Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Tópicos de leitura apressada e superficial

Com lições de leitura e produção de texto se aprende que a antífrase ou ironia é um recurso lingüístico usado quando se quer, propositalmente, criar conflito entre o que se diz e o que se quer dizer. Afirma-se alguma coisa que se quer negar. O leitor atento de um texto irônico deve entender o que se disse como o contrário do que se quis dizer.


Pelo que se viu no Blog do Noblat na sexta-feira (23/11), nem todos os seus leitores são atentos. Alguns deles, por precipitação ou por falta de proficiência lingüístico-discursiva, não entendem o que se escreve. Isso é preocupante porque estamos falando dos leitores daquele que, no início de 2007, foi apontado pelo Technorati como o líder no ranking da política no Brasil. Para quem não sabe, o Technorati – referência internacional para pesquisa e rastreamento da blogosfera – faz a contagem do número de links do qual um blog é alvo durante um período determinado. Assim , os comentaristas do Blog do Noblat podem, eles próprios, estar sendo lidos em mais de 1.477 outros blogs – este era o número de links que o blog tinha quando da realização da pesquisa no final de 2006. Os tropeços na compreensão de leitura de alguns desses comentaristas, a maior parte anônimos, puderam ser evidenciados em 23 de novembro.


Às 4h18, Ricardo Noblat fez uma provocação com a titular da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). ‘Está dormindo, Nilcéia?’, indagava, querendo saber se Nilcéia Freyre, que tem status de ministra, nada tinha a dizer sobre a jovem de 16 anos que se deixou estuprar em troca de comida quando, durante 27 dias, ficou em uma cela com 20 homens na delegacia de Abaetetuba, interior do Pará.


Intenção manifesta


A notícia dessa barbárie havia sido amplamente divulgada pela mídia, que também noticiara um segundo caso, semelhante, de uma jovem de 23 anos que, durante dois meses, dividira a cela com 70 homens na delegacia de Parauapebas, também no Pará. Noblat lembrava: ‘Teve outro caso parecido por lá. E aí?’ Pelo silêncio da madrugada e das mulheres da Secretaria, Noblat concluiu: ‘Acho que ela está dormindo’.


A bem da verdade, vale lembrar que, no final do expediente do dia anterior, a SPM emitira uma nota em que se informava burocraticamente ter sido ‘encaminhado ofício solicitando informações e providências’ à governadora Ana Júlia Carepa e à sua Secretaria Estadual de Segurança. Noblat – aliás, como milhões de brasileiros e, principalmente, brasileiras – queria um pronunciamento: ‘Nada? Nadinha a dizer, ministra?’ A ministra, entretanto, negava a sua presença política e física diante do fato.


Com o sol já nascido, às 6h48, Noblat cobrou de novo: ‘Amanheceu, não é mesmo? E aí ministra Nilcéia Freyre, da Mulher?’. Pedia que a ministra manifestasse sua indignação com o episódio, que admitisse a violação de direitos humanos, que anunciasse que o governo tomaria providências rigorosas a respeito.


Às 13h44, um outro jornalista, Luiz Cláudio Cunha, incorpora-se à provocação e escreve o texto intitulado ‘Noblat é canalha!‘. Afirma que o titular do blog move uma sórdida campanha contra Nilcéia Freyre e indaga se isso acontece ‘só porque ela não se manifestou até agora contra a estúpida polícia do Pará’, que a ministra tem mais o que fazer do que se ocupar com a infelicidade de uma garota ou com as agruras de outra.


Com base na agenda da ministra para o mês de outubro, retirada da internet, Cunha diz, ironicamente, que ela é muito ocupada. Ele, então, apela para que Noblat deixe a ministra trabalhar, finalizando seu texto com uma frase que não poderia deixar dúvida ao leitor sobre a intenção do autor: ‘As mulheres de Abaetetuba e Parauapebas agradecem’.


Oito minutos


No ritmo instantâneo da interação online, o blog começou a receber comentários sobre o texto de Cunha, postado às 13h44. Até 15h24 do dia seguinte, o texto já havia recebido 120 mensagens, das quais 48 eram de protestos contra o governo. Estas, haviam sido enviadas por pessoas descontentes, para quem a provocação do jornalista serviu como gatilho para o desabafo e queixas sobre a ausência e inoperância dos governantes. Falaram mais, falaram dos retoques plásticos da ministra do Turismo (MBO, 23/11, 15h03) à tradição do ‘nunca sabe de nada do que está acontecendo’ (JFS, 23/11, 14h05).


O restante – 72 mensagens – comentava o texto de Cunha. Destas, 35 entenderam a ironia do texto. Diziam ser o texto ‘uma peça de fina ironia’ (Zorra Total, 14h14), que ‘fazia tempo que não se lia algo tão bem-feito’ (FJSF, 14h06). – o ‘bem-feito’ propositalmente hifenizado pelo articulado leitor


No entanto, é com as outras trinta e seis mensagens que me preocupo. Seus emissores não entenderam a ironia contida no texto de Cunha. Por isso, identificaram o autor do texto como, entre outros, ‘defensor da ministra’, asno e insano (RRAR, 23/11, 23h01), ‘petista de carteirinha’ (rijo, 15h54), comissionado da SPM (zécatimba, 23/11, 21h55), ‘puxa-saco’ (JR, 18h22), ‘aspone da ministra’ (Amaroneto, 18h01), e ‘petralha’ de plantão (CAVR, 16h51). Disseram que ele estava ‘nervoso’ (AALMZ, 14h06), que ‘surtou’ (SSZ, 15h02).


Caso curioso é o do comentarista Oradireis (17h57) que mostra conhecer o passado profissional de Cunha ao referir-se à reportagem que lhe deu o Prêmio Esso de 1979, mas escreve apressadamente: ‘Impressionante o Luiz Cláudio. Se fosse a uruguaia Lílian Celiberti uma das presas, em outro governo, ele empregaria melhor a indignação pedindo cabeça de deus e o Mundo’. Porém, Oradireis relê o texto às 18h51 e escreve: ‘Peraí, Noblat. Reli o texto e só pode ser gozação’. Mais tarde (19h26), ele anuncia: ‘Releiam, releiam, o LCC deve estar rindo de todo mundo. O texto é pau puro’.


Outro leitor desatento chega a perguntar: ‘Se fosse a filha, a esposa, irmã ou amiga do sr. Luiz Cláudio ele pensaria da mesma forma’? (LQ, 14h18). Horas depois, pergunta semelhante é feita por Silviamantovani (18h02) quando ela precipitadamente escreve: ‘Eu só queria saber algumas coisinhas: A senhora Ministra tem filhas? E o Sr. Luiz Cláudio Cunha? Tem filhas? Irmãs? E se fosse uma menina das suas relações? O que o Sr. Luiz acharia?’.


Apenas oito minutos depois (18h10) a própria Silvamantovani volta a escrever: ‘Fiquei tão indignada com o começo do texto que me cegou à leitura do resto… Que susto! Desconsidere meu comentário anterior.’


Tamanha foi a incompreensão do texto que Barenna (14h20) chegou a sugerir: ‘Vamos ter que desenhar! A turma não captou a mensagem!’


Sem pensar


Esses dados demonstram que a leitura de alguns usuários do Blog do Noblat só consegue atingir dois níveis: o sensorial (leitura que não é elaborada, antes uma resposta imediata às exigências e ofertas que o mundo nos apresenta) e o emocional (leitura mediatizada por experiências prévias, pela vivência anterior do leitor). É no terceiro nível de leitura que o indivíduo demonstra sua maturidade perante o texto, o respeito às suas características e a apreciação de sua linguagem. A interação dos três níveis é a boa leitura, aquela que faz com que o leitor conheça o texto, perceba suas peculiaridades, identifique o que o diferencia dos demais.


‘Que falta que faz um bom banco escolar!’, escreveu Jorge100 (14h25). O diagnóstico preciso veio de Twinbee (15h23): ‘Tem muita gente por aí precisando voltar aos bancos escolares para aprender interpretação de texto!’. Realmente, ficaram faltando lições de leitura e produção de texto para alguns dos usuários do Blog do Noblat, aliás para muitos outros brasileiros.


Geralmente condena-se gente que fala sem pensar. Este episódio no Blog do Noblat prova agora que muita gente escreve sem pensar. Pior, escreve sem ler. Retrato terrível destes tempos tão fartos em comunicação, tão carentes em educação.

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Lingüista, integrante do Núcleo de Mídia e Política e pesquisadora da Faculdade de Comunicação da UnB