Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Reuters admite manipulação de fotos

Não demorou muito para as primeiras cortinas caírem e revelarem bastidores constrangedores na cobertura dos conflitos do Oriente Médio. Veio a público na segunda-feira (7/8) que o fotógrafo libanês Adnan Hajj, free-lancer da agência Reuters, é autor de não uma, mas pelo menos duas fotografias comprovadamente manipuladas. Hajj, baseado em Beirute, assumiu ter alterado suas fotos com uso do programa gráfico Photoshop.


Constrangida, a agência de notícias retirou todas as fotos do infrator de seu banco de dados, encerrou o contrato com o fotojornalista e instituiu um ‘procedimento de edição mais elaborado’ para a cobertura do conflito Israel-Hezbollah após o que a própria agência chamou de ‘a mais grave infração de padrões da Reuters’.


Uma das imagens (clique aqui para visualizar) mostrava rolos de fumaça negra saindo de prédios da capital libanesa após ataque aéreo de Israel. A manipulação consistiu em intensificar a fumaça e a destruição dos locais afetados. Ao descobrir a infração, a Reuters começou a investigar outros trabalhos do fotógrafo e encontrou mais uma imagem adulterada. Desta vez, um caça F-16 israelense sobrevoando o sul do Líbano foi modificado para que o número de mísseis sendo lançados aumentasse de um para três.


A Reuters tem 920 fotos de Hajj em seu banco de dados, das quais 43 são do conflito iniciado em 12 de julho. Embora afirme que duas manipulações não significam que todas as imagens foram alteradas, a agência julgou prudente retirar de circulação todas as fotos do infrator. Segundo apurou Julia Day [The Guardian, 7/8/06], a partir de agora apenas editores seniores poderão pôr fotos do conflito no Oriente Médio na pasta de imagens global da Reuters.


Apenas o começo


Agora que ficou clara a possibilidade de chegar ao público uma verdade distorcida pela mídia corporativa, algumas informações também estão sendo ‘corrigidas’. A CNN, por exemplo, informou na segunda-feira (7/8) que, ao contrário do que disse o primeiro-ministro libanês Fouad Siniora, em discurso reproduzido pela emissora e diversas outras estações do mundo, houve apenas um, e não ’40 mortos’ em um ‘massacre horrendo’ ocorrido no vilareho de Houla, ao sul do Líbano. Convenhamos que errar em 39 de um total de 40 baixas é um tanto exagerado para ser relevado.


Erros como esses começarão a ser descortinados à medida que um verdadeiro exército de blogs e páginas independentes na internet se dedicam a escarafunchar o trabalho da grande mídia e, para desespero desta, recebem destaque e atraem o público. Basta visitar um deles para obter links para todos os outros, numa verdadeira ‘teia-cidadã’.


Mais uma vez, o jornalismo-cidadão


Após o blog britânico EU Referendum denunciar irregularidades no uso de fotos da Associated Press, o autor do furo de reportagem envolvendo as manipulações das fotos da Reuters foi outro blog, desta vez o americano Little Green Footballs, que a partir de minuciosa pesquisa descobriu as manipulações perpetradas pelo fotógrafo da Reuters.


Segundo reportagem de Sheera Claire Frenkel [The Jerusalem Post, 6/8/06], Charles Johnson, colaborador regular do blog, disse que as evidências de manipulação eram gritantes. ‘Note a repetição na seqüência da fumaça. Isso é coisa da ferramenta ‘clone’ do Photoshop’. A questão que fica no ar é como a Reuters deixou passar uma ‘barriga’ dessas, uma vez que a alteração é identificável por qualquer fotógrafo, ou mesmo por leigos.


Com poder de fogo bem menor, sítios pessoais e alternativos declararam guerra à mídia de massa desde o começo do conflito, alegando que esta não está cumprindo seu papel de informar eventos como eles realmente são. Com mais esta descoberta, o jornalismo-cidadão ‘multipontual’ venceu o singular, alienante, centralizador e unidirecional.


Encontrar duas imagens manipuladas, contudo, não significa que a guerra toda é encenação. Significa apenas que o que chega até o público nem sempre é a realidade, e que, nos tempos que correm, acreditar cegamente na grande mídia para saber o que se passa no Oriente Médio é tão ingênuo quanto achar que o conflito está perto do fim.


Àqueles que ainda não entenderam que blogs e páginas pessoais podem ser mais sérios do que a grande mídia, e para os que acham que adulteração de imagens só acontece em livro de ficção, está na hora de rever conceitos.


Comentários


Artigo da edição anterior deste Observatório (‘O mistério do homem do capacete verde‘) gerou muitos comentários. Alguns, apaixonados demais, não merecem resposta posto que partiram claramente de pessoas que não leram o artigo até o fim, ou que simplesmente não sabem bem do que estão falando. A maioria, para minha surpresa, levanta debates interessantes – apesar de que ninguém, ao que parece, se deu ao trabalho de examinar foto por foto no citado blog EU Referendum.


Ousaria remetê-los às teorias da comunicação como a semiótica para tentar desenrolar o novelo e demonstrar os mitos maniqueístas embutidos na nossa sociedade, mas decerto afugentaria os leitores. Importa que este é um Observatório da Imprensa e, embora a criança morta na foto cause indignação e entristeça, meu foco é a análise da mídia, em particular a capacidade de manipulação que a mídia tem sobre o público – lembrando que infelizmente a maioria das pessoas apenas a observa passiva, sem questionar a mídia, como se esta fosse realmente capaz de só falar a verdade.


Vimos mais de um exemplo na história do jornalismo de como erros ou mesmo fabricações infames acabaram mudando o rumo de situações. Jayson Blair, Stephen Glass, entre outros mais ou menos famosos, descobertos ou não, não me deixam mentir. Já publiquei neste Observatório uma nota sobre um repórter americano no Iraque que descreveu, embasbacado, a experiência de ter saído de uma ‘excursão’ pelos escombros de uma vila atingida para tirar fotografias. Quando percebeu, a caravana de jornalistas já havia ido embora, e foi então que o homem morto jogado ao chão levantou-se e saiu andando tranqüilamente.


Ninguém pode dizer que sabe o que está acontecendo no Oriente Médio. Nomes supostamente sérios da grande mídia, como Nic Robertson da CNN, entre outros, acabam de confessar que o Hezbollah manipulou suas equipes em Qana e outras áreas atingidas, como mostra esta edição do OI (‘Cobertura da BBC na mira dos críticos‘). É também do interesse de Israel ter o público a seu favor – mas, até onde pude apurar, Israel não se propôs a manipular equipes e imagens para fazer com que seu lado da história seja contado a seu gosto. (Não quero dizer que acredito piamente no que se reporta de Jerusalém ou Tel Aviv, mas que devemos ouvir/ver/ler notícias sempre com a coceira da dúvida).


Até pró-Hezbollah confessos como David Miller, colaborador regular do Media Lens e conhecido crítico de Israel, afirma que a mídia está cada vez mais tendenciosa na cobertura do conflito no Oriente Médio. ‘Se dependermos apenas na grande mídia, não entenderemos o que está acontecendo’, disse, em artigo ao Socialist Worker Online. ‘Trata-se de uma dieta de mentiras não-diluídas (…). A tendenciosidade não costumava ser assim escancarada.’


O jornalista Luiz Weis, em post no seu blog Verbo Solto, neste OI, afirmou:




‘Assim como os defensores das condenáveis políticas israelenses costumam acusar os seus críticos de serem anti-semitas, para desqualificá-los, há quem reaja às atrocidades de Israel, como na repressão às revoltas nos territórios palestinos ocupados e na atual agressão ao Líbano, externando opiniões anti-semitas igualmente torpes.’


Distorcer imagens e informações é dos crimes mais graves que se pode cometer na mídia, senão o pior de todos. Existe uma guerra muito cruel e injusta, que mata centenas de civis dos dois lados. Mas o foco aqui não é a guerra em si, mas a mídia, nossa única conexão com o que acontece do outro lado do mundo. Observemos como nossas principais fontes de informação saíram lamentavelmente do palco para a platéia.