Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quando o debate deixa de ter importância

Muitas pessoas, ao folhearem os jornais da segunda-feira (27/10), estampando os políticos vencedores do segundo turno das eleições municipais em boa parte do país, devem ter dado um suspiro de alívio. ‘Finalmente, acabou’, devem ter pensado, complementando em seguida: ‘Vou parar de me preocupar com isso’. Tal reação não estranharia ninguém; afinal, essa atitude é moeda corrente entre nós. Terminado todo o processo – ritual, como vamos defender adiante –, é hora de voltar à vida normal e esquecer os jingles irritantes e a interrupção do telejornal com a propaganda gratuita.

Ao agir assim, contudo, perdemos a chance de refletir não só sobre o nosso próprio comportamento político, como também sobre o papel da mídia nas eleições. O que defendemos, pois, é a necessidade de se discutir esse fenômeno, especialmente com ele terminado, já que um certo distanciamento temporal é sempre benéfico a uma análise que se tenta responsável. Alerto apenas que, se nos remetemos, nas linhas a seguir, a exemplos de jornais locais, isso se dá em virtude do nosso lugar de enunciação, impossível de se apagar ou esconder – o que não implica, contudo, que esse seja um fenômeno local. Ao contrário, estamos todos nós, brasileiros, impregnados nele.

Ninguém questiona a validade

Ritual é precisamente o melhor termo para caracterizar o processo a que chamamos ‘eleições’. É até relativamente fácil enumerar suas etapas – nas quais, indiscutivelmente, a mídia exerce um papel essencial. Começa sempre com os jornais (sobretudo os impressos) buscando a mínima declaração de possíveis candidatos para poderem afirmar que as eleições ‘foram antecipadas’; enquanto, simultaneamente, afirmam que o possível candidato do governo está ‘usando a máquina pública’ para se promover.

Em seguida, começa a cobertura das agendas dos políticos e um critério ‘técnico’ se sobrepõe ao jornalístico: são contados minimamente os espaços para cada candidato – seja em termos gráficos, no impresso, ou de tempo, na televisão e no rádio –, na tentativa de garantir aquela tal da ‘imparcialidade’ que só é vendável ainda no Brasil. Mas o corolário do roteiro todo é o tão famoso e aguardado (ao menos por quem vai promovê-lo) debate na TV.

É, pois, nos debates televisionados que se realiza todo o fetiche que as eleições têm para nós. É aqui que o ‘show da democracia’ – como muitos jornalistas gostam de afirmar, referindo-se ao dia mesmo da eleição – parece acontecer. De tão enraizado na nossa cultura política, poucos questionam a utilidade de tais debates. De tão sobejamente propagandeados – o Jornal Nacional, quando se trata das eleições presidenciais, chega ao ponto de exibir o making of do debate pouco antes de ele ser exibido – ninguém parece se perguntar sobre a validade deles. As emissoras se orgulham de exibi-los: a TV Clube, afiliada da TV Bandeirantes em Pernambuco, alardeava, em agosto último, que ‘saiu na frente’ e exibiu o primeiro debate (televisionado) entre os prefeituráveis na cidade do Recife.

Experiência cotidiana

A quem interessa o debate?

O questionamento é relevante, já que parece existir um paradoxo entre o culto a esses debates e a sua eficácia. A começar pela estrutura semelhante que eles em geral adotam. O apresentador do telejornal local comanda o programa, passando longos minutos explicando as regras do debate – e frisando, obviamente, que os assessores dos políticos concordam com todas elas. E ele as repete no começo de cada bloco. Normalmente, o tempo destinado a cada candidato (numa disputa em primeiro turno) varia entre dois e cinco minutos. Nunca mais que isso.

Eis um ponto importante. Não haveria algo errado aí? Enquanto passamos um bom tempo decorando as regras do jogo (ou seja, engolindo uma suposta ‘neutralidade’ da emissora), os políticos praticamente mal conseguem dizer três frases. Enquanto a emissora se vangloria pelo debate em si mesmo e se auto-propagandeia a cada oportunidade, mal podemos ver realmente um debate de idéias.

Mas seria fácil e simplório demais culpar as emissoras. Se a cada instante o apresentador nos lembra que todos concordaram com as regras que ele não se cansa de repetir; se a todo momento essa idéia de ‘imparcialidade’ devida a métodos tão racionais nos é empurrada garganta abaixo, é porque, em certa medida, pedimos por elas. O que instiga a assistir um debate eleitoral na TV não é a necessidade de contrapor idéias (aparentemente) contrárias – isso, afinal, pode ser feito no guia eleitoral – mas a vontade quase irresistível de ‘vigiar’ os candidatos, acompanhá-los para ver se eles seguem as regras e se a emissora em questão não favorece algum deles.

Recorrer à experiência cotidiana aqui é quase inevitável. Todos conhecem os comentários feitos no momento em que se assiste a um debate eleitoral na TV. ‘Olhe a maneira como o apresentador se dirigiu ao candidato X. É óbvio que ele prefere Y’. ‘O quê? Ninguém atacou ninguém ainda?’ ‘A fala dele foi cortada no meio!’ (e quem, afinal, assistiu ao debate na TV Globo no primeiro turno das eleições de 2006, com outro objetivo senão verificar se Lula compareceria ou não?). É isso que se espera de um debate.

Participação mecânica, impensada

É quase um consenso implícito o fato de que nenhum candidato vai apresentar algo diferente do que disse no guia eleitoral. A novidade ali é a possibilidade de haver ofensas diretas, olho no olho. Implicitamente, é isso que se espera. Quando não acontece algo assim, diz-se que o debate foi ‘morno’ (como nas capas do Jornal do Commercio e da Folha de Pernambuco do dia 29/08, referindo-se ao debate entre os prefeituráveis do Recife) e que os candidatos têm ‘medo de se arriscar’ (capa do Diário de Pernambuco do mesmo dia). Apenas para efeito de comparação, embora não se trate de um debate televisionado: o primeiro encontro entre os postulantes à Prefeitura do Recife, na Universidade Católica de Pernambuco, em 25 de agosto, terminou em tumulto e acabou ganhando destaque na primeira página do principal jornal do estado, no dia seguinte.

Tanto é assim que o interesse dos jornais, após os debates, não é avaliar as propostas ‘debatidas’ pelos candidatos. O que importa, o que faz a festa de jornalistas e comentadores políticos, é cair em discussões vazias e sem sentido sobre quem ‘venceu’ o debate. E, posteriormente (eis mais uma etapa do nosso ritual), quando da divulgação da primeira pesquisa eleitoral após o debate, tais jornalistas e comentadores erigem sua opinião sobre o vencedor e o perdedor como critério de interpretação da pesquisa. Se o candidato ‘A’ está na frente, é porque venceu o debate; ou ele está na frente apesar de ter perdido o debate – não se discute, contudo, a validade de tal interpretação sobre vencedor e perdedor.

É realmente um paradoxo. Os debates na televisão proliferam cada vez mais e cada vez menos informam. Essa situação não é inteiramente nova, e já foi percebida há algum tempo por emissoras que buscam uma alternativa a essa prática. A TV Cultura, por exemplo, costuma realizar entrevistas individuais com os candidatos a presidente do país. São encontros, ‘conversas’ que, por sua própria natureza, afastam os que estão apenas interessados em buscar o ‘vencedor’, em esperar o ataque verbal ao vivo. Talvez por isso mesmo não ganhe tanto destaque nas outras mídias quanto o debate na TV.

É uma fórmula (quando bem dirigida e conduzida, obviamente) que permite um maior aprofundamento de idéias e propostas e pode contribuir para um maior conhecimento do candidato por parte do eleitor. Se esse expediente fosse popularizado, talvez diminuíssem os debates vazios que cercam as eleições brasileiras e nosso ritual pudesse ser quebrado. E de rituais, como bem se sabe, se costuma participar de forma mecânica, impensada.

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Estudante de Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE