Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Para ler, para ver

A Guerra do Vietnã, de Ken Burns, faz sucesso na Netflix

Você já deve ter ouvido comentários sobre a qualidade impressionante de A Guerra do Vietnã, disponível na Netflix desde junho de 2018. Toda a comunicação oficial trata o programa como “filme”, em dez capítulos. Produzido ao longo dos últimos dez anos, com um orçamento de US$ 30 milhões, obteve prestígio imediato também no Brasil.

Filmes de guerra são um gênero do cinema, ao lado de aventura, romance, comédia e bangue-bangue, entre outros. Mas, entre todas as películas sobre conflitos, o Sudeste Asiático ocupa o espaço privilegiado de um gênero dentro do gênero, no qual a série (ou filme), de Ken Burns, é o mais recente sucesso de uma longa lista iniciada por Os Boinas Verdes (1968).

Um dos primeiros e mais prestigiados correspondentes americanos no Vietnã, David Halberstam (autor de The Powers that Be,1979), disse certa feita que a maior dificuldade ao cobrir aquele conflito era ter que descrever como nova uma notícia centenária.

É de fato muito difícil determinar quando começou a guerra, pois a região vinha de uma tradição de escaramuças quando os franceses a ocuparam no século 19, iniciando uma nova geração de atritos, agora contra o imperialismo europeu.

O primeiro capítulo do filme de Burns é muito dinâmico em sua maratona para resumir a longa história que levou à decisão dos Estados Unidos de ocupar o vácuo deixado em 1954 pela derrota do Exército francês para as forças lideradas por Ho Chi Minh. As potências internacionais impuseram uma divisão do país em Norte, comunista, e Sul, capitalista, até que eleições pudessem escolher um regime único para a nova nação.

Foi a partir desse momento que o discreto apoio americano ao Vietnã do Sul se transformou em uma intervenção direta de centenas de milhares de soldados que durou cerca de 20 anos e deixou aproximadamente 50 mil mortos.

Em 1973, os Estados Unidos retiraram seus soldados; em 1975, o Norte venceu o conflito com a conquista da capital sulina, Saigon. Depois de 20 anos, a guerra terminava onde começou: o Vietnã independente, unificado sob um partido comunista. Ho Chi Minh (1890-1969) tinha morrido, mas seu principal companheiro, o brilhante militar Vo Nguyen Giap (1911-2013) sobreviveu para ver a vitória final da estratégia de guerrilhas que marcou a longa luta pela independência.

Durante duas décadas, o Exército americano se bateu em armas na Ásia contra um inimigo militarmente mais fraco, mas cujos líderes tinham a convicção de que a verdadeira batalha estava sendo disputada dentro do território dos Estados Unidos: venceria quem conquistasse a opinião pública americana. E, para isso, o jornalismo tinha um papel fundamental: o Vietnã foi a guerra da imprensa, por excelência.

O estilo de edição do diretor Burns, que une fotos e filmes de época a depoimentos recentes de testemunhas costurados sob um narrativa econômica, ajuda a mostrar com clareza como a autoconfiança inicial dos americanos, recém-saídos da Segunda Guerra Mundial, se tornou no repúdio generalizado à guerra, às atrocidades contra os jovens forçados a lutar por uma causa perdida.

A série de Burns é um perfeito complemento para The Post, o filme de Steven Spielberg sobre os Papéis do Pentágono, ajudando a compreender a tragédia, militar e política, que significou o envolvimento americano na Guerra do Vietnã.

A Guerra do Vietnã
Ken Burns
Série documental disponível na Netflix, 2018

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Livro

Obra de Diógenes Moura une texto e imagem

Nascido em Pernambuco, crescido na Bahia, Diógenes Moura se radicou em São Paulo no fim dos anos 1980 e nas duas décadas seguintes se destacou na cena cultural paulistana como o curador responsável por tornar a Pinacoteca do Estado uma referência em mostras de fotografia. No entanto, nunca abandonou a escrita, que antecede a profissão mais conhecida.

Seu mais recente lançamento une as duas atividades: os textos de O Livro dos Monólogos (Vento Leste) são ilustrados por fotografias. Algumas imagens de autoria do próprio Diógenes, feitas com seu celular sempre apontado para os moradores de rua esquecidos nas calçadas do Centro de São Paulo. Elas são publicadas no Instagram, sob o título “Fashion Abandono”. As outras são um ensaio feito pelo fotógrafo Alê Ruaro na residência de Moura. Como suas paredes são cobertas de fotografias, o ensaio tem um fortíssimo efeito de looping.

Mas nesse livro o astro é o texto, composto de memórias do autor. Por isso, o leitor deve lê-lo em voz alta, pausadamente, tentando ouvir a voz do escritor. Afinal, ele mesmo anuncia: “O Livro dos Monólogos é uma síntese de mim. É frágil. Arde. Sangra. Dói. Possui cicatrizes”.

Moura é um tipo cada vez mais comum em São Paulo: mora no centro da cidade e não usa carro. Locomove-se quase sempre a pé, como me contou no livro Como Viver em São Paulo sem Carro. Isso o torna um observador da vida da metrópole e seus problemas. Parte dos textos são imagens que ele produz pensando em quem são os personagens desconhecidos das fotos.

Em algum momento recente, seu apartamento foi arrombado e diversos objetos de valor foram levados, tudo filmado por câmeras de segurança do prédio. Diógenes transformou o sentimento de indignação em motor criativo e produziu uma narrativa angustiante do episódio.

É esse capítulo que explica o subtítulo do livro: “Recuperação para Ouvir Objetos”.

O Livro dos Monólogos
Diógenes Moura
Vento Leste, 2018
200 páginas

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O ex-ministro e o enigma da educação

O professor Renato Janine Ribeiro é um acadêmico respeitado e popular nas mídias sociais. À frente do Ministério da Educação no início do segundo mandato de Dilma Rousseff, atribuía prestígio a um gabinete opaco, que já prenunciava a crise que levou ao impeachment da presidente. Em A Pátria Educadora em Colapso, ele reflete sobre a experiência frustrante no Planalto e como o sistema educacional está relacionado à manutenção da pobreza no país.

A Pátria Educadora em Colapso
Três Estrelas, 2018
352 páginas

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Quatro cavaleiros das novas mídias

Os quatro é o best-seller de Scott Galloway sobre as empresas que dominam as novas mídias: Apple, Amazon, Google e Facebook (pouco tempo atrás eram cinco, mas a Microsoft desidratou). O autor conta a história das empresas e desvenda suas estratégias. Ele é professor de marketing na escola de negócios da New York University e um palestrante popular: seu TED tem mais de meio milhão de espectadores.

Os Quatro
HSM Editora, 2017
320 páginas

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Coletânea de crônicas de Carlos Heitor Cony

Carlos Heitor Cony morreu no início de janeiro de 2018. No dia 31 de dezembro de 2017, foi publicada sua última crônica na página 2 da Folha de S.Paulo, onde ocupava alguns dias da semana a mesma coluna, “Rio”, que até 1997 tinha sido de Antonio Callado.

O texto que acabou sendo sua despedida é lírico, nostálgico, de uma pureza infantil: uma carta a uma criança que vai em breve se dar conta de que Papai Noel não existe e aquele Natal, ocorrido na semana anterior, terá sido o último em que “conseguimos manter o mistério”.

Como sempre, ao longo de quase 13 anos, Cony provava a habilidade incrível de fazer caber em um microtexto, de 1.700 caracteres, muitas informações narradas com grande qualidade literária, de “dimensões antológicas”, como classifica o escritor e jornalista Bernardo Ajzenberg, responsável pela organização e introdução do livro Quase Antologia, que o selo Três Estrelas, da Folha, acaba de lançar.

As páginas de opinião da Folha (2 e 3 de seu primeiro caderno) são quase inteiramente dedicadas a textos de jornalismo duro, críticas e análises sobre política, economia, no mais das vezes, sempre de temas de interesse nacional. Mas desde o início dos anos 1990, a partir do momento em que Otto Lara Resende ocupou o espaço, a coluna dedicada ao “Rio” tem sido produzida por uma sucessão de autores de grande esmero literário, sempre muito superior à média do jornal. Não seria injusto dizer que ali se publicam alguns dos melhores textos da Folha. Mesmo Ruy Castro, outro dos melhores escritores nacionais, agora principal ocupante do espaço, atribui à maestria de Cony uma de suas referências na crônica jornalística.

Cony foi um raro caso de jornalista que recebeu reconhecimento pela obra literária ainda jovem e pôde usufruir desses louros ao longo de quase 50 anos. Estreou no jornalismo aos 26, em 1952, depois de sete anos em um seminário para padres, um ano estudando filosofia e dois em um curso militar. Nunca mais largou a imprensa, mas também produziu uma grande obra literária a partir de 1958.

Entre 2005 e o último dia de 2017, escreveu sobre todos os assuntos e sobre nenhum: a falta de assunto foi um dos temas de que ele mais habilidosamente tratou. “A melhor solução quando um cronista não tem assunto é escrever sobre a morte da bezerra. No entanto, se fosse seguir a regra, eu matava todas as bezerras do mundo”. Esse texto, em que confessa a falta de inspiração, termina com uma explicação
ainda mais transparente:

“Que as bezerras me perdoem, à custa delas pretendo comprar um carro novo”.

Assim, o escritor provava mais uma vez sua fidelidade à profissão. “Escrever é um ofício, não uma arte, e o sujeito que abandona seu ofício por lhe faltar inspiração não se leva a sério. E pode acabar economicamente quebrado”, ensina William Zinsser, no clássico Como Escrever Bem (Três Estrelas, 2017).

Ainda que mantivesse o trabalho diário com maestria, havia certa melancolia em alguns de seus textos, talvez maior ao final. Ela se manifesta especialmente em “Se eu morrer amanhã” (de
5/3/2017): “Se eu morrer amanhã, não levarei saudade de Donald Trump. Também não levarei saudade da operação Lava Jato nem do mensalão”. Depois de listar uma série de temas, ele concluía:
“Enfim, não levarei saudade de mim mesmo, de meus fracassos nem minhas dívidas. Finalmente, não terei saudades dos milagres dos pastores evangélicos nem de um mundo que cada vez fica mais imundo”.

Quase Antologia: As Melhores Crônicas de Carlos Heitor Cony na Folha de S.Paulo
Carlos Heitor Cony / Bernardo Ajzenberg (org.)
Três Estrelas, 2018
350 páginas

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Peças radiofônicas de Callado para a BBC

A intuição levou um jovem estudante brasileiro na Europa a encontrar um saboroso conjunto de textos esquecidos da literatura brasileira: as peças radiofônicas escritas por Antonio Callado entre 1943 e 1947, quando ele trabalhou no Serviço Brasileiro da rádio BBC, em Londres. São 19 peças de “radiodramas” editados por Daniel Mandur Thomaz, professor de Literatura Brasileira em Oxford, onde faz doutorado sobre o trabalho de Callado.

Antonio Callado morreu em 1997, dois dias antes de fazer 80 anos. Até o fim da vida, escreveu uma coluna na página 2 da Folha de S.Paulo. Em 2017, ano de seu centenário, o trabalho de Thomaz foi anunciado, e lançado este ano.

Em Londres, o autor de Quarup recebia da BBC por texto escrito. Quando morava na Holanda, em 2013/14, Mandur Thomaz procurou a empresa tentando localizar os trabalhos que Callado produziu para ela, durante a Segunda Guerra Mundial e logo depois do conflito.

O caminho se abriu no departamento financeiro, que ainda guarda uma lista de pagamentos feitos na época, cada um com a anotação da natureza do texto, nome e data em que foi ao ar. Com essa lista, Thomaz pediu que fosse aberta a pasta do escritor brasileiro no arquivo morto. Foi a parte mais demorada: documentos antigos são mantidos em caixas lacradas e esterilizadas, para evitar a ação de microrganismos. A autorização levou três meses. Nela, Mandur Thomaz encontrou as 19 peças radiofônicas, que compõem o livro Roteiros de Radioteatro Durante e Depois da Segunda Grande Guerra (1943-1947). Achou também 50 crônicas, que pretende editar, em um novo volume. É provável que Callado tenha morrido achando que esses textos tinham se perdido. Eles eram escritos para o rádio e eram gravados em discos regraváveis, mantidos por um curto período de tempo, para um raro caso de aquele programa ser reprisado.

De tempos em tempos, os discos usados eram reciclados para gravar novos programas. Pouca coisa era preservada naquele período, como as notícias de fatos históricos.

Reforça essa convicção a constatação de que alguns dos textos foram reutilizados por Callado depois que voltou ao Brasil. Uma cópia mimeografada de “Lord Byron e a Grécia”, que foi ao ar na BBC em setembro de 1943, está arquivada entre as obras de Callado na Fundação Casa de Rui Barbosa como roteiro da peça apresentada na Rádio Globo em setembro de 1947, logo que o escritor voltou ao Brasil, como conta a apresentação do livro.

De fato, parece que os fonogramas das montagens das peças não existem mais, mas todos os textos mencionados nos recibos consultados estavam nas pastas, em páginas datilografadas, datadas e com anotações (como os nomes dos censores, no tempo da Segunda Guerra).

As peças são sempre textos de ficção com forte referência a fatos da realidade daquele momento.
As obras produzidas durante a Segunda Guerra são muitas vezes peças de propaganda, ora críticas ao nazismo, ora elogios ao espírito de resistência dos franceses, por exemplo. O
primeiro texto da antologia, chamado “A Eterna Descoberta do Brasil” (que foi levado ao ar em março de 1943), é uma parábola sobre a passagem do escritor austríaco Stefan Zweig no Brasil.

Sobre a análise literária dos trabalhos, o crítico disse, em entrevista à Folha: “As peças não têm apenas valor histórico, mas também literário. Na verdade, eu defino o material como possuindo três esferas de interesse: o estético, para os leitores e o grande público em geral; o crítico, para os estudiosos da obra de Antonio Callado; e o histórico, porque as peças foram escritas durante a Segunda Guerra Mundial por um intelectual brasileiro vivendo o conflito de perto, na Inglaterra”.

Ao ser questionado sobre o impacto de sua descoberta para o público e os estudos da obra de Callado, Mandur Thomaz destaca o fato de que esses textos antecipam em uma década a estreia do autor na ficção: até agora, seus críticos consideram que isso tinha ocorrido nos anos 1950, com a peça O Fígado de Prometeu (1951) e o romance Assunção de Saviano (1954).

Roteiros de Radioteatro Durante e Depois da Segunda Grande Guerra (1943-1947)
Antonio Callado / Daniel Mandur Thomaz (org.)
Autêntica, 2013
288 páginas

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Leão Serva é jornalista, professor do curso de graduação em Jornalismo da ESPM e escritor, autor de Jornalismo e Desinformação (Senac, 2001) e coautor de Como Viver em São Paulo sem Carro – 2013. Dirige a agência de conteúdo Santa Clara Ideias.