Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Uma história de catorze anos

Meu sobrinho Andrea queria muito abrigar uma revista de business debaixo do teto da Carta Editorial, fundada pelo pai, e irmão meu, Luis, em 1976, 18 anos antes dos fatos que me preparo a contar. Eu deixara a direção da IstoÉ em agosto de 1993 e no começo do ano seguinte estava saborosamente desempregado. Andrea, que me chamava zio Mino, tio em italiano, bateu à minha porta. 

Respondi que gostaria de trabalhar com ele, mas o business está fora dos meus alcances por uma série interminável de razões. Ele insistia. Andrea era apaixonado e duro na queda. Ao cabo declarei meu possível interesse por uma revista destinada a analisar o poder onde quer que se manifestasse, sem exclusão do mundo dos negócios. 

Nasceu ali o projeto da CartaCapital, Carta não por minha causa, mas por ser publicada pela editora do mesmo nome. Quanto a Capital, cuidei de esclarecer na edição número 1:

‘Significa principal, essencial, fundamental, decisivo, determinante. Mas capital também é substantivo, e significa valor econômico, centro administrativo de um país, riqueza na sua acepção mais estreita e mais vasta. A escolha do nome não indica mania de grandeza: explica simplesmente o propósito de uma CartaCapital endereçada ao coração do poder’. 

Engodo eleitoral

Meu irmão estava em Madri, onde fora convocado pela Condé Nast para fundar e dirigir na Espanha mais um feudo do império da família Newhouse. E de Madri abençoou o empreendimento. Era fim de março de 94, faleceria menos de um mês depois, colhido antes de completar 58 anos por uma doença que não perdoa. O trabalho de preparação iniciou-se no começo de junho, e o primeiro passo foi uma reunião a quatro, com Bob Fernandes e Nelson Letaif, companheiros de aventuras anteriores, Senhor e IstoÉ, mais Wagner Carelli, o filho pródigo. Estivera comigo na IstoÉ do final dos anos 70 e no Jornal da República, fracasso esculpido por um santeiro de cemitério, do qual me orgulho. Presentes também um correspondente de Paris, Gianni Carta, e a minha irredutível secretária (hoje há 20 anos), Mara Lúcia. 

CartaCapital não desfigurou como mensal e em março de 1996 tornou-se quinzenal, sem deixar de manter o projeto inicial, ao valorizar as áreas econômicas, macro e micro. Não se deu por acaso que a revista Exame publicasse anúncios para recomendar: recuse imitações. 

O pendor pela política acentuou-se aos poucos. Era desfecho inevitável. Memorável, no meu entendimento, a capa da primeira edição de janeiro de 1999: colocava o presidente FHC em um círculo de fogo e exclamava: quebramos! Recordo que naquela semana Andrea Carta convocou uma reunião de publicitários para assistir a um debate entre Delfim Netto e Luiz Gonzaga Belluzzo. Cabia-me o papel de mediador e o assunto foi a chamada conjuntura. 

A platéia seleta ficara revoltada com a nossa capa e não deixou de manifestar seu desagrado. No entanto, o Brasil estava mesmo quebrado e FHC acabava de cometer um dos grandes engodos eleitorais da história nativa. Depois de prometer campanha afora a estabilidade da moeda, desvalorizou o real tão logo tomou posse na Presidência pela segunda vez. 

Mais conscientes

Difícil é praticar no Brasil um jornalismo independente, isento, honesto. Nem por isso perdemos a oportunidade de prosseguir na escalada e em agosto de 2001, exatos sete anos depois do lançamento da mensal, CartaCapital virou semanal, ao definir claramente seu papel de revista de política, economia e cultura. 

A situação havia mudado bastante. Dos pais fundadores sobravam Bob Fernandes e o acima assinado, sem que pudesse ser esquecida a bela contribuição de Carelli e Letaif. (Bob também saiu em dezembro de 2005, depois de ter mostrado todo seu talento de grande repórter.) A redação crescera, aparelhada para a tarefa mais complexa, mas sobretudo surgira uma nova empresa, a Editora Confiança, para abrigar CartaCapital e cogitar da ampliação do leque editorial. 

Na Confiança, Luiz Gonzaga Belluzzo e eu selamos com uma singular sociedade empresarial uma amizade de quatro décadas. Fique claro que Manuela Carta, a publisher, e o próprio Belluzzo tratam de me deixar afastado do negócio, de sorte a não comprometê-lo. Como já disse, não tenho a mais pálida vocação para o business

No editorial da primeira semanal sublinhava que a revista permanecia atada aos princípios defendidos desde o nascimento: fidelidade canina à verdade factual, exercício desabrido do espírito crítico, fiscalização incansável do poder onde quer que se manifeste. No nosso entendimento – o plural não é majestático, indica o consenso da alameda Santos, 1.800, 7º andar, São Paulo, Brasil – tais são os requisitos do bom jornalismo. Aquele que busca nivelar por cima, voltado para os interesses da nação em peso. Leitores, ou não, queremos brasileiros cada vez mais conscientes em lugar de um público imbecilizado, a trafegar entre chavões e mentiras. 

Com respeito

A transformação em semanal, meta de chegada sempre perseguida, implica ainda questões propostas pelo jornalismo dos começos do século XXI. Quando fui chamado pela Editora Abril para dirigir aquela que seria a Veja, tratava-se de editar o primeiro newsmagazine brasileiro. Vinha de estágios no L´Express, na Der Spiegel, na Time e na Newsweek. Na época, as americanas eram o modelo mais celebrado, e o foram, de um pólo ao outro, por muito tempo. 

Que sentido teria agora repetir o padrão para uma platéia submetida diuturnamente à hegemonia da informação? Notícias nos alvejam da aurora à calada da noite. Quisemos aplicar uma receita adequada aos tempos, e mais uma vez o plural não é majestático. A novidade não está apenas no enfoque independente, que resulta, neste nosso Brasil, em navegação contra a corrente. Está em mais dois pontos capitais. Primeiro: seleção rigorosa dos assuntos, aqueles que determinam o futuro próximo ou remoto, abordados em profundidade, a bem de um jornalismo dito investigativo, pronto, inclusive, a atingir qualidade literária. Por que não? 

Segundo: análise dos fatos entregue a quem dispõe de autoridade para tanto, de Raymundo Faoro, nosso Profeta, que infelizmente nos deixou faz cinco anos, a Delfim Netto. De Thomaz Wood a Marcio Alemão. De Belluzzo a Wálter Fanganiello. De Nirlando Beirão ao Doutor Sócrates. Etc., etc. 

Não pretendemos que os leitores concordem conosco e sim que levem em conta, sem preconceitos, sem tolos mergulhos na banalidade e no clichê, a opinião de quem merece respeito.

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Jornalista