Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

O noticiário local

Para sobreviverem, os jornais dos interiores lutam em busca de rentabilidade, mas optam por atalhos clientelistas que comprometem a democracia brasileira.

Cultivo o estranho hábito de ler jornais. Não um, nem dois, mas de quatro a cinco por dia. Às vezes, sete ou oito. É como se fosse um vício, mas esse tem sido cada vez mais fácil de largar. E é o que tenho feito, de uns anos para cá. Por dever de ofício, leio Folha, O Globo ou Estadão e Valor Econômico.

Mas como jornalista sei que o Brasil não se resume à agenda imposta pela imprensa de repercussão nacional. Habituei-me a pescar informações nos jornais dos interiores. Nas redações, sempre conseguia tirar da manga uma pauta bacana por estar a par do que acontecia em algum canto do Brasil. A pequena grande imprensa está repleta de histórias que os brasileiros desconhecem.

Há quatro anos, iniciei uma pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo sobre os jornais locais, entendidos aqui como aqueles, de diferentes expressões e alcances, publicados fora do eixo Rio-São Paulo. Queria investigar o estado dessa imprensa que tanto me nutriu de boas pautas e os impactos que ela causa na sociedade, com base no recorte da cobertura política. Elegi, por questões metodológicas, dois momentos cruciais recentes, o impeachment de Dilma Rousseff e as duas denúncias de crime de corrupção e formação de quadrilha contra o presidente Michel Temer, arquivadas pelo Congresso Nacional.

A conclusão a que cheguei, a tese propriamente dita, é a de que uma imprensa local fraca implica uma democracia nacional fraca.

Em um estudo de casos, observei que os jornais dos interiores reproduziram tal e qual a narrativa vendida por Folha, O Globo e Estadão, que diziam que o impeachment de Dilma era um caminho sem volta. O discurso midiático nacional foi no sentido de que a petista não tinha mais condições de se manter no cargo. Quando Temer assumiu, a imprensa em geral deu a entender que a pátria passava para as mãos de um “salvador”. Mas isso até o momento em que surgiram as revelações do grampo da JBS, em que Temer foi implicado criminalmente.

Já os veículos menores trataram de ocultar dos leitores a gravidade das denúncias. Mais que isso, eles se renderam a práticas clientelistas, tentando “salvar” a pele de Temer em busca de algum benefício político para o veículo ou as suas regiões.

O debate democrático é prejudicado por um sistema midiático altamente concentrado, como no Brasil, e por práticas arcaicas e clientelistas do jornalismo. Os (e)leitores têm se tornado mais céticos, desorientados e desesperançosos. A democracia é alicerçada com base no livre fluxo de informações e opiniões. Cidadãos privados do acesso a esses elementos têm menos capacidade de tomar decisões políticas ou disposição de participar da vida pública.

Essa situação se agrava enormemente por outra questão em curso. Reproduzimos um fenômeno americano do declínio do jornalismo local, com o fechamento de títulos e enxugamento de redações. A transição do analógico para o digital tem dificultado o negócio jornal nas pequenas e médias cidades. Hoje é perda de tempo ler noticiário de segunda mão, oriundo das agências de notícias e temperado com a cor local.

O risco de acompanhar a chamada fase da “espiral da morte” do jornalismo local, contudo, é gigantesco para a democracia. Os americanos parecem já se ter dado conta disso, mas nós não – com algumas poucas e nobres exceções, como o Projor, que recentemente publicou o Atlas da Notícia, um levantamento que revela o drama dos desertos de notícias no Brasil. Estudiosos do tema e instituições como o Tow Center for Digital Journalism, o Pew Research Center e o Institute for Nonprofit News têm refletido sobre o problema. Soluções começam a aparecer.

Muitos veículos menores, nascidos na era digital, têm se especializado em um noticiário hiperlocal. Outros têm se agrupado em consórcios para manter as comunidades informadas sobre os assuntos das localidades. Mas nada estancou ainda a sangria. Nesse cenário, perdemos todos.

***

Eduardo Nunomura é doutor pela Universidade de São Paulo e professor de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero.