Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Parece que algo está mudando

Penso que as restrições ao uso excessivo da televisão, internet e videogames sejam universais. Todavia, na Europa está se transformando em verdadeira cruzada. Há pouco mais de um ano li em la Reppublica artigo sobre o assunto de Mario Pirani, que coloca o videogame numa situação alarmante. Na época, cheguei a copiar umas notas:




Os games interativos de conteúdo muito violento que permitem a crianças entre os 8 e 10 anos identificar-se com desapiedados personagens que se dedicam ao homicídio, ao estupro, ao roubo, munidos de armas que vão da metralhadora à motosserra, da bazuca à faca e assim por diante. O domínio da cidade é objeto de loucas perseguições a pé, em motocicletas e automóveis. As cenas que com seus controles os pequenos jogadores animam e personificam são horripilantes: prostitutas degoladas, com uma onda de sangue que cobre todo o vídeo, adversários esquartejados com a moto-serra, cabeças de passantes despedaçadas por rajadas de metralhadoras, e outras partes dignas de uma antologia do horror.


Esse tipo de entretenimento hiper-realístico certamente cancela nas crianças todas as diferenças entre ficção e realidade, alimentando uma imaginação onde a mais assustadora violência é vivida como sendo um jogo, induzindo a convicção que no jogo tudo é permitido e que não existem jogos proibidos.


No fim de junho, o jornal francês Le Monde tratou do mesmo assunto, mas com outra visão. Na França são vendidos mais de 4 milhões de exemplares de games, o que os coloca em segundo lugar entre os produtos ‘culturais’ (sic) difundidos no país. O Ministério da Saúde recolheu estatísticas e depoimentos e concluiu: ‘Esse jogo é um delírio. É verdadeiramente completo, pode-se criar tumultos, matar policiais num universo urbano de total anarquia, onde os problemas são resolvidos com pistolas, metralhadoras e facas’.


Um psicanalista afirma que é um jogo iniciático e no momento em que se pratica passa-se a fazer parte dos ‘grandes’. Desafia todas as regras da moral e responde perfeitamente aos anseios das novas gerações que desejam transgredir e nos games o fazem de forma lúdica’. Outro psiquiatra, do hospital Marmottan (Paris), é ainda mais otimista: ‘Esse jogo tem uma função catártica (entenda-se como liberatória) que funciona como desabafo. Permite fazer aquilo que a realidade proíbe’. Quem conclui é o Le Monde: ‘Materializa entre os jovens o desejo de revolta através do jogo’.


Alguns críticos italianos chegaram, com um algum exagero, a atribuir a causa do massacre da Columbine High School, com base no diário deixado por um dos criminosos, ao hábito deste de jogar games. [O que se tornou conhecido como o massacre da Columbine High School (Colorado, EUA) ocorreu em 20 de abril de 1999 (110 anos do nascimento de Hitler), quando os estudantes Eric Harris (de 18 anos) e Dylan Klebold (de 17) chegaram à escola vestindo impermeáveis pretos, sacaram dos agasalhos fuzis automáticos e começaram a atirar. Saldo final: 12 alunos e um professor mortos, 25 feridos e o suicido dos autores da chacina. A cobertura do The Denver Post, dos jornalistas Bill Briggs, Patrícia Callahan, Mark Eddy, Ruce Finley, Susan Green, Steve Lipsher, Mark Obmascik e David Oinger recebeu o Pulitzer 2000 na categoria ‘Crônica Local’.].


Trecho do tal diário: ‘Sou um rapaz, um selvagem, uma automática calibre 45. Sou Deus. Mato as pessoas. Estou cheio de ódio e gosto disso. Odeio as pessoas e é bom que tenham um fod… medo de mim. Odeio os negros e aos hebreus. A raça humana me dá nojo, a natureza humana foi estragada pela sociedade, o trabalho, a escola. Parece estar num fod… filme’.


Revolução ética


Todavia está começando a aparecer um outro lado dessa situação: também os videogames têm parte boa. Estão convencidos disso professores que no início do mês reuniram-se em Bruxelas para um seminário denominado ‘Videogames, amigos ou inimigos?’ Foi promovido pela Interactive Software Federation of Europe, associação européia que reúne os maiores produtores de jogos virtuais. Eles dizem que não se deve ficar o dia inteiro agarrado ao comando, mas os videogames não são necessariamente perigosos e em muitos casos, são instrutivos. Trata-se de uma boa notícia para o exército de apaixonados, que na Itália tem em suas fileiras 88% dos jovens entre os 14 e 19 anos. Também os adultos gostam de jogar com o computador: são 18 milhões de usuários, dos quais 40% são mulheres.


Os chamados serious games têm por objetivo educar através de um processo pedagógico, prevendo que o jogador entenda, com a experiência transmitida pelo jogo, a dimensão dos problemas tratados. Existem games que levam os jogadores ao centro de uma emergência humanitária, ficando responsáveis pela escolha da alimentação, a logística e a distribuição da ajuda. Outro trata do conflito Israel-Palestina. Nesse caso, pode-se escolher ser o presidente palestino ou israelense, mas os objetivos mudam: intervir diretamente e terminar com o conflito. Há outros games bem interessantes: o do inventor, em que os jogadores aprendem a utilizar objetos que encontram durante um percurso para criar instrumentos úteis aos personagens que passam pelo jogo. Tem diversos níveis de dificuldades, segundo a idade dos participantes. Em Quebra-Cabeças da África, os jogadores aprendem a divisão geopolítica do continente, construindo um mapa como se fosse um quebra-cabeças: respeitando um orçamento, criam uma dieta equilibrada para a população, individualizam as áreas de emergência e organizam ajuda.


Passar duas horas por dia jogando no computador essa nova modalidade de game não significa ser dependente. A boa mudança é a chegada de uma revolução ética nos videogames.

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Jornalista