Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ruídos lingüísticos (com trema, por enquanto)

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi assinado em 1990 para uniformizar o registro escrito nos oito países que falam o idioma: Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, Timor Leste e São Tomé e Príncipe.

A implementação do acordo, adiada diversas vezes desde 1994, poderá ocorrer a partir de janeiro de 2008 nos três países da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP) que já ratificaram o protocolo: Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

Facilitar o processo de intercâmbio cultural e científico entre os países e garantir a divulgação mais ampla do idioma são os principais objetivos da unificação ortográfica que, entre outras decisões, elimina o acento circunflexo em palavras paroxítonas terminadas em ‘o’ duplo (como ‘vôo’ e ‘enjôo’), extingue o trema e inclui as letras K, Y e W no alfabeto.

Para o Ministério da Educação brasileiro, a divergência de ortografias do português prejudicaria sua divulgação e prática em eventos internacionais. As mudanças necessárias em livros escolares e arquivos de editoras seriam compensadas pela atenuação do alto custo da produção de diferentes versões de dicionários e livros.

‘Ninguém ganha…’

Mas a resistência é grande em alguns meios, principalmente em Portugal, onde haveria o maior impacto na língua – com o acordo, desaparecem o ‘c’ e o ‘p’ não pronunciados, como em ‘acção’ e ‘baptismo’. Os portugueses precisarão também trocar a grafia de ‘húmido’ por ‘úmido’.

Para alguns especialistas, a reforma traria benefícios desproporcionalmente pequenos em relação às dificuldades que representaria. ‘Em uma reforma, ninguém ganha e muitos perdem’, afirmou Luiz Carlos Cagliari, professor do departamento de Lingüística da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara.

Para o professor, a reforma é desnecessária e se fundamenta em um grande desconhecimento da natureza, das funções e dos usos da ortografia. Especialista em fonética e fonologia, Cagliari publicou 11 livros e atua na pesquisa em sistemas de escrita, prosódia, ortografia e na história da ortografia da língua portuguesa.

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Há base científica para as modificações contempladas pelo acordo?

Luiz Carlos Cagliari – As reformas ortográficas têm sido feitas sem o conhecimento científico do que vem a ser a ortografia. Desse erro original deriva uma série de equívocos. Mas a questão fundamental não é se as mudanças serão feitas em determinadas regras. O fundamental é saber se há necessidade de mudança. Os argumentos dados para justificar uma reforma como essa são, em geral, falhos.

Poderia dar exemplo desses argumentos?

L. C. C. – Um deles é ‘facilitar o uso da língua’. Mudar a ortografia não facilita a vida de ninguém porque a ortografia não representa a fala de ninguém. É simplesmente uma representação gráfica que permite a leitura. Não vou ler Camões na pronúncia dele, mas na minha. Como todos fazem isso, a ortografia não representa a pronúncia de ninguém.

A unificação não facilitaria a comunicação diplomática entre os países?

L. C. C. – Unificar a ortografia é um equívoco. Apesar de seguir regras de uso, tiradas de uma tradição, a ortografia, como a linguagem em geral, sofre transformações no tempo e no espaço. A história da ortografia mostra que a escrita se transforma continuamente. Veja, por exemplo, os corretores ortográficos dos computadores, que apresentam variação de opções de ortografias regionais para línguas como o inglês e o francês, ambas tradicionais. O inglês tem uma ortografia britânica e outra norte-americana, ambas tradicionais. Então, por que precisamos ter apenas um modelo? O problema diplomático atinge somente a língua portuguesa? Ou é um falso problema?

Alguns críticos dizem que a reforma forçará uma mudança em todos os livros didáticos, dicionários e arquivos de editoras, mas que seria uma reforma superficial, que não chegaria a cumprir o objetivo de padronizar a língua.

L. C. C. – A idéia de simplificar a ortografia é uma ilusão desse tipo de reforma ortográfica. Talvez a única simplificação seja a abolição do trema – que ainda terá exceção. Isso não representa grande coisa. Na realidade, não precisaríamos de sinal algum além das letras. Nem acento, nem trema. O inglês não tem sinais diacríticos e não cria problemas aos usuários.

A reforma só faria sentido, então, se fosse mais profunda?

L. C. C. – Há grandes confusões nas bases ou regras da língua, com relação ao hífen, por exemplo. Poderia haver apenas uma regra que dissesse que as palavras compostas por composição levam hífen e as compostas por derivação não levam. O uso de acento gráfico em português também gera confusão. Há um número enorme de regras, todas desnecessárias, porque o falante sabe onde cai o acento nas palavras e quais vogais são abertas ou fechadas. Tirar uma regra ou outra não muda muito.

As dificuldades de implantação da reforma são grandes demais comparadas aos benefícios?

L. C. C. – Venho dizendo há décadas: o melhor é não mexer na ortografia, não fazer leis, deixar a tradição – recomendada pelos dicionários, gramáticas, vocabulários ortográficos – fazer sua história. Hoje, temos que lidar com e ler muitos documentos antigos, escritos em outras ortografias, e nada disso perturba, nem mesmo os juristas, que precisam desses documentos para se pronunciar em processos.

A ortografia deveria se basear na tradição e não em leis?

L. C. C. – Seria melhor. Os usuários agem da seguinte forma: ou sabem escrever – e o fazem com certeza – ou têm dúvidas. Nesse caso, não adianta pensar, a solução é olhar no dicionário e não ficar procurando regras nas gramáticas. As regras, estudadas apenas em alguns momentos da escola, ajudam. Mas, na hora da dúvida ortográfica, o que salva os usuários comuns não são as regras, mas o conhecimento de outros fatores, como a etimologia e a comparação.

Entre as mudanças propostas, quais o senhor considera mais impactantes? Nenhuma delas é imprescindível?

L. C. C. – Em uma reforma, ninguém ganha e muitos perdem. No caso desse acordo, nenhuma mudança sugerida é necessária. Poderíamos ficar com o que tínhamos e nada mudaria. A grande confusão veio quando resolveram transformar a ortografia em lei, um absurdo tão grande quanto o fato de terem tornado oficial uma nomenclatura gramatical brasileira. Uma aberração sem tamanho.

A maior resistência à reforma vem de Portugal. Por que isso ocorre? O senhor vê, como alguns, uma ‘brasilificação’ da língua com essa reforma?

L. C. C.– Estive em reuniões em Portugal com acadêmicos e escritores que discutiam a unificação. Eles acham a reforma totalmente desnecessária. De fato, esta reforma, ao contrário daquela feita na década de 1910, representa um gesto brasileiro contra a tradição da língua. Para uma pessoa culta, a escrita traz as marcas da pátria, da história, e isso fica prejudicado por leis que pretendem que todos sejam iguais.

A padronização tornará os livros atuais obsoletos?

L. C. C. – Isso é um problema que decorre, como todos os outros, de transformar a ortografia em lei, e não da reforma ortográfica em si mesma. Alguém poderia propor alterações na grafia das palavras e, se os usuários passassem a aderir, com o tempo viraria tradição, como sempre ocorreu. Se não for oficial, a ortografia pode aparecer de modos diferentes e os livreiros não precisam jogar nada no lixo. Nem precisaríamos jogar fora os livros escolares de nossas bibliotecas escolares porque estão com a ortografia errada.

Quem sofrerá maior impacto com a reforma?

L. C. C. – Os literatos sofrerão mais porque a ortografia também pode ter valor estilístico, como vemos em autores como Saramago. Por outro lado, em um país no qual grande parte da população não lê, uma reforma ortográfica vem perturbar apenas os letrados.

Tivemos reformas em 1919, 1943 e 1971. O português muda demais?

L. C. C. – Poderíamos ter seguido o exemplo das línguas francesa e inglesa que, apesar da longa tradição de brigas por reformas ortográficas, se mantêm há séculos sem grandes mudanças. Mas entramos em um caminho errado. Isso ocorre porque, para entender a ortografia, precisamos saber que a leitura não é transcrição fonética, nem semântica, portanto basta reconhecer na escrita o que o usuário fala. A ortografia foi criada para neutralizar a variação lingüística: não interessa se você fala ‘tia’ ou ‘tchia’. A escrita é uma só: tia. A letra ‘A’ representa o som de todos os ‘As’ falados em todos os dialetos, em todas as palavras da língua. Assim, na palavra ‘acharam’, que se pronuncia ‘acharu’, o ‘A’ tem o som de ‘U’.

Quanto tempo uma reforma dessas deve levar para ser assimilada pelas populações?

L. C. C. – Em relação à reforma de 1919, constatamos que somente na segunda metade do século 20 as pessoas aderiram de fato. E nem todas. As publicações só adotaram a reforma 50 anos depois. Nas reformas posteriores, a intervenção do Ministério da Educação nas escolas, nos livros e nas editoras foi ameaçadora, como é hoje: ou tudo ou nada. Com relação às pessoas cultas, a reforma começa logo, por força social. Na escola, é um grande problema para os professores e menor para os alunos, que não precisam modificar o que sabiam antes. Para o povo, pouco interessa. Muitos continuarão escrevendo fora de qualquer padrão tradicional ou imposto por lei, mas de acordo com hipóteses que fazem de como podem escrever para alguém ler e entender o que eles querem dizer.

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Editor da Agência Fapesp