Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Preto, branco e muito cinza

Treze de Maio é uma efeméride duplicada. E talvez duplamente equivocada. Nesta data, em 1888, foi assinada pela princesa Isabel a Lei Áurea, que aboliu a escravidão. Em 1808, oitenta anos antes, no dia do seu aniversário, o regente D. João criava a Impressão Régia e colocava o Brasil na Era Gutenberg. Deixávamos a escuridão e as trevas.


A importância da Lei Áurea é discutível mesmo entre os historiadores não-revisionistas. Grande parte das lideranças negras prefere lembrar como Dia da Consciência Negra o 20 de novembro (de 1695), quando o líder rebelde Zumbi dos Palmares foi executado impiedosamente.


As controvérsias em torno da criação da Impressão Régia são menos dramáticas. Sua importância é pacífica. Mesmo que o primeiro impresso autorizado tenha sido um rol de despachos oficiais emitidos pela Coroa portuguesa, recém-instalada no Rio de Janeiro. Mesmo que a nossa entrada na Era Gutenberg tenha ocorrido cerca de 358 anos depois da impressão da Bíblia de Mainz. Mesmo que o Brasil, a exemplo de Portugal, tenha sido um dos últimos em seu continente a permitir a impressão de papéis e livros. Convém lembrar que os primeiros livros impressos em Portugal foram tratados religiosos em hebraico (1487); os tipos móveis com caracteres latinos só apareceram oito anos depois.


Bondes perdidos


Pouco depois de instalados os prelos que por acaso estavam encaixotados nos porões da nau ‘Medusa’ que trouxe a corte de Lisboa, o gaúcho Hipólito da Costa, patriarca do jornalismo brasileiro, exilado em Londres, não se deixou influenciar pelo otimismo e comentou no seu Correio Braziliense: ‘Quando se põem obstáculos e entraves ao progresso e à propagação das ciências, devem ficar tão raros os homens sábios que, quando o governo precisa deles, não os acha e vê-se obrigado a lançar mão de um homem instruído, porém sem boa moral. Ou de um homem bom, mas estúpido ou ignorante. Quanto menor é o número de gente instruída, menos probabilidade há de que o Estado seja servido por homens virtuosos e sábios.’ Estamos em 1808 ou 2008?


A América foi descoberta em 1492 e a primeira tipografia foi instalada no continente apenas 47 anos depois, na Cidade do México. O Brasil foi descoberto em 1500, porém a nossa primeira tipografia foi instalada 308 anos depois. Este brutal atraso não é irrelevante, inofensivo ou inconseqüente – deixou marcas profundas nas instituições, na cultura e nas mentalidades. Além de proibir a impressão de livros, folhetos e periódicos, a Santa Inquisição também proibia a circulação de livros estrangeiros.


Perdemos o bonde do Renascimento por causa do calendário e do relógio, mas o bonde do Iluminismo foi perdido por vontade própria quando nos resignamos aos caprichos da censura religiosa, que nos manteve alheios às fontes da Revolução Americana e Francesa.


O processo tipográfico


Estes são episódios que se incorporam ao DNA de uma sociedade. A longa convivência com preconceitos e arbítrios engendra desvios comportamentais difíceis de corrigir e superar. Banida a Inquisição, mantiveram-se agarrados ao poder político outros organismos igualmente perniciosos e ilegítimos. Atravessamos períodos de plenitude democrática – como agora – mas a percepção de que o poder deve ser transitório, controlado e distribuído equitativamente não consegue ser digerida. A percepção de que a coisa pública não é um bem particular ainda não conseguiu ser devidamente assimilada.


Nosso pecado original não foi causado por uma maçã, mas pela contínua ingestão de drogas que corrompem nossa capacidade de discernir o que é correto e decente. Da Impressão Régia saíram os documentos oficiais que as autoridades precisavam emitir para avisar quem estava no poder. E saíram também centenas de obras científicas, filosóficas e políticas de suma importância. Em matéria de quantidade e volume, nosso atraso talvez tenha sido superado. O diagnóstico que salta aos olhos é que ao longo destes 200 anos não conseguimos nos acostumar com a extrema definição do processo tipográfico.


A tinta negra sobre o papel branco impõe um padrão de nitidez que não admite tantas e tão encardidas áreas cinzentas.