A Casa Civil da Presidência da República tem anunciado que enviará ao Congresso, em abril de 2009, projeto de lei regulamentando a Constituição naquilo que diz respeito à produção e acesso a informação detida pelo Estado.
Dada a importância do assunto, acredito ser relevante registrar o histórico de como isso terá acontecido, uma vez que nessas horas a memória pública sofre lapsos, alguns explicáveis, outros inexplicáveis.
Em síntese, esse projeto de lei nasceu em 2005 por iniciativa da Transparência Brasil, teve sua primeira versão redigida em 2006 no âmbito da Controladoria-Geral da União sob forte influência da Transparência Brasil, foi nesse mesmo ano transformado em promessa do segundo mandato do presidente Lula por negociações conduzidas pela Transparência Brasil e, nos estágios que antecederam a fixação do texto final, no início de 2009, foi salvo de um desastre identificado pela Transparência Brasil, revertendo-se a situação por meio de pressões exercidas sobre a CGU e a Casa Civil por vários atores, entre os quais a Transparência Brasil.
No que se segue, faz-se referência a vários documentos, atas de reuniões e mensagens de e-mail. Todos estão reunidos no arquivo zipado que pode ser acessado aqui.
Os fatos
1.
Existe, na Controladoria-Geral da União, um organismo denominado Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção. Trata-se de um órgão consultivo misto, formado por representantes do Estado e de organizações da sociedade civil. Do lado do Estado há representantes de diversos Ministérios (entre os quais a Casa Civil), da Advocacia Geral da União, do Ministério Público Federal, da Comissão de Ética Pública e do Tribunal de Contas da União. Do lado da sociedade civil estão representadas as seguintes entidades/segmentos: Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Igrejas Evangélicas de âmbito nacional, Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, uma central sindical, uma entidade empresarial de âmbito nacional e a Transparência Brasil.2.
Na segunda reunião do Conselho, ocorrida em 20 de julho de 2005, a TBrasil propôs uma extensa pauta de trabalho, da qual fazia parte realizar ‘estudos de medidas legais e administrativas destinadas a tornar realidade o acesso às informações detidas pelo Estado’ (ver ‘pauta_ct.pdf’). Decidiu-se na ocasião formar um Grupo de Trabalho com o objetivo de realizar ‘a análise das propostas da Transparência Brasil’ e outras sugeridas por outros integrantes do Conselho (ver ‘ata’). Ficou convocada uma reunião extraordinária do Conselho para o dia 16/8/2005 para que o GT apresentasse as suas conclusões.3.
O GT reuniu-se em 9/8 e concluiu que seria prioritário lidar com o assunto do acesso a informação.4.
Na reunião do dia 16/8, o representante da TBrasil expôs longamente o tema (ver suporte à apresentação em ‘acessa_info.ppt’). Decidiu-se então que a CGU prepararia uma minuta de anteprojeto de lei, a qual seria discutida na reunião seguinte, em 20/9.5.
Na reunião de 20/9 (ver ‘ata’), Renato Braga da Rocha, então chefe da Assessoria Jurídica da CGU, apresentou idéias preliminares. Decidiu-se que se formaria um novo GT para aperfeiçoar o anteprojeto. O GT era constituído, além do Jurídico da CGU, pelos representantes da ABONG (Francisco de Assis), da ABI (Maurício Azêdo), do Ministério Público Federal (Antônio Bigonha), do Itamaraty (Marcos Vinícius Pinta Gama) e da TBrasil (este que escreve).6.
O GT reuniu-se uma vez, em 22 de fevereiro de 2006, ocasião em que o Jurídico da CGU apresentou minuta de anteprojeto. Compareceram à reunião Assis, da ABONG, Bigonha, do MPF, e este que escreve. O texto continha muitas inadequações, que foram discutidas. Os presentes comprometeram-se a enviar observações detalhadas por escrito. A TBrasil fez isso por e-mail no dia 24.Informações esparsas
7.
Entre as observações da TBrasil constavam itens fundamentais não presentes na minuta inicial, entre os quais: a) ‘a conveniência de se introduzir tanto na exposição de motivos quanto no corpo da proposta a menção ao art. 37 da Constituição, no que tange o dever de publicidade, de forma a frisar que não estamos falando apenas do direito de petição do cidadão, mas também do dever do Estado de informar’ e b) ‘a conveniência de se pensar na inclusão, na proposta, da criação de um organismo centralizado que recebesse reclamações quanto ao não-cumprimento das disposições da lei (uma agência ou o que seja)’. Adicionavam-se ainda sugestões a respeito da publicação de informações presentes em bancos de dados mantidos pelo poder público.8.
O texto do anteprojeto de lei resultante desse processo foi circulado entre os membros do Conselho em 31/5/2006. A mensagem que acompanhava o texto dizia: ‘A minuta procura refletir as discussões havidas em reunião do grupo de trabalho ocorrida no dia 22 de fevereiro último, bem como o substancial conjunto de sugestões posteriormente encaminhadas, por correio eletrônico, pelo Conselheiro Claudio Weber Abramo’. Ver essa versão do anteprojeto de lei em ‘2006-05-30_anteprojeto.pdf’.9.
Esse texto foi então submetido pelo ministro Waldir Pires (então à frente da CGU) à Casa Civil.10.
No período que antecedeu as eleições de 2006, a Transparência Brasil negociou a inclusão, no programa reeleitoral do presidente Lula, da promessa de enviar, ao Congresso, projeto de lei regulamentando o acesso a informação. A promessa foi feita publicamente pelo presidente pelo menos três vezes. A primeira ocorreu no Palácio do Planalto, no final de setembro de 2006, quando o presidente Lula anunciou o envio ao Congresso de outro projeto, sobre conflito de interesse, e as duas seguintes em respostas a perguntas feitas pela imprensa a respeito de seu programa para um segundo mandato.11.
Ao longo dos dois anos seguintes, o governo se manteve em silêncio a respeito do assunto. Nesse período a Transparência Brasil dirigiu diversos pedidos de esclarecimento tanto à Casa Civil quanto à CGU (ver, por exemplo, os ofícios ‘drousseff-projinfo.pdf’, de 14/2/2007, e ‘drousseff-projinfo-2.pdf’, de 3/10/2008). A Casa Civil respondeu protocolarmente à primeira dessas comunicações e não acusou o recebimento da segunda. Eximo-me de referir outras ocasiões em que a TBrasil cobrou o assunto.12.
No final de 2008 e início de 2009 começaram a aparecer na imprensa informações esparsas a respeito do PL sobre acesso a informação que se preparava na Casa Civil.Moção aprovada
13.
Tendo isso em vista, em 20 de fevereiro de 2009 a TBrasil dirigiu aos membros do Conselho da Transparência solicitação de apoio para a convocação de uma reunião para discutir a situação (ver ‘pl_de_acesso.pdf’). Entendia a Transparência Brasil que a Casa Civil teria o dever, ainda que por simples questão de cortesia, de apresentar ao Conselho o resultado de uma iniciativa que havia nascido nele.14.
Apoiaram a iniciativa da TBrasil a ABI, a OAB, o Instituto Ethos, a ABONG e o Conselho das Igrejas Evangélicas.15.
Em face da pressão exercida pela TBrasil e apoiada por outros conselheiros, o ministro Jorge Hage, da CGU, convocou este que assina para uma conversa a respeito da reivindicação. Nesse encontro negociou-se com a CGU que esta convocaria a reunião pretendida, mas que os detalhes do anteprojeto de lei não poderiam ser submetidos a novo processo de consulta porque o governo considerava que essa fase já havia passado e que não caberia começar tudo de novo.16.
No dia 17/3 a CGU circulou entre os membros do Conselho o texto do anteprojeto de lei redigido pela Casa Civil (ver ‘projeto_da_casa_civil.pdf’) e, no dia seguinte, convocou a pretendida reunião do Conselho para o dia 25/3.17.
A leitura da peça produzida pela Casa Civil mostrou uma inadequação imediata (o desastre a que se fez referência na abertura destas notas): restringia a regulamentação do acesso a informação à ‘administração pública federal’, o que, na prática, significaria atingir apenas o poder Executivo federal e os demais poderes federais apenas no que se refere a questões burocráticas. Ficariam de todo de fora as esferas estadual e municipal.18.
Na reunião do dia 25/3, a Transparência Brasil atacou essa formulação, tendo sido apoiada explicitamente por todos os representantes de entidades da sociedade civil e mais pelo representante do Ministério da Fazenda, José Mauro Gomes. A TBrasil propôs moção para que o Conselho dirigisse ao ministro Jorge Hage solicitação de que este levasse à Casa Civil a posição segundo a qual a regulamentação do acesso à informação deveria abranger as três esferas e os três poderes, não podendo restringir-se apenas ao Executivo federal, pois isso ignoraria exatamente aqueles que mais relutam em prestar informação à sociedade. A moção foi aprovada por unanimidade, mostrando que também os representantes de organismos do Estado concordavam em que a redação, como se apresentava, era inadequada.Sem discordâncias
19.
Alguns dias após, a CGU deu conta, informalmente, de que o governo recuara e de que o projeto de lei seria reescrito de modo a ganhar a abrangência imprescindível.20.
No que tange o desastre final que se tentou evitar, a TBrasil não reivindica crédito a um papel maior do que o de ter disparado o alerta e de ter feito a sua parte num jogo de pressões de que participaram diversos outros protagonistas. A formulação da Casa Civil era nitidamente absurda, e não foram poucos os que se deram conta disso. A própria CGU considerava que o texto, como se apresentava, não satisfazia a encomenda – tanto é assim que o ministro Jorge Hage levou a posição do Conselho ao centro do governo. As pressões para que o projeto voltasse à sua abrangência original se intensificaram durante o Seminário Internacional de Acesso às Informações Públicas promovido pelo Fórum de Direito de Acesso à Informação Pública realizado em Brasília entre 1 e 2 de abril, quando não houve quem discordasse dessa necessidade.Esses são os fatos.
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Brasil precisa avançar na legislação sobre acessso à informação pública — Lilia Diniz******
Diretor executivo da Transparência Brasil