Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reflexões de um engenheiro ciberpunk

Não sei se sou eu que cada vez mais enxergo o mundo pelo ponto de vista de um engenheiro eletricista, ou se é realmente uma afortunada seqüência de eventos, mas nos últimos dias tenho sentido que cresceu muito o número de notícias importantes na imprensa que envolvem minhas áreas de estudo.

A maioria destas notícias envolve o uso de tecnologias chamadas ‘digitais’ para substituir equipamentos de eletrônica analógica tradicional. É o caso da TV digital, da telefonia digital, do voz por IP, do banco via internet, e-mail, Orkut. Boa parte destes assuntos está sendo coberta pela imprensa, e até pelo seu (e nosso) Observatório.

O objetivo deste artigo é discutir a forma como a imprensa tem tratado os assuntos, e principalmente criticar a maneira como estão sendo conduzidos os debates sobre a TV digital e, mais recentemente, sobre a mudança na forma de tarifação da telefonia fixa. Também é possível fazer um paralelo de todos estes problemas com importantes questões maiores ligadas à imprensa.

Menção honrosa

Todos sabem o enorme impacto que a eletrônica moderna está trazendo às nossas vidas. Basta ler o artigo sobre o ‘efeito Katilce’ de Edilton Siqueira (‘Efeito Katilce, primeiras impressões’) para ver como a potência destas novas ferramentas ainda não foi bem assimilada por nós. Entretanto creio que a imprensa brasileira não está cumprindo muito bem seu papel nesta revolução.

Parte da minha insatisfação vem, em primeiro lugar, de pequenos deslizes que alguns repórteres cometem em seus textos. São erros às vezes tão desagradáveis quanto os mencionados por Rolf Kuntz em outro recente artigo aqui no OI (‘Quelle língua ist this one?’) sobre jornalismo econômico. Outros deslizes são até mais inocentes, e claramente se devem à dificuldade que qualquer cidadão ainda leigo têm ao entrar no mundo da engenharia.

Por exemplo, no outro artigo que citei, o autor colocou as redes de TV ao lado das ‘redes de relacionamento’. Não acredito que os mencionados ‘estudiosos da comunicação de massa’ concordariam em que elas sejam tão parecidas. Outro fato incômodo foi o uso do termo ‘exponencial’ para caracterizar um fenômeno de crescimento ‘muito rápido’. Este termo é meio que sagrado para engenheiros, e não gosto de vê-lo usado de forma leviana. Apesar dos crescimentos exponenciais serem muito comuns na natureza (ocorre no débito de qualquer endividado), mencionar o termo é uma afirmação científica, e demanda evidências.

Outro pequeno erro que vi recentemente nos telejornais foi o uso do termo ‘hacker’ para designar um vigarista qualquer que aplica um golpe fazendo uso de computadores. O termo é utilizado no meio computacional para designar pessoas com muito conhecimento técnico, principalmente quando este foi conseguido de forma autodidata e com algumas doses de engenharia reversa… Menção honrosa ao Jornal da Globo, que não usou o termo nem mesmo para designar o programador que trabalhava para um bando preso recentemente.

O problema na escolha

Este tipo de pequenos deslizes parece muito inocente… Dá sabor técnico aos textos e parece informar bem o que está ocorrendo, mas eu pessoalmente creio que esta quase imperceptível falta de rigor técnico e científico é extremamente danosa à informação e à instrução dos leitores. Numa conjuntura em que estamos mais atentos ao analfabetismo funcional do que ao analfabetismo estrito, deveríamos nos preocupar muito com a desinformação espalhada pela falta de rigor nas notícias mais técnicas. Existem muitas coisas que aprendemos de forma lenta, vendo um certo termo sendo empregado em diferentes notícias de jornal, por exemplo. Se os termos não são utilizados de forma correta, este importante aprendizado ‘por osmose’ fica comprometido.

Outra fonte de angústia minha com relação à imprensa é bem menos sutil. É quando informações técnicas que me parecem cruciais para o entendimento de determinadas questões são omitidas das notícias. É o que acho que está acontecendo hoje nas discussões sobre a TV digital e a telefonia, e creio ser um elemento muito importante na defesa do povo contra interesses de grupos políticos pouco auspiciosos.

O assunto do padrão de TV digital a ser adotado está na roda há pelo menos uns dois anos, e até hoje não consegui montar na minha cabeça qual exatamente é o problema na escolha entre os padrões americano, europeu e japonês! Eu ando até questionando a minha competência como engenheiro. Será que eu não consigo sair da academia para cair no ‘mundo real’? Ou seria a imprensa que não está veiculando as informações necessárias para diagnosticarmos o problema?

O dito pelo não-dito

Como grande interessado no assunto, poderia ter ‘ido atrás da informação’ desde quando o assunto começou, mas acabei postergando por falta de tempo… Acabei dependendo somente da imprensa, portanto, o que acabou virando um grande teste para mim. Além de ter dado uma ocasional lida em jornais e de assistir a telejornais quase diariamente, busquei notícias em sítios de internet nacionais, e vi o Roda Viva e o OI na TV em que o ministro Hélio Costa compareceu.

Na abertura daquela edição do OI, nosso prezado Alberto Dines alertou sobre a existência de ‘uma discussão política e institucional’ muito relevante, mas também disse que ‘esta é uma questão muito técnica’. Meu problema é que eu não creio ser justo querer trazer à população esta questão do embate entre os padrões, mas deixar de veicular as informações necessárias para que se realize um debate útil sobre o assunto! O resultado é que as pessoas iniciam uma discussão de alto nível falando em ‘escolha de padrão’, quando na verdade elas queriam uma discussão de baixo nível, sobre ‘o que é que nós queremos’ (onde ‘alto e baixo nível’ tem o sentido da engenharia). O cerne de toda a questão da implementação digital não é uma escolha entre padrões pré-fabricados que caíram do céu, mas sim decidir como nós queremos redistribuir o espectro de freqüências entre os canais de TV.

Eu até percebi um esforço em discutir o que realmente importa no OI quando o competente economista e tocador de cavaquinho Luís Nassif levantou questões a respeito de características básicas do sistema japonês. Naquele momento achei que começaríamos a ver o assunto de forma clara e sistemática, mas nada se explicou! O mesmo ocorreu a respeito da ‘entrada de centenas de novos players‘. Ao final do programa, ficou o dito pelo não-dito. O receio da imprensa em entrar nos detalhes técnicos das questões acaba sendo danoso ao debate, porque vira tudo um bate-boca metafísico, carregado de retórica e carente em dialética. É nesse cenário que interesses políticos podem guiar de forma furtiva o grande timão da nação. Como pode haver uma defesa de interesses populares se a população desinformada nem mesmo entende muito bem quais poderiam ser seus interesses?

Atenção a pesquisadores

Frustrado com minha duradoura desinformação, tentado a rasgar meu diploma que nem ainda me foi entregue, resolvi ‘ir atrás’ da informação, e já consegui sanar uma porção de dúvidas depois de rápidos acessos a sítios da internet, como a Wikipédia. Alguns artigos mais obscuros entretanto, chegaram sim a trazer informações relevantes. Um raro momento de ilustração me ocorreu ao ler a entrevista de Fernando de Castro a Eduardo Lorea (‘O padrão nacional que o ministro descarta’). Naquele artigo, talvez técnico demais para o leitor casual, foi mencionada a questão dos ‘fantasmas’, e como as modulações utilizadas na transmissão digital tentam sanar este problema. Eu gostaria, entretanto, de ver uma entrevista um pouco mais voltada para o público leigo, na qual seria explicado que na transmissão digital as reflexões não causam aquele fantasma na imagem que todos conhecemos, mas sim um tipo muito diferente de perda de qualidade… É nessas pequenas afirmações que vai ocorrendo aquele aprendizado de longo prazo que eu tanto estimo.

Outro aspecto importante do artigo é exatamente o seu cerne, a questão da possibilidade de serem utilizadas modulações um pouco mais modernas do que as presentes nos três padrões digladiantes. Outra inovação que o Brasil poderia fazer é na codificação, utilizando o MPEG-4/H.264 como foi mencionado por Ricardo Lopes de Queiroz em outro artigo veiculado aqui no sítio do OI (‘Comissão Geral mostra que a sociedade está dividida’, de Ana Rita Marini). Seria muito interessante ver a imprensa dar atenção a estes pesquisadores, principalmente para mostrar como os três padrões são parecidos quando comparados a estas possibilidades.

João-sem-braço

Mas o mais importante ainda é que consigamos inverter o debate, ou ao menos que criemos um debate paralelo, para podermos abordar a questão ‘de baixo para cima’. Precisamos discutir aberta e amplamente como seriam outras alternativas aos padrões, nem que simplesmente como sonho de engenharia. Eu sonho, por exemplo, em fazer uma grandiosa reformulação de toda a alocação de faixas de freqüência do Brasil e do mundo, para substituirmos tudo por redes sem-fio veiculando uma grande inter-rede com protocolo IPv6. Começaríamos jogando no lixo os canais de 6GHz das televisões atuais. Essa rede poderia ser utilizada para TV, voz por IP e tudo o mais que já fazemos na internet. Discussões sobre a implementação de algo assim podem ter um pé na ficção científica, o que não é nada ruim, mas são exatamente o oposto do que se está vendo por aí.

O que eu tenho visto são grupos tentando faturar com a desinformação. Às vezes fica parecendo é que não há engenheiros envolvidos nas discussões, e todos os lados do debate são travados por pessoas sem nenhum conhecimento técnico, enquanto na verdade eu acho que cada parte está tentando aplicar o ‘golpe do joão-sem-braço’ nas outras. O que acontece é que cada membro da discussão está tentando manipular os outros na base da desinformação, tentando ‘jogar verde para colher maduro’, esperando para ver se os oponentes ‘engolem’ sem querer uma decisão que o beneficie.

No mínimo, risíveis

Outra coisa é que estou sentindo que algumas pessoas estão tentando taxar o padrão japonês como ‘de direita’, e o padrão europeu como ‘de esquerda’, numa atitude que poderia talvez fazer nosso valoroso Dines exclamar que ‘leviandade tem limite!’. O verdadeiro discurso libertário/progressista ou o que for é questionar abertamente os modos de produção vigentes, e botar os pingos nos is. Não é fingir que houve um debate entre ‘grandes cabeças’ em algum café subterrâneo e ignoto, onde essas pessoas ‘pensaram o Brasil para daqui a 20 anos’, e decidiram que este ou aquele padrão importado é a melhor escolha para todos nós.

Outra briga ‘federal’ que está ocorrendo hoje é o caso da mudança na forma de cobrança do serviço de telefonia fixa. As notícias dão a impressão de que, de repente, alguém ‘descobriu’ que a mudança aumentaria o preço de ligações de longa duração…

Eu considero as manchetes no mínimo risíveis. Será que esse país realmente carece tanto de engenheiros que o Ministério das Comunicações foi incapaz de fazer uma simples conta de divisão, e conferir se o preço por minuto cobrado após a mudança não seria o mesmo? Quem foi que estabeleceu aqueles preços previstos, afinal? Considero que o caso é importante, visto que dói no órgão mais sensível do corpo humano: o bolso. Entretanto, a cobertura dada pela imprensa foi ingênua, se não irresponsável. As ruas estão cheias de pessoas angustiadas a respeito da futura mudança, e já existem empresas fazendo anúncios prometendo maravilhas, demonizando a cobrança por impulsos como se fosse a versão contemporânea do ‘quinto’ da coroa portuguesa que valeu a cabeça de Tiradentes.

O que realmente importa

A única pessoa de quem ouvi uma explicação mais aprofundada da questão da cobrança por impulsos foi uma comentarista da CBN que mencionou o fato de o primeiro impulso (além do cobrado por ligação) se dar num instante aleatório. Mesmo assim ela não explicou de que forma a mudança para cobrança por minutos faria com que o consumidor de ligações curtas fosse beneficiado em detrimento do que faz ligações longas.

Outros noticiários variaram do carente de informação ao deturpado (falando por exemplo que o impulso aleatório segue uma distribuição ‘normal’ em vez de ‘uniforme’, como é o caso), e até ao carnavalesco, como um sítio que noticiou que ‘cobrança em pulsos tem pontos obscuros e variáveis arbitrárias’. Não acho que algum noticiário que vi tenha aproveitado o mínimo aceitável da nota disponível no sítio da Anatel sobre o assunto…

O que me deixa irritado é que ninguém parece perceber que a forma da cobrança tem pouco ou nada a ver com os aumentos preditos por alguém e publicados na imprensa. Se o preço do minuto tivesse sido calculado dividindo-se o preço do impulso por quatro, o gasto dos usuários mudaria muito pouco. O que acontece é que alguém apareceu com previsões de preço extremamente altos. Não tem nada a ver com a técnica de tarifação, mas simplesmente com as variáveis que importam ao consumidor: o preço por minuto, por chamada, e o pagamento mínimo mensal. Mais uma vez, seria útil que a discussão começasse ‘por baixo’. Em vez de disputar entre dois padrões que caíram do céu, devíamos debater o que realmente importa: deve haver custo fixo por ligação? Deve haver tarifação diferenciada dependendo do perfil de uso? Qual deve ser o mínimo mensal? E por último: realmente importa se a medição é exata ou se é uma inocente aproximação estatística?

Enciclopédia ou dicionário

Entretanto, como a população demoniza o impulso por não ser algo muito óbvio, a imprensa por sua vez demonizou os impulsos, criando a manchete escandalosa da semana, seguindo ainda aquele argumento de que a imprensa deve seguir os interesses do povo… Aí o povo é novamente instruído a demonizar ainda mais o pobre método Karlsson, e o ciclo vicioso continua em sua realimentação de ódio.

Todas estas discussões servem como porta para questões muito mais amplas e genéricas. A falta de rigor científico é vista diariamente na imprensa, em assuntos que muitos acreditam não ter relação com a lógica, mas têm, e muito. Os recentes casos de corrupção, por exemplo: raramente é possível encontrar um artigo que realmente explique por inteiro como se cometem os crimes de corrupção. É quase impossível hoje que um lamentável cidadão que resolva seguir uma carreira de crimes compreenda pelos jornais como ele deve agir para se tornar um corrupto. Da mesma forma não compreendemos completamente como a justiça é feita (quando não são ‘julgamentos políticos’).

Outro problema é compreender até que ponto a imprensa realmente deve servir como uma repetitiva enciclopédia ou dicionário… Até que ponto os jornais devem fornecer informações sobre fatos recentes, e veicular ainda informações sobre conhecimentos gerais relevantes àqueles assuntos? O jornal precisa mesmo entrar nos detalhes de como os crimes são cometidos, ou basta apenas tirar fotos das pessoas na cadeia? Basta dizer quem está em guerra esta semana, ou seria preciso lembrar um pouco mais, colocar um quadrinho pequeno no canto da página 5, com um pequeno histórico relembrando conflitos relacionados nos últimos 200 anos?

Parece utopia

E quanto aos debates que a imprensa começa acompanhando, e depois promovendo: creio que foi Nietzsche quem disse que boa parte das discussões que temos em nossas vidas se deve ao fato de os dois pontos de vista estarem na verdade atribuindo significados diferentes a uma mesma palavra. O jornalismo que noticia discussões sem estimular uma resolução de conflitos pela análise calma das coisas não contribui em nada para a evolução da sociedade.

A teoria da ciência e epistemologia estão em muitos lugares do dia-a-dia, especialmente na política. No século passado tivemos um grande filósofo da ciência, Karl Popper, que sonhou com sua ‘sociedade aberta’ tomando emprestada a mesma clareza de raciocínio e rigor científico que utilizou em sua (aparentemente) outra área de estudo. Um jornalismo que pretenda lutar por aquela forma de sociedade talvez precise começar prestando atenção ao pensamento científico organizado, e este começa sem dúvida nas notícias de cunho técnico e científico.

Entretanto, enquanto for permitido que ‘focas’ se tornem papagaios, o próprio ato de levantar questões desta importância parece utopia…

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Engenheiro eletricista pela UFMG, aluno de mestrado na Unicamp