Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Surto de meningite e as lições de Stalin

No apagar das luzes de 2014 a Comissão Nacional da Verdade divulgou seu relatório final denunciando a morte e o desaparecimento de 434 pessoas entre 1946 e 1988 no Brasil. O documento, dividido em três volumes, relaciona os casos de mortes por homicídio, falsos confrontos com armas de fogo, óbitos decorrentes de tortura, execuções em chacinas homicídios com falsas versões de suicídio, mortes em manifestações públicas e suicídios decorrentes de sequelas causadas por torturas.

Mas o período da ditadura civil-militar guarda um episódio desconhecido pelos brasileiros jovens e esquecido pela maioria dos mais antigos que simboliza o nível de irresponsabilidade da censura prévia à imprensa exercida pelos órgãos de segurança. Falo da proibição ao noticiário a respeito do surto de meningite ocorrido em São Paulo capital no início da década de 1970. O surto chegou a registrar 411 óbitos no auge da doença, em 1975. O índice de letalidade oscilou entre 7% e 14% entre 1970, quando se verificaram os primeiros casos, e 1975, quando surgiram enfim os primeiros sinais efetivos de controle da doença. Para reduzir os efeitos avassaladores, o governo do general Ernesto Geisel (1974-1978) criou a Comissão Nacional de Controle da Meningite, passando a importar vacinas e preparar o corpo técnico para realizar com mais rapidez o diagnóstico e iniciar o tratamento.

Porém, a guerra contra o surto teria sido muito mais eficaz se a população paulista tomasse conhecimento, através dos meios de comunicação e dos órgãos públicos, dos sinais e sintomas típicos dessa doença infectocontagiosa tão letal (quando virótica) ou com alto índice de sequelas (quando bacteriana).

A nota do Departamento de Polícia Federal recebida no dia 26 de julho de 1974 pela chefia de redação do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, é taxativa. O texto foi cuidadosamente guardado na época pelo secretário de redação, jornalista José Silveira, e divulgado publicamente após o processo de redemocratização.

“Rio, 26/7/1974

“De ordem superior, atendendo solicitação, em virtude fato superveniente, fica proibida divulgação através meios de comunicação social falado, escrito, televisado,, entrevistas concedidas pelo Sr. Ministro da Saúde sobre meningite, qualquer divulgação de dados e gráficos sobre frequência de meningite, noticiário sobre quantidade e datas de chegadas vacinas importadas, bem como referências necessidades previsão.

“Fica igualmente proibido divulgação matérias sensacionalistas ou exploração tendenciosa através da imprensa, qualquer assunto relativo a meningite.”

Linha auxiliar

As meninges se constituem em membranas que envolvem o encéfalo e a medula espinhal que fica dentro da coluna vertebral. Quando uma bactéria ou vírus rompe as defesas do organismo e se aloja nas meninges, a infecção pode afetar todo o sistema nervoso central.

Os sintomas mais frequentes incluem dor de cabeça, vômitos e rigidez da nuca, Muitas vezes a progressão da doença é tão rápida que dificulta o atendimento médico de emergência. Daí a importância do diagnóstico precoce.

O Estado brasileiro autoritário parecia estar mais preocupado em evitar um clima de insegurança entre a população, por conta do risco de contágio e disseminação da doença, do que em combater efetivamente o surto de meningite. Partia-se do princípio de que quanto menos a população civil soubesse sobre a dimensão do perigo, menor seriam as consequências para a ordem política e as cobranças por medidas eficazes. Para estes generais e coronéis no poder – e nunca é demais lembrar, também aos civis que se prestavam a este serviço nos órgãos de censura – , o controle da informação se sobrepunha ao controle da meningite. Foram 411 mortes somente em 1975, um número pouco menor que o de mortos e desaparecidos coletados pela Comissão Nacional da Verdade. É impossível afirmar quantas mortes poderiam ter sido evitadas, mas a informação, quando bem empregada, costuma atuar como linha auxiliar da medicina preventiva.

Fica a pergunta. Quantas mortes, sobretudo de crianças, poderiam ter sido evitadas se a população de São Paulo fosse mais bem informada sobre os sinais e sintomas da doença? Não seriam estas crianças também vítimas da ditadura? O que se deve esperar de autoridades que consideram a segurança nacional acima da segurança humanitária?

Após a Segunda Guerra Mundial ficou famosa a frase atribuída a Josef Stalin segundo a qual a morte de algumas pessoas é vista como homicídio, a de muitas como chacina e a de milhares como estatística. As autoridades que mandavam nos órgãos de segurança deviam conhecer bem a frase de Stalin.

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João Batista de Abreu é jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense