador deu problema? Sempre tem o cara da assistência técnica que cobra baratinho para resolver ou o sobrinho do amigo para formatar tudo.

Debater políticas internas da empresa em relação à internet; questionar se os funcionários podem usar o computador da empresa como se fossem seus; exigir um curso básico de internet; entre outros assuntos, parecem temas proibidos na imprensa. Basta aparecer o primeiro a questionar para, logo, ser apedrejado pelos falsos moralistas dizendo que a ‘natureza’ da internet não é assim. São os donos da verdade, ao menos no mundinho pontocom.

Pior do que os donos da verdade, são os cavaleiros da emoção. Aqueles que volta ou outra aparecem para falar/escrever somente o que o leitor-usuário quer ouvir, mesmo quando não há a menor consistência técnica. Bastou o noticiário publicar que as empresas de antivírus estão faturando milhões de dólares para os especialistas começarem com insinuações mais velhas do que a tataravó do Matusalém: de que pode haver ‘algo’ proposital nesses vírus de internet, por parte das empresas de antivírus.

Escuto esse papo desde que comecei a usar DOS 3.3, em meados de 1993, quando os terrores da época eram vírus como cascata, pingue-pongue e natas.

É óbvio e ululante que empresas de antivírus estão faturando milhões. Existem programas de antivírus gratuitos para quem quiser usar, com eficácia idêntica (e até melhor, às vezes) do que aquele ‘super’ antivírus que custa uma pequena fortuna. Acontece que os antivírus gratuitos não pagam viagens e oba-oba para imprensa. Quando sai uma versão nova, a cobertura do noticiário parece ser igual no país inteiro. São coloridinhos, têm figurinhas e consomem caminhões de memória do computador.

Na verdade, talvez não haja motivos para questionar nada disso. Afinal, daqui a seis meses vai acontecer novamente. Vão continuar distribuindo links para os remédios e antivírus. A repercussão será grande. Depois, a maré se acalma e fica tudo igual… até chegar a próxima tempestade.

Não há mocinhos. Mas ninguém vai questionar o usuário ou a imprensa. Ninguém vai bater de frente com o supervisor que não sabia ‘que um simples vírus de computador podia fazer tanto estrago’. O problema é que, muitas vezes, os vírus somos nós.

Bactérias

Pois, se nós somos os vírus, é bom ficar sabendo que tem muita bactéria por aí fazendo papel de antibiótico. Quando as infestações aparecem, muitas empresas de tecnologia correm à imprensa e às autoridades para exigir investigações sobre o criador do vírus. Exigem a prisão do cara, demandam por ‘justiça’. Aparentemente, se colocam do lado do usuário, proclamando revolta contra os prejuízos causados.

Também nunca há um questionamento sério em relação à parcela de culpa dessas empresas. Ninguém quer colocar os engravatados para responder sobre o assunto.

As correções de segurança, para programas e sistemas operacionais, só aparecem depois que algo grave acontece – ou quando um hacker ou um grupo especializado coloca a boca no trombone. Até a conclusão de um remendo (patch), muito estrago já foi feito.

Agora, aparece a Microsoft para anunciar uma recompensa de US$ 250 mil por informações que possam levar à prisão e condenação dos responsáveis pela criação do MyDoom. Para o público, diz que a medida reforça o compromisso da empresa em garantir proteção contra ataques criminosos aos seus clientes.

É quase uma afronta à inteligência (ou ignorância) de todos nós. Só pode. Infestações de vírus e códigos maliciosos, a partir de aberrantes falhas de segurança no Windows, não são novidade. Muito pelo contrário. Ocorrem desde sempre. O Windows XP, menina dos olhos da Microsoft, ao ser instalado do zero em um computador, sem nenhum programa extra, possui nada menos do que 35 furos de segurança oficialmente considerados ‘graves’. Tudo documentado, na base de dados da Microsoft disponível ao público. Sem contar outros furos, os ‘menos graves’.

É nessa barca que estamos navegando. O colete salva-vidas é só para quem sabe nadar.

******

(*) Jornalista no Recife – www.rebelo.org; este texto é uma versão estendida de artigo publicado no Diário de Pernambuco